Condutas e princípios reguladores do contrato
O locador deve atender aos parâmetros legais e contratuais, assim como o inquilino.
terça-feira, 18 de fevereiro de 2020
Atualizado às 12:02
É certo que num pacto sinalagmático, em que as cláusulas devem propiciar a autonomia da vontade, sobretudo pela liberdade de contratar, não se pode superar os limites estabelecidos pela cláusula geral da boa-fé, como orienta o Código Civil brasileiro: "Art. 113. Os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração". E pelo pacta sunt servanda, por meio do qual se estabelece lei entre as partes, a própria obrigatoriedade contratual, compreende-se que comete ato ilícito aquele que exceder manifestamente a boa-fé, que rege as relações jurídicas obrigacionais, como determina o art. 187, do mesmo código.
Portanto, a necessária introdução dá conta de que a harmonia e a probidade são padrões a serem observados desde a fase das tratativas até mesmo depois da conclusão: "Art. 422. Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé" (Código Civil brasileiro). Trata-se da fase pós-contratual, porque a boa-fé objetiva é composta de deveres anexos, quais sejam, da cooperação e da confiança. Não se cogita, por exemplo, desprezar o consumidor sem o devido acompanhamento ou sem atender ao direito de arrependimento que lhe assiste.
Pensemos na hipótese de um locatário ser cobrado, de forma indevida, por questões que extrapolam o âmbito da locação. Após ingressar no bem, resguardado pela posse direta, com todos os poderes que lhe garantem o uso e a fruição, recebe constantes intromissões, no sentido de sujeitar-se, em decorrência da pressão exercida pelo locador, supostamente em condição de poderio econômico e social, à disposição de parte do imóvel para acomodação de pertences do locador. Isto é exercício arbitrário das próprias razões, rechaçado por lei.
A lei do Inquilinato assim define, quanto à proteção do locatário e de sua posse direta: "Art. 22. O locador é obrigado a: II - garantir, durante o tempo da locação, o uso pacífico do imóvel locado; [...]". Logo, se um proprietário ultrapassa esse limite, estará sujeito à responsabilização legal e à penalização imposta por contrato, em cláusula penal, pelo uso indevido, por exceder os limites da locação.
Nesses termos, entende-se que o lesante, ainda que indevidamente se arvore do direito de propriedade, estando caracterizado o ato ilícito, deverá repará-lo. E a reparação, em esfera cível, deve ser exercida pela indenização, com o quantum correspondente para tentar restaurar os prejuízos psicofísicos porventura suportados pelo lesado, em âmbito extrapatrimonial. Não se pode olvidar de uma possível reparação material, pois que o locatário deixa de gozar plenamente de sua posse. O Código Civil brasileiro assim dispõe:
"Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito".
"Art. 927. Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo.
Parágrafo único. Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem".
A jurisprudência e a doutrina pátrias pacificamente amparam o locatário que sofre interferência abusiva do locador, pois que deixou de ter o cuidado necessário, nos limites impostos pelo princípio da boa-fé objetiva, e pelos deveres anexos da confiança, da lealdade e da cooperação:
"Ementa: APELAÇÃO CÍVEL. RESPONSABILIDADE CIVIL. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS. OFENSAS E AMEAÇAS PROFERIDAS PELO LOCADOR CONTRA O LOCATÁRIO COM O OBJETIVO DE DESOCUPAÇÃO DO IMÓVEL. CONDUTA ILÍCITA COMPROVADA. DANOS MORAIS PESSOA JURÍDICA CONFIGURADOS. QUANTUM INDENIZATÓRIO MANTIDO. Trata-se de ação de indenização por danos morais decorrentes de ofensas e ameaças perpetradas pelo locador (réu) contra a empresa locatária (autora) com o objetivo de desocupação do imóvel, julgada procedente na origem. O artigo 927 do Código Civil prevê que aquele que, por ato ilícito causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo. Por sua vez, o artigo 186 do precitado diploma legal menciona que aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito. O conjunto fático-probatório colacionado aos autos é suficiente para comprovar o abuso de direito praticado pelo demandado na tentativa de que a empresa autora desocupasse o imóvel legitimamente locado. A prova testemunhal serviu para corroborar as alegações deduzidas na exordial e comprovar a conduta hostil e abusiva adotada pelo demandado, o qual, constantemente, se dirigia até o imóvel locado à empresa autora proferindo ameaças e ofensas. A questão acerca da desocupação do imóvel se encontrava, à época, sub judice, tramitando duas ações envolvendo a questão (uma renovatória de contrato de locação e outra de despejo) razão pela qual o demandado jamais poderia ter adotado conduta com o objetivo de constringir a parte autora e forçar a desocupação do imóvel. O dano moral vivenciado pela empresa autora restou evidenciado nos autos, mormente pelo depoimento de duas testemunhas que afirmaram terem deixado de comprar e frequentar o estabelecimento autor em razão das constantes confusões causados pelo demandado em frente ao local. Acrescente-se, ainda, que a prova dos autos demonstra que as investidas do demandado contra o imóvel, inclusive retirando telhas do local, causou infiltração que atingiu parte das mercadorias expostas à venda. Por fim, valorando-se as peculiaridades da hipótese concreta e os parâmetros adotados normalmente pela jurisprudência para a fixação de indenização, em hipóteses símiles, o valor de R$ 5.000,00 (...) arbitrado na sentença está adequado, pois de acordo com os critérios da razoabilidade e proporcionalidade. DUPLA APELAÇÃO. APELAÇÕES DESPROVIDAS.(Apelação Cível, Nº 70082350950, Sexta Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Niwton Carpes da Silva, Julgado em: 26-09-2019). (Grifo nosso)".
"Ementa: APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS E MATERIAIS. LOCAÇÃO. CASO CONCRETO. DESPEJO E CORTE DE FORNECIMENTO DE ENERGIA ELÉTRICA E DE ÁGUA EFETUADO PELA LOCADORA. CONDUTA ARBITRÁRIA. As sanções pelo descumprimento contratual devem ser as contratuais e legais, não podendo a locadora providenciar a retirada de bens do imóvel e o corte de luz e de água, sob pena de praticar conduta ilegal e abusiva, consistente no exercício arbitrário das próprias razões. DANOS MATERIAIS. Não estando devidamente comprovados e quantificados os danos materiais sofridos, improcede o pedido, no ponto. DANO MORAL CARACTERIZADO. INDENIZAÇÃO DEVIDA. VERBA INDENIZATÓRIA. CRITÉRIOS DE FIXAÇÃO. Quantum indenizatório que deve atender adequadamente o objetivo de ressarcir os danos sofridos e penalizar a parte demandada, sem implicar, no entanto, enriquecimento indevido à parte autora. SUCUMBÊNCIA. Com o provimento do apelo, devem ser redimensionados os ônus da sucumbência. DERAM PROVIMENTO, EM PARTE, AO APELO. UNÂNIME.(Apelação Cível, Nº 70078050242, Décima Quinta Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Otávio Augusto de Freitas Barcellos, Julgado em: 19-09-2018). (Grifo nosso)".
Deste modo, cumpre salientar que o locador deve atender aos parâmetros legais e contratuais, assim como o inquilino, para não sobejar os prejuízos apontados. Para tal, o locador deve entregar o bem apto à sua finalidade primordial, a locação, não podendo, de modo algum, perturbá-la. Assim, para manter a razoabilidade e o bem-estar, coadunando com o princípio da boa-fé objetiva, ambos contraentes têm de compreender a dimensão da negociação, que, além do mais, a não observância aos seus termos pode gerar consequências após a conclusão do contrato. O locatário, por seu turno, não deve ultrapassar o uso convencionado (art. 23, inciso II, da lei do Inquilinato), sob pena de provocar a rescisão e sofrer as demais cominações legais e contratuais que houver lugar.
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Brasil. Lei 8.245, de 18 de Outubro de 1991. Disponível em: Clique aqui. Acesso em: 14 fev. 2020.
Brasil. Código Civil. Lei n.º 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Disponível em: Clique aqui. Acesso em: 14 fev. 2020.
SANTOS, Adriano Barreto Espíndola. Dissertação apresentada como requisito à obtenção de grau de Mestre, no Curso de Mestrado em Ciências Jurídico-Civilísticas / Menção em Direito Civil, ano letivo 2013/2015, da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra.
Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Apelação Cível, n.º 70078050242, Décima Quinta Câmara Cível, Relator: Otávio Augusto de Freitas Barcellos, Julgado em: 19-09-2018
Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Apelação Cível, n.º 70082350950, Sexta Câmara Cível, Relator: Niwton Carpes da Silva, Julgado em: 26-09-2019.
VILAÇA, Leonardo Ferreira. Breves ponderações sobre a boa-fé objetiva nas relações contratuais. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 5291, 26 dez. 2017. Disponível em: Clique aqui. Acesso em: 12 fev. 2020.
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*Adriano Barreto Espíndola Santos é doutorando em Direito Privado pela Universidade de Salamanca. Mestre em Direito Civil pela Universidade de Coimbra (Diploma reconhecido pela Universidade Federal do Ceará). Especialista em Direito Civil pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Especialista em Direito Público Municipal pela Faculdade de Tecnologia Darcy Ribeiro. Graduado em Direito pela Universidade de Fortaleza. Advogado, inscrito na OAB-CE sob o n.º 22.755.