Pedido julgado procedente. Justiça feita
O tempo da justiça nem sempre é o tempo da sociedade, por evidente. Os ritos processuais hão de ser seguidos com rigor, observados os ditames constitucionais. Prevalece a legalidade, invariavelmente, e isso nada tem a ver com justiça ou injustiça do julgado. A justiça faz parte de outro plano
quarta-feira, 11 de março de 2020
Atualizado às 09:42
É muito comum ouvir esta frase, não apenas na sociedade em geral, mas até mesmo entre alguns atuam na área jurídica. Ora, juiz não faz justiça aos litigantes. Em primeiro lugar, as decisões judiciais hão de ser recebidas à maneira estóica, diriam Sêneca e Montaigne. Em segundo, o juiz aplica o direito positivo ao caso concreto (entrega a prestação jurisdicional); não faz justiça às partes. As decisões judiciais nada têm a ver com o metafísico ou mesmo com o direito natural (Pufendorf e Grócio)1 e nem sequer estariam numa esfera supra-sensível [sic], no dizer de Olivecrona [2005: 18]. O juiz julga com base na lei2 posta pelo Estado.
Em havendo conflito de interesses, com o consequente litígio e instauração de processo judicial, o juiz, oportunamente, examinará os fatos e o direito dos litigantes. Com base na lei, dará razão a quem provar suas alegações (CPC, art. 490). O convencimento do juiz é livre, cabendo apresentar as razões (motivação [persuasão racional], art. 371, CPC) e observar a legalidade do procedimento.
Com propriedade, afirma Kelsen que a interpretação de uma lei não é necessária a uma decisão como a única certa, mas leva, possivelmente, a várias decisões - enquanto só se ajustam à norma a ser aplicada - do mesmo valor, mesmo que uma única dentre elas se torne direito positivo numa sentença judicial [2001:116].
Portanto, o juiz, ao apreciar o caso concreto, aplicará o direito positivo, fazendo com que as partes cumpram o comando judicial externado na sentença; transformará o dispositivo legal em norma3, a fim de conferir certeza jurídica ao que restou decidido. Nada mais. É de somenos importância se a decisão tem ou não caráter de justiça; se é boa ou má, se é bem ou mal aplicada. A respeito da justiça, o mesmo autor pondera:
A justiça pela qual todo o mundo chama, 'a' justiça por excelência é, pois, a justiça absoluta. Esta é um ideal irracional. Com efeito, ela só pode emanar de uma autoridade transcendente, só pode emanar de Deus. Por isso, a fonte da justiça e, juntamente com ela, também a realização da justiça têm de ser relegadas do Aquém para o Além - temos de nos contentar na terra com uma justiça relativa, que pode ser vislumbrada em cada ordem jurídica positiva e na situação de paz e segurança por esta mais ou menos assegurada [1993: 65-66].
O tempo da justiça nem sempre é o tempo da sociedade, por evidente. Os ritos processuais hão de ser seguidos com rigor, observados os ditames constitucionais. Prevalece a legalidade, invariavelmente, e isso nada tem a ver com justiça ou injustiça do julgado. A justiça faz parte de outro plano.
Encerra-se com a formidável frase de Grau: os juízes aplicam o 'direito', os juízes não fazem 'justiça'! Vamos à Faculdade de Direito aprender 'direito', não justiça. 'Justiça' é com a religião, a filosofia, a história [2016: 21].
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1 Bem ensina Michel de Montaigne: Mas eles são engraçados quando, para dar às leis alguma autenticidade, dizem que há algumas sólidas, perpétuas e imutáveis, que chamam de naturais, que estão impressas no gênero humano pela condição de sua própria essência [2006:371].
2 As leis extraem da aplicação e do uso sua autoridade; é perigoso leva-las de volta a seu nascimento. Montaigne [2006: 376].
3 Norma de decisão, conforme Grau [2016: 137].
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GRAU, Eros R. [2016]. Por que tenho medo dos juízes: (a interpretação/aplicação do direito e os princípios). 7ª edição. São Paulo: Malheiros Editores. Grifos no original.
KELSEN, Hans [1993]. O problema da justiça. São Paulo: Martins Fontes. Grifo no original. O pensador assevera que a justiça não pode ser identificada com o direito. [p. 67].
__________[2001]. Teoria pura do direito. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais.
MONTAIGNE, Michel de [2006]. Os ensaios. Livro II. 2ª edição. São Paulo: Martins Fontes.
OLIVECRONA, Karl [2005]. Linguagem jurídica e realidade. São Paulo: Quartier Latin.
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*Carlos Roberto Claro é advogado em Curitiba; Especialista em Direito Empresarial; Mestre em Direito.