A titularidade das obras autorais dos tatuadores - Da fixação à proteção
Por não abranger os recentes avanços tecnológicos, outros diplomas foram editados durante os anos com o intuito de preencher as lacunas deixadas pela Convenção de Berna, tais como o Acordo TRIPS e o Tratado da OMPI sobre o Direito do Autor
quarta-feira, 26 de fevereiro de 2020
Atualizado às 14:01
Ao produzir originariamente obras artísticas e/ou literárias, é concedido ao titular os direitos inerentes a elaboração de tal criação. Sendo assim, para que os direitos inerentes ao titular da obra produzam seus efeitos legais perante terceiros, a obra desenvolvida deve respeitar as disposições previstas na Convenção de Berna.
A Convenção de Berna, elaborada em Berna (Suíça) em 1886, é o título mais antigo a dispor acerca do direito de autor e estabelece a ligação que o autor tem sobre sua obra, assim como a proteção de tal obra nos países aderentes, os chamados "Estados Contratantes". Atualmente, mais de 180 países são aderentes à referida Convenção.
Por não abranger os recentes avanços tecnológicos, outros diplomas foram editados durante os anos com o intuito de preencher as lacunas deixadas pela Convenção de Berna, tais como o Acordo TRIPS e o Tratado da OMPI sobre o Direito do Autor.
De acordo com o Instituto Nacional da Propriedade Industrial, o Acordo TRIPS, da Organização Mundial do Comércio (OMC) de 1994, dispõe acerca dos aspectos dos direitos de propriedade intelectual relacionados ao comércio, estabelecendo regras a serem observadas pelos países membros quanto ao direito autoral e direitos de propriedade industrial.
No mesmo passo, o Tratado sobre Direito do Autor, elaborado pela Organização Mundial da Propriedade Intelectual (OMPI), foi elaborado com o intuito de versar acerca dos direitos de autor no ambiente digital, devido as omissões da Convenção de Berna quanto à temática tecnológica.
A listagem de obras artísticas e literárias presente no artigo 2º da Convenção de Berna apresenta listagem exemplificativa, pois diariamente notamos as modificações que são inseridas no mercado autoral, as quais também necessitam da proteção legal advinda pela legislação.
Referidas obras artísticas e literárias nada mais são do que a materialização de obras que expressam ideias e pensamentos, uma vez que eles por si só não são passíveis de proteção por meio de direito de autor. A materialização de tais ideias e pensamentos possibilita ao autor proteger-se de eventuais atos de concorrência que porventura possam vir a serem praticados por terceiros, sem o consentimento expresso para tanto.
O artigo 2º da Convenção de Berna dispõe, entre outras categorias previstas na listagem, as obras que não estão fixadas num suporte material. Tais obras possuem a faculdade de serem protegidas ou não pelo direito autoral, desde que sejam fixadas em suporte material. No entanto, a legislação vigente não restringe quais seriam os suportes passíveis de serem adotados para tal fixação.
Por não haver restrição quanto a incorporação da obra em qualquer tipo de matéria permanente, a indagação que prevalece é a seguinte: o tatuador tem o reconhecimento do direito de autor pela fixação de sua obra por meio da tatuagem?
Para que possamos nos aprofundar no tema, é necessário entendermos que a tatuagem é um dos sinais culturais mais antigos e conhecidos no mundo. Consiste na aplicação de determinada arte permanente na pele humana. Durante muitos anos a tatuagem era um procedimento irreversível, até que o advento da tecnologia auxiliou na elaboração de técnicas e métodos de remoção, total ou parcialmente, por meio de tratamentos a laser.
A temática é polêmica por envolver os requisitos para que o autor possa ter seus direitos salvaguardados, uma vez que o simples empreendimento de técnica não gera autoria. Algumas premissas devem ser levadas em consideração para que o direito de autor possa ser objeto de proteção, quais sejam: esforço intelectual e originalidade.
Ocorre que, muitas vezes o desenho escolhido para ser tatuado não foi criado originalmente pelo tatuador, podendo ser até mesmo uma repetição de outras obras pré-existentes. Nessas hipóteses, não há o que se falar em reconhecimento do direito de autor do tatuador que fixou a obra, uma vez que não preenche os requisitos inerentes a proteção.
No mesmo sentido, caso a pessoa que recebe a aplicação da obra em sua pele não tenha elaborado originariamente a arte, não é passível de ser titular de direito de autor, uma vez que os direitos patrimoniais autorais não se transferem tão somente pela fixação da obra.
Não há precedentes nos tribunais brasileiros que possam servir como fundamentação para entendermos qual seria a proteção das obras dos tatuadores. O precedente que se aproximaria de uma possível elucidação foi o caso que ocorreu nos Estados Unidos, envolvendo um dos tatuadores mais requisitados pelos atletas americanos, James Hayden.
James foi requisitado pelo atleta LeBron James, jogador profissional de basquete pelo Los Angeles Lakers, a elaborar e fixar três obras em sua pele, as quais foram devidamente registradas pelo tatuador perante o sistema de copyrights norte-americano.
Ocorreu que, os jogos desenvolvidos pela NBA 2K Games reproduziram, com a devida autorização dos direitos de imagem de LeBron James, as tatuagens do jogador, o que gerou demanda judicial envolvendo a discussão a respeito dos direitos autorais de James Hayden.
Tais demandas, até o presente momento, não apresentaram precedentes que pudessem solucionar a titularidade dos direitos de autor inerentes as tatuagens, uma vez que tais litígios sempre são reparados mediante indenização.
No que diz respeito a proteção de tais obras no Brasil, é possível que o tatuador solicite perante a Biblioteca Nacional o registro de tal desenho, para que seja garantida a titularidade da obra, além de prevenir eventuais demandas judiciais, principalmente quando a obra for aplicada em pessoas que tenham notório e divulguem suas imagens conhecimento nacional e internacional.
Sendo assim, concluímos que o suporte material a ser fixado a obra não tem restrição na legislação vigente, razão pela qual poderíamos interpretar que a pele humana é passível de ser considerada como suporte para a materialização da obra feita pelo tatuador.
Nesse contexto, seria possível que o tatuador, caso seja cientificado de que sua obra estaria sendo reproduzida por terceiros, reivindique sua autoria, solicitando ressarcimento à título de danos morais e patrimoniais, pois a aquisição da tatuagem não transfere os direitos autorais patrimoniais existentes sobre ela.
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*Nathália Elizabeth Leite V. da Silva é advogada e sócia da Fagury Maluf Sociedade de Advogados.