Herança digital à luz do PL 5.820/19
Uma parte do patrimônio da maioria das pessoas encontra-se nos espaços virtuais, onde é possível guardar músicas, fotos, livros, sendo denominados na sucessão de herança digital, constituindo tais elementos verdadeiras expressões da personalidade.
sexta-feira, 31 de janeiro de 2020
Atualizado às 10:40
Com o advento da internet, dispositivos móveis de acesso a rede mundial de computadores, app's com os mais variados conteúdos e objetivos, assim como toda a facilidade que os programas de mensagens instantâneas proporcionam à população, os brasileiros, em sua grande maioria se utilizam da tecnologia para estabelecer e manter relações sociais.
Assim, criou-se uma realidade virtual que é presente no cotidiano da sociedade, possibilitando as pessoas utilizarem desses meios como forma de expor seus conteúdos e ideias, expressões da personalidade.
Tais expressões dos cidadãos no mundo virtual podem ser obtidas, guardadas e disponibilizadas através da internet, das nuvens, que são locais virtuais para armazenamento.
A tecnologia hodiernamente é utilizada para depositar cheques de forma virtual, sem comparecer na agência bancária, fazer transferências de dinheiro através do aplicativo, assinar contratos de forma digital (certificado digital), colher depoimentos de testemunhas via vídeo conferência, enfim para facilita e dinamizar o comportamento social, a vida de cada indivíduo.
O Código Civil Brasileiro em vigor, idealizado na década de 70, passou por diversas modificações até a data da sua aprovação em 2002, todavia esse não acompanhou as inovações tecnológicas citadas acima, assim como várias outras, tornando-se sinônimo de conservadorismo e procedimento retrógrado, necessitando assim de atualizações para que possa atender aos anseios da sociedade contemporânea.
Inserido neste contexto, de conservadorismo do Código Civil em vigor, encontra-se o codicilo, que significa pequeno testamento, sendo esse um ato de disposição de última vontade pelo qual o titular deixa pequenos legados, apresenta regras para o funeral assim como pode expor outros desejos para serem observados após a morte.
O que é pequeno legado para uma pessoa, pode não ser para outra, tudo depende do referencial, do parâmetro de comparação. O Código Civil de 2002 não quantificou o que é pequeno legado, dificultando o uso do instrumento, contudo a jurisprudência, visando o pragmatismo, limitou o uso do codicilo em 10% (dez por cento) do patrimônio líquido do autor da herança.
Se a pretensão é dispor de patrimônio para alguém após morte, em montante superior ao descrito no parágrafo anterior, o interessado tem que se valer de um procedimento complexo e repleto de requisitos, o testamento.
Uma parte do patrimônio da maioria das pessoas encontra-se nos espaços virtuais, onde é possível guardar músicas, fotos, livros, sendo denominados na sucessão de herança digital, constituindo tais elementos verdadeiras expressões da personalidade.
O Direito da personalidade, como é sabido, é vitalício. Todavia, com a morte do seu titular, atualmente, a maioria desse acervo virtual se perde em decorrência da ausência de um meio eficaz e simples para dispor sobre o mesmo.
No Brasil, a ideia de herança digital é timidamente discutida, entretanto o primeiro passo para instrumentalizar, tornar pragmático a disposição de última vontade quanto a essa parte do patrimônio, corresponde a modificação do Codicilo, atualizando-o, definindo regras claras para sua utilização, assim como criar sua modalidade digital.
A modificação do codicilo representará uma grande evolução no direito das sucessões, tornando seu uso mais fácil e acessível para a população, resolvendo assim inúmeros problemas observados na sucessão legítima.
A alteração apresentada no PL 5.820/19 não modificará o testamento em qualquer de suas espécies, público, cerrado, particular, marítimo, militar ou aeronáutico; em verdade servirá de incentivo para a popularização das disposições de última vontade, sejam essas através de codicilo ou testamento.
O codicilo digital, entre outros benefícios à sociedade brasileira, irá facilitar e desburocratizar o direito das sucessões. A forma digital atende as necessidades de uma sociedade dinâmica, que não para, como também garante maior acesso às pessoas nos termos da Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência.
Em sua forma gravada, em vídeo, assegura maior acessibilidade às pessoas deficientes, que podem comunicar sua vontade em LIBRAS ou se expressar de forma livre, nos termos de sua limitação, alcançando assim o sentido da lei em comento, como também do princípio maior da Constituição Federal de 1988, qual seja, a dignidade da pessoa humana.
Dessa forma, esta proposta para alteração do Código Civil em vigor pretende aprimorar o codicilo, possibilitando que ele seja feito não só na forma tradicional, escrito, mas também em meio eletrônico tornando assim o Código Civil mais moderno de acordo com a realidade de que vivemos.
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*Clodoaldo Moreira dos Santos Júnior é pós-doutor em Direito Constitucional na Itália, advogado, professor universitário, sócio fundador Escritório SME Advocacia, conselheiro da OAB/GO, presidente da Comissão Especial de Direito Civil da OAB/GO, membro consultor da Comissão de Estudos Direito Constitucional da OAB NACIONAL e árbitro da CAMES.
*Tiago Magalhães Costa é especialista em Direito Civil e Processual Civil, advogado, professor universitário, sócio fundador Escritório SME Advocacia e Vice- Presidente da Comissão Especial de Direito Civil da OAB/GO.