A tragédia do Ninho do Urubu e o necessário respeito à independência no exercício da advocacia
O que uma das maiores tragédias do futebol brasileiro tem a ver com a necessária defesa dos postulados da advocacia e a indispensável compreensão social da sua importância?
terça-feira, 3 de março de 2020
Atualizado às 15:55
Depois de mais de um ano dessa que foi uma das maiores fatalidades do esporte brasileiro e mundial, os debates se acirram nas redes sociais e tomam até mesmo a mídia televisiva no país, mormente com duras críticas sobre a alegada resistência do Clube de Regatas Flamengo em indenizar definitivamente as famílias das vítimas, havendo também, em menor número, quem recrimine a postura dessas mesmas famílias acerca da suposta exigência de valores desproporcionais para que se encerre de uma vez por todas essa controvérsia que, a toda evidência, prolonga o sofrimento de todos os envolvidos.
Contudo, uma reflexão há que ser feita, posto que tal litígio tem em ambos os polos profissionais da advocacia que defendem os interesses antagônicos de seus clientes, e essa socialização das críticas de parte a parte inevitavelmente nos conduz a uma análise do exercício da própria advocacia.
Com efeito, constantemente nos deparamos com críticas aos advogados e advogadas que orientam os clientes em sentido diverso do que propõe o senso comum - aqui entendido o que grande número de pessoas entende como certo, e essa equivocada percepção ganha coro principalmente diante da facilidade de acesso e rapidez da propagação de informações nas redes sociais, ao passo que os debates acerca dessa tragédia se revelam como uma boa oportunidade para que seja evidenciado o necessário respeito à independência no exercício da advocacia, especialmente aquela desenvolvida nesse caso especificamente, pois é imperioso exercer esse apoio e resguardo, até para que ela resista à pressão social e midiática.
Ora, sem querer adentrar aos detalhes do processo, diante apenas das informações veiculadas na mídia, fato é que resta clara a existência de estratégias jurídicas antagônicas onde um lado defende a redução dos valores indenizatórios diante de precedentes jurisprudenciais semelhantes, buscando a maior economia possível ao seu cliente, no caso o Flamengo, e do outro, e não menos importante, aqueles que perseguem uma majoração dessas quantias como forma de trazer o maior retorno financeiro àquelas famílias já tão fragilizadas com o lastimável episódio.
A primeira dificuldade para que o público em geral entenda a importância da lealdade nesse duelo se consubstancia na compreensão da necessidade de contraprestação pecuniária em casos de morte, pois é complexo conceber a correlação entre o dinheiro e a vida.
Advogo há anos em caso de indenização por morte, seja por acidente automobilístico, afogamento, eletroplessão, dentre outros, e em todos esses casos, além da forma abrupta e agressiva como ocorre o falecimento, o trabalho da advocacia é ainda mais árduo no convencimento do cliente acerca da mensuração de um determinado valor que, por um vértice, embora não tenha o condão de trazer de volta aquele ente querido, possa ao menos trazer algum conforto material que amenize aquela imensa dor, e do outro a conscientização da responsabilidade e da importância desse valor para quem recebe, associada a possibilidade de pagamento, ao passo que a jurisprudência nesse caso se consubstancia em uma importante aliada na fixação das balizas por ambos os polos junto aos seus clientes.
Todavia esse caso impõe outras dificuldades, sobretudo quando se trata de uma das maiores paixões do brasileiro, o futebol, associado ao envolvimento de um dos maiores clubes do mundo. Isso se revela sob dois ângulos, o primeiro relacionado ao futuro daqueles jovens jogadores e o segundo acerca do sucesso econômico alcançado por essa agremiação nos últimos tempos.
Outra discussão que se trava é sobre a incerteza da efetiva prosperidade de jogadores no futebol, na medida em que menos de 2% dos atletas se tornam profissionais e um número diminuto desses tem sucesso na carreira a ponto de receber salários vultosos e outras verbas milionárias1, essa também uma outra falsa perspectiva do público em geral, posto que a grande maioria acha que todos os jogadores tem salários astronômicos etc., quando pouquíssimos atletas profissionais chegam a esse patamar. Entretanto, não se pode olvidar sobre a possibilidade desse sucesso ocorrer com jovens já inseridos em clube de tamanha projeção, rigorosamente selecionados e treinando intensamente para alcançar esse status tão almejado.
E no centro de toda essa disputa estão os profissionais da advocacia, cada um defendendo os interesses de seus constituintes, duelando lealmente através de estratégias que visam o melhor resultado, mas o fato é que o tempo conspira contra ambos os lados, notadamente quando o caso ganha tal proporção midiática, onde as pessoas começam a fazer juízos de valor muitas vezes concebidos em bases frágeis, ao ponto da controvérsia tomar os estádios em cânticos repugnantes de torcidas adversárias a programas de relevante audiência na maior rede de TV brasileira, o que nos faz evidenciar a importância da atuação dos advogados porque o equívoco na leitura dessas estratégias não atinge somente as pessoas de menor instrução, mas também pessoas de alto poder aquisitivo e de formação de opinião como um dos maiores apresentadores de TV.
Ora, é deveras difícil as pessoas entenderem como um Clube que faturou quase 1 bilhão de reais em 20192 não indeniza definitivamente as famílias remanescentes, quando não se sabe ao certo qual valor pedido por elas e qual a base para tal fixação, e não mais fácil compreender como essa mesma agremiação conduz as negociações para que a Justiça estabeleça esse parâmetro para pagamento definitivo, mas, como disse acima, o tempo conspira contra, seja pela necessidade de quem recebe, seja pela pressão daqueles que querem ver de logo acabada a discussão que, de certa forma, atinge o ambiente do clube.
Devemos, portanto, tentar ao menos conscientizar o público em geral sobre a importância e lealdade na condução do caso pelos advogados no sentido de orientar seus clientes nesse ou naquele sentido, ainda que não seja para uma composição em valor tal, a ponto de se condenar tal direcionamento como usurário de um lado ou desumano do outro, pois isso significa, em última análise e ainda que de forma velada ou indireta, um ataque à própria independência e prerrogativa da advocacia na condução da causa para melhor desfecho para o constituinte, um postulado inafastável da profissão a teor do que dispõe os arts. 7º, I e 31, §1º ambos da lei 8.906/94 - Estatuto da Advocacia3.
Há que se respeitar, portanto, o trabalho dos advogados e advogadas envolvidas, desempenhando a defesa dos seus clientes no exercício das suas teses e estratégias, pois é também nisso que se desenvolve essa nossa nobre atividade.
É preciso que as pessoas se conscientizem da lealdade nessa disputa guiada pela advocacia de parte a parte, que não se confunde com a lealdade que deve haver no trato entre as partes e que falta em muitos casos, espero que não esteja faltando nesse.
Necessário que se reafirme a indispensável conscientização das pessoas acerca da importância da advocacia na defesa da cidadania e dos direitos humanos, daí a necessidade de se evidenciar a relevância das prerrogativas e independência funcional da nossa profissão, nesse caso orientando a fazer ou não um acordo diante desse ou aquele valor proposto, pois o exercício dessa atividade não pode ser confundido, principalmente nessa tragédia do Ninho do Urubu, com um suposto mercenarismo de quem quer receber mais ou pagar menos.
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"Considerando todos os fatores envolvidos, as chances de se tornar um boleiro profissional ao redor do mundo giram em torno de 1,5% e o Brasil apresenta números muito semelhantes.
(...)
Esses fatores fazem com que ocorra uma diminuição significativa no número de oportunidades bem remuneradas e estima-se que mais de 80% dos jogadores no Brasil ganham menos de R$ 1 mil de salário.
De acordo com os dados do levantamento da CBF, do total de jogadores, 23.238 (82,40%) recebem salários de até R$ 1 mil, 3.859 (13,68%) ganham entre R$ 1 mil e R$ 5 mil, 381 (1,35%) entre R$ 5 mil e R$ 10 mil e 499 (1,77%) entre R$ 10 mil e R$ 50 mil.
No topo da pirâmide, que corresponde ao último 1%, encontram-se os 112 (0,40%) que recebem entre R$ 50 mil e R$ 100 mil, 78 (0,28%) que ganham entre R$ 100 mil e R$ 200 mil, 35 (0,12%) com salários entre R$ 200 mil e R$ 500 mil ..."
Obs. Números do ano de 2016.
3 Art. 7º: São direitos do advogado: I - exercer, com liberdade, a profissão em todo o território nacional;
Art. 31, § 1º: O advogado, no exercício da profissão, deve manter independência em qualquer circunstância.
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*Ubirajara Ávila é advogado, sócio do escritório Brito & Ávila Advogados e conselheiro federal da OAB.