A epidemia de inadimplência: 63 milhões de brasileiros
Se no âmbito público nem mesmo a Lei de Responsabilidade Fiscal aprovada em 2000 logrou evitar a falência desses entes, na esfera do cidadão a situação não é melhor.
quinta-feira, 30 de janeiro de 2020
Atualizado às 16:29
São cada vez mais corriqueiras as notícias sobre Estados e municípios quebrados. Goiás, Mato Grosso, Minas Gerais, Rio de Janeiro, Rio Grande do Norte e Rio Grande do Sul são os casos mais sérios. Não é à toa, por outro lado, o surgimento da proposta de extinção de municípios, já que 43% deles não tem receita própria, ou seja, o pagamento de suas contas depende de transferências da União e dos Estados e seria possível destinar melhor os recursos necessários para custear os quase 20 mil cargos públicos que neles existem.
Se no âmbito público nem mesmo a Lei de Responsabilidade Fiscal aprovada em 2000 logrou evitar a falência desses entes, na esfera do cidadão a situação não é melhor.
Em novembro de 2019 existiam 63,8 milhões de pessoas com as contas atrasadas e não pagas, negativadas. Isso representa mais de 30% dos brasileiros e 40,9% dos adultos. Quase a população somada da Argentina e do Chile. Alguns chegam a dizer que temos uma Itália inadimplente dentro do Brasil.
E 80% dos endividados sofre com ansiedade e depressão, além de outras tantas consequências negativas para a saúde física e emocional. São quase 50 milhões de doentes, diminuindo a produtividade de empresas e comprometendo o bem-estar de famílias. Quem está com o "nome sujo" enfrenta barreiras até para conseguir emprego, em que pese o reconhecimento da ilegalidade da prática pelo Poder Judiciário.
As instituições financeiras são credoras do maior volume dessas dívidas, o que demonstra a lamentável situação de milhões de brasileiros, reféns de juros e encargos exorbitantes. Aliás, 40% dos atendimentos nos Procons brasileiros são relativos à renegociação de dívidas.
É diante desse quadro preocupante que devem ser apoiadas, entre outras, as iniciativas adotadas para ampliar a concorrência no sistema financeiro, via fintechs, a fixação de limite para o pagamento rotativo do cartão de crédito e o estabelecimento de um teto para os juros do cheque especial, dado o chamado analfabetismo financeiro que acomete parcela expressiva dos brasileiros.
Mas não somente os brasileiros, pois pesquisa realizada em 148 países pelo Gallup concluiu que dois em cada três adultos não possuem conhecimento financeiro básico. São analfabetos financeiros. O Brasil, por sinal, ficou na 68ª posição, próximo da média.
Uma das particularidades do Brasil nesse aspecto é que, no mundo, 53% das pessoas que tem acesso a serviços bancários são alfabetizadas financeiramente, enquanto os brasileiros são 40%, a minoria.
Quanto maior a inadimplência, mais amplas as restrições para o parcelamento de compras e mais caros os juros nos empréstimos, alimentando um ciclo vicioso contrário ao crescimento econômico e ao emprego.
Os motivos da inadimplência são vários, incluindo fortemente o desemprego, mas são expressivos aqueles relacionados ao aspecto comportamental e ao puro e simples desconhecimento sobre como lidar com o dinheiro.
Nessa linha, e de forma mais consistente e estrutural, é que deve ser vista a decisão do Ministério da Educação de definir que as escolas públicas e privadas devem incluir a educação financeira em sua grade curricular a partir do ensino básico.
De fato, a partir de 2020 as escolas devem desenvolver junto aos alunos assuntos como taxas de juros, aplicações financeiras, tributos, poupança, inflação, controle das finanças, entre outros.
Na avaliação do PISA (Programa Internacional de Avaliação de Alunos), em 2015 o Brasil ficou em último lugar entre 15 países em competência financeira. Segundo ele, a maioria dos estudantes não consegue reconhecer o valor de uma simples despesa ou interpretar documentos relevantes para o seu dia a dia financeiro.
Desde 2010, com a criação da Estratégia Nacional de Educação Financeira, os brasileiros contam com uma política pública que busca fortalecer a cidadania ao fornecer e apoiar ações que ajudem a população a tomar decisões financeiras mais autônomas e conscientes, inclusive disponibilizando livros didáticos, cursos virtuais e outros materiais informativos para jovens e adultos. Faltava acoplar essa experiência ao mundo da educação dos jovens, o que agora foi efetuado.
A busca por soluções é tão premente que a Câmara dos Deputados, em junho de 2019, instituiu uma comissão especial para tratar do superendividamento e desarquivou o projeto de lei 3.515/15, já aprovado pelo Senado há quatro anos, dando-lhe o regime de prioridade.
Originário do Senado, o projeto foi apresentado em 2012, a partir da conclusão de trabalho de uma comissão de juristas voltada a tratar da concessão do crédito ao consumidor e ao seu superendividamento cada vez mais comum.
Trata-se, segundo a justificação, de promover o acesso ao crédito responsável e à educação financeira, de forma a evitar a exclusão social e o comprometimento do chamado mínimo existencial. Com base nos princípios da boa-fé, da função social do crédito e do respeito à dignidade humana, a proposta regula o direito à informação, a publicidade, a intermediação e a oferta de crédito, criando a figura do assédio de consumo, visando proteger de forma especial os idosos e os analfabetos, sendo os primeiros aqueles cujo número mais tem crescido entre os devedores.
A proposta, entre outras várias medidas, ainda proíbe a oferta que faça referência a crédito "sem juros", "gratuito", "sem acréscimo", "taxa zero" ou expressão semelhante; a indicação de que a operação pode ser concluída sem a consulta a serviços de proteção ao crédito ou sem avaliação da capacidade de reembolso; ou dificulte a compreensão sobre os riscos e ônus da contratação. Tarda demais essa disciplina, diga-se de passagem.
O relatório apresentado sobre o projeto na comissão especial da Câmara, em novembro de 2019, reconhece que a situação atual de endividamento é insustentável e que o Parlamento deve produzir uma resposta firme e efetiva contra essa mazela que assola o País.
Nada mais verdadeiro. Quando o projeto de lei foi apresentado no Senado, em 2012, tínhamos em torno de 50 milhões de inadimplentes. Oito anos depois temos quase 14 milhões acrescidos a esse número impressionante, um aumento de 28%, ou quase 1,7 milhão ao ano.
A mobilização da sociedade em torno do assunto é essencial, seja para vencer o analfabetismo financeiro, seja para aprimorar propostas como a do referido projeto, visando prevenir o endividamento e combater os abusos e excessos evidentes contra parcela expressiva dos brasileiros, tratados como párias.
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*José Constantino Bastos Jr. é advogado, ex-secretário nacional de racionalização e simplificação.