Alterações do Direito Penal e seu Processo na lei 13.964/19 II - Juiz das garantias: um avanço providencial
Pena que esse dispositivo, tendente a também garantir imparcialidade e a paridade de armas entre acusação e defesa, tenha sido suspenso, sem justificativa alguma.
terça-feira, 18 de fevereiro de 2020
Atualizado em 19 de fevereiro de 2020 12:14
Mesmo que o instituto do juiz das garantias esteja suspenso sine die, cabem algumas considerações sobre o tema, que poderá até padecer de longo adiamento, mas cuja implantação futura parece ser inevitável, não apenas para assegurar a necessária imparcialidade judicial, mas, também, para atestá-la perante os jurisdicionados.
A nomenclatura - juiz das garantias -, sugere alguma impropriedade, pois não se vislumbra a existência de juiz que exerça a judicatura sem proteger garantias, do acusado e da vítima, devendo zelar pela paridade de armas entre acusação e defesa, atuando, sempre, sob o primado da lei. É possível que parte da oposição que se faz ao novel instituto tenha origem na sugestão de que se trata de um juiz voltado apenas a proteger os interesses de infratores da lei penal, aparente reducionismo sem causa.
A divisão da competência entre dois juízes visa a agregar maior imparcialidade ao julgamento de causas penais, pois o juiz que atue na fase de investigação fica impedido de presidir a instrução do processo e proferir sentença, o que representa um avanço na qualidade da prestação jurisdicional. A sociedade ficaria mais bem atendida por uma atuação judicial insuspeita, e os juízes, livres da pecha de serem parciais ao condenar alguém quando tenham adotado decisões cautelares (medidas de força) na fase do inquérito em desfavor dessa mesma pessoa. Haverá, também, maior independência do juiz ao julgar a causa, livre de decisões adotadas antes do pleno exercício do contraditório em juízo.
De outra parte, a comparação do recém-criado juiz das garantias com o trabalho que desenvolve o Departamento de Inquéritos Policiais de São Paulo (DIPO) não parece ser adequada. O DIPO apresenta algumas distorções, sendo a implantação do juiz das garantias entre nós momento oportuno para a sua extinção definitiva, voltando as investigações instauradas a serem aforadas perante as varas criminais competentes. Além dos frequentes questionamentos atinentes ao juiz natural (haja vista que os juízes que atuam perante o DIPO, ao que se sabe, são nomeados pelo Tribunal de Justiça), um setor com juízes exclusivamente dedicados a examinar apenas inquéritos tende a estabelecer automatismo, aprofundar idiossincrasias, criar "jurisprudência" de primeira instância - como, por exemplo, empenhar maior rigor contra determinada prática criminosa provisoriamente imputada, antes de averiguar sua real existência -, ainda podendo provocar indesejável aproximação de órgãos da polícia judiciária com a magistratura, passível de gerar inconvenientes.
Além do mais, a experiência demonstra que a criação de grandes setores para o exercício da jurisdição quase sempre é dispendiosa, demanda maior aparato material, impõe a aglomeração de funcionários e feitos num mesmo ambiente, tudo isso mais criando dificuldades que racionalizando o trabalho. A atuação dos advogados constantemente também se vê prejudicada diante de tais circunstâncias.
O melhor sistema, quase sem custo adicional e de fácil implantação, seria aquele em que todos os juízes do primeiro grau exercessem as duas funções, apenas não o fazendo no mesmo processo (art. 3º-D do CPP).
A depender das possibilidades impostas por normas de organização judiciária, após cessar a competência do juiz das garantias na fase de investigação e a partir do recebimento da denúncia (art. 3-B, XIV, do CPP), a ação penal seria redistribuída a outro juiz competente do mesmo grau de jurisdição. Quando não houver juízes disponíveis ou em número suficiente - problema que precisa ser urgentemente sanado, independentemente de ser ou não implantado o juiz das garantias - poderá existir o rodízio de que tratou o § único do art. 3-D do CPP1, mas que assim seja disciplinado por regra de organização judiciária.
Ademais, a informatização da Justiça Criminal está próxima de ser concluída, o que vai facilitar ainda mais a implantação do juiz das garantias, sem maiores custos ou traumas.
Considerando que o Poder Judiciário é inerte, assim dependendo de provocação para atuar, interessante verificar que as ações propostas (ações diretas de inconstitucionalidade) e que propiciaram a suspensão de vigência do juiz das garantias são da autoria de associações de juízes e de partidos políticos.
Os primeiros seriam certamente interessados em preservar ao máximo, inclusive de críticas, a imparcialidade da sua atuação e decisões. A separação em duas fases (investigação e ação penal) para juízes diferentes não sugere, a priori, algum vilipêndio ao pleno exercício da judicatura - muito pelo contrário, antes o protege -, sendo, de certa forma, surpreendente a suposta preocupação de que a mudança geraria despesas que o Estado não poderia suportar.
Não se vê a mesma preocupação com despesas orçamentárias quando se trata de implementar leis, por exemplo, que gerem aumento sensível no volume de presos no sistema penitenciário. Não se conhece reclamações ou estudo de impacto com esse viés, isto, sim, com potencialidade de provocar sensível aumento de custos.
Mais razoável supor que a implantação do juiz das garantias aflija a quem queira continuar decretando medidas de força sob holofotes e ruidoso acompanhamento midiático para, mais tarde, voltar à ribalta em razão de condenações a penas altas, consideradas exemplares aos olhos da opinião pública, ao invés de serem justas. Melhor que tudo isso seja mesmo evitado. E, nesse sentido, além de outras vantagens, a implantação do juiz das garantias é um excelente antídoto.
Os partidos que também acionaram a Corte constitucional, vencidos no embate político, valem-se do Judiciário para fazer prevalecer a sua visão fora do campo parlamentar e sem respeitar a posição da maioria, como é peculiar à democracia. Evidente que o acesso à Justiça é e deve ser livre, mas a conveniência de acionar o Poder Judiciário sempre estará sob a responsabilidade de quem o faz, não havendo como se queixar depois que se trata de intromissão abusiva ou ativismo judicial.
Ainda cabe notar que, de roldão, o ministro relator das ações perante o Supremo Tribunal Federal questionando a constitucionalidade da divisão de competência jurisdicional, ao conceder nova liminar, também suspendeu a vigência do artigo 3º-A (algo que o presidente do STF não ousara fazer), que, embora na lei esteja relacionado, por mera localização, à criação do juiz das garantias, tem a função independente de conduzir o nosso processo penal ao sistema acusatório (antes considerado misto), no qual o juiz fica impedido de produzir provas, atividade que deve ser exercida pelas partes (acusação e defesa). Veja-se o lapidar texto legal: "O processo penal terá estrutura acusatória vedadas a iniciativa do juiz na fase de investigação e a substituição da atuação probatória do órgão de acusação" (art. 3-A do CPP).
Pena que esse dispositivo, tendente a também garantir imparcialidade e a paridade de armas entre acusação e defesa, tenha sido suspenso, sem justificativa alguma. O teor desse artigo, cujos efeitos eram de longa data reclamados, teve sua vigência indevidamente adiada em prejuízo de aprimoramento necessário e providencial. O digno ministro prolator da decisão liminar haverá de explicar a que propósito adotou medida que, repita-se, não tem relação com as razões que determinaram a suspensão de vigência do juiz das garantias.
Outra questão que vem sendo debatida é a competência jurisdicional do juiz das garantias estender-se ao recebimento da denúncia (art. 3-A, XIV, do CPP). Esta avaliação deve incluir o que veio disciplinado pelo novo artigo 3º-C, §§ 1º a 4º, do Código de Processo Penal. O juiz da instrução e julgamento não vai conhecer a integralidade dos autos de inquérito policial: "Os autos que compõem as matérias de competência do juiz das garantias ficarão acautelados na secretaria desse juízo, à disposição do Ministério Público e da defesa, e não serão apensados aos autos do processo enviados ao juiz da instrução e julgamento, ressalvados os documentos relativos às provas irrepetíveis, medidas de obtenção de provas ou de antecipação de provas, que deverão ser remetidos para apensamento em apartado" (§ 3º do art. 3º-C do CPP).
Embora a lei não o esclareça, tudo está a indicar que o trâmite será o juiz das garantias, à luz de tudo quanto foi produzido pela investigação, receber a denúncia, sendo o processo, a seguir, distribuído ao juiz da instrução e julgamento, que determinará a citação e a quem será dirigida a resposta (art. 396 do CPP). Com a resposta e os documentos juntados aos autos da ação penal pelas partes, haverá decisão sobre absolver sumariamente (art. 397 do CPP) ou revisar o despacho de recebimento da denúncia pelos motivos previstos no artigo 395 do Código de Processo Penal, já que "as decisões proferidas pelo juiz das garantias não vinculam o juiz da instrução e julgamento" (§ 2º, art. 3-C do CPP). Não sendo o caso de absolvição sumária ou rejeição da denúncia, o juiz designará o início da instrução processual.
A prática e a jurisprudência vão se encarregar de preencher as lacunas da lei, sendo necessário o uso das novas regras legais para sacramentar seus procedimentos.
Mas, induvidosamente, tudo isso representa significativo avanço para o nosso processo penal, sem algum menoscabo à nossa qualificada magistratura, que também será beneficiária da implantação do juiz das garantias, quando ela vier.
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1 A vigência do dispositivo está liminarmente suspensa, sob o correto entendimento de que a matéria é de competência do Poder Judiciário.
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*Antonio Ruiz Filho é advogado criminalista, sócio do escritório Ruiz Filho Advogados. Foi presidente da AASP, diretor da OAB/SP e do IASP.