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Jaz a interceptação telefônica e surge a investigação pelo malware: será uma realidade?

O problema para a efetivação do flagrante era que o teor probatório para possível prisão vivia na escuridão do WhatsApp, daí, como acessá-lo?

terça-feira, 14 de janeiro de 2020

Atualizado em 15 de janeiro de 2020 12:47

Lembro-me que numa remota aula de Direito Penal indaguei ao meu professor se teria validade uma possível prova extraída e obtida por intermédio de um vírus computacional para fins de um decreto condenatório.

É certo que naquela época recém-saído da adolescência estava eufissurado pelas histórias de um dos maiores hackers dos Estados Unidos, quem seja, Kevin Mitnick, principalmente após ler seu livro intitulado como a Arte de Enganar. 

A resposta do meu preceptor fora sucinta, preferindo não aprofundar, afirmando se não há lei prevendo tal procedimento certamente qualquer prova obtida por este meio seria nula eis que violaria o princípio da reserva legal. Contive-me, mas, não me aquietei. 

A fim de esquentar a discussão indaguei a possibilidade de utilizar como analogia os requisitos da lei 9.296 de 24 de Julho de 1996 retratadora da interceptação telefônica.

Sendo eu um neófito aluno prossegui: Ora, o que difere do grampo telefônico para a inserção de um vírus computacional é apenas o meio executório e operacional, veja que a finalidade e as informações a serem obtidas possuem o mesmo cerne da interceptação telefônica, inclusive o bem jurídico tutelado e por ora tolhido seria o mesmo. 

Meu professor à época reiterou sua resposta e hodiernamente o STJ corroborou essa resposta conforme doravante se explicitará. 

A interceptação telefônica pode ser definida como a captação da comunicação alheia por um terceiro sem o conhecimento dos interlocutores e a mesma legislação permite a interceptação telemática.

E para qual finalidade? Ora, serve como produção de provas àelucidação de crimes. 

Para a sua efetivação são necessários que se respeitem alguns requisitos, quais sejam (a) somente é possível para malwarefins criminais, ou seja, apenas o juízo criminal pode autorizá-la de modo prévio, não é possível realizar a interceptação e depois obter a chancela judicial (b) incide sobre crimes com pena de reclusão, vedada sua autorização em face de crimes com pena tão e somente de detenção (c) é necessário haver indícios razoáveis de autoria ou participação em infração penal (d) por ser uma medida extrema deve ser requerida após frustrados outros meios de investigação, dentre outros requisitos.

A interceptação telefônica de regra é solicitada pela autoridade policial, bem como, pelo Ministério Público, nada obsta o magistrado deferi-la de ofício - o que muitos não concordam por ferir o princípio acusatório. 

É importante destacar que quando se pede a interceptação telefônica é recomendável que além do número telefônico/celular que se almeja a interceptação que esta também abranja o número IMEI do celular que nada mais é que a identificação internacional do equipamento móvel, pois, caso o investigado troque de chip para dificultar investigações o número do IMEI permite que a operadora mesmo assim o identifique.

Nota-se então que a participação das operadoras telefônicas é primordial à efetivação da interceptação telefônica - certo também que existem equipamentos que podem dispensar a conjugação entre Justiça e operadoras telefônicas como é o caso das maletas utilizadas pela ABIN1 ao menos é o que se sabe teoricamente.  

Com a globalização em alta novas ferramentas de comunicação foram criadas, a exemplo do WhatsApp, Telegram e Skype dentre outras tecnologias que permitem a comunicação rápida e precisa entre os usuários.

Ocorre que as plataformas mencionadas a fim de proteger a privacidade de seus usuários adotam um sistema de criptografia que impedem a interceptação do conteúdo comunicacional das mensagens enviadas mesmo quando requisitadas pela Justiça, é dizer, a criptografia adotada impossibilita que o Estado-Juiz dotado de soberania, em tese, tenha acesso às conversas consignadas o que vêm acarretando impotência e dissabor às autoridades competentes, não à toa que o WhatsApp já fora bloqueado algumas vezes por algumas horas em território nacional. 

O WhatsApp possui criptografia ponta a ponta que garante que somente o usuário A que é o remetente e o usuário B destinatário são os únicos que podem visualizar o que é enviado. 

Afirma que mais ninguém tem acesso a elas, entretanto, essa informação é rechaçada por peritos da Polícia Federal2 que afirmam que o WhatsApp mesmo não tendo acesso ao conteúdo das conversas poderia falsear as chaves que permitem a descriptografia e remetê-las a um terceiro observador viabilizando a interceptação das conversas.  

Diante do limbo jurídico perpetrado entre as autoridades estatais e o WhatsApp o STF realizou audiência pública no ano de 20173, basicamente o conteúdo do debate fora a possibilidade da interceptação do conteúdo das conversas criptografadas, sua impossibilidade técnica e ainda a possibilidade do aplicativo se adaptar à realidade brasileira. 

A empresa de mensagens instantâneas basicamente afirmou que não mudaria sua filosofia interna calcada na privacidade extrema para atender interesses outros eis que esse é o seu sinal identificador.

Daí concluir que de fato as autoridades brasileiras jamais terão acesso ao conteúdo das conversas entre os usuários - a não ser que advenha legislação específica regulamentando o aplicativo no país sob pena de bani-lo, o que também não parece viável diante da sua idolatria pelos brasileiros4.

Se por um lado a criptografia permite a privacidade entre as conversas lícitas construídas pelos usuários, por outro lado, a mesma criptografia permite que o WhatsApp seja uma terra sem lei possibilitando que criminosos construam suas empreitadas criminosas à revelia do Estado que impotente não consegue interceptar o conteúdo das ilícitas comunicações.

Assim, diante da incapacidade técnica de interceptar o conteúdo comunicacional do WhatsApp os agentes da lei tentam de modo ardiloso criar técnicas utilizando tanto mecanismos jurídicos quanto fáticos no intuito de verificar o que é conversado no WhatsApp por indivíduos já suspeitos de crimes graves e um caso chamou atenção. Vejamos. 

O caso se deu em Santa Catarina quando um Delegado de Polícia e seus agentes policiais percebendo que determinado indivíduo, em tese, praticava o crime de tráfico de drogas e associação ao tráfico, resolveram angariar elementos para um possível flagrante em escala maior. 

O problema para a efetivação do flagrante era que o teor probatório para possível prisão vivia na escuridão do WhatsApp, daí, como acessá-lo?

No intuito de combater o possível tráfico de drogas resolveu o Delegado requerer ao Estado-Juiz autorização para apreensão do celular do suposto malfeitor. 

Após a apreensão do celular e de posse do instrumento o Delegado de Polícia requereu ao Juiz a interceptação telefônica e telemática do celular apreendido o qual fora deferido.

Ora, repisa-se, como seria possível interceptar a comunicação se o WhatsApp possui criptografia ponta a ponta?

Diante desse óbice os agentes da lei tiveram que trabalhar uma engenhosidade um tanto quanto precária: de posse do celular apreendido conectaram-no na plataforma digital WhatsApp Web via Código QR e selecionaram a opção mantenha-me conectado, daí em diante devolveram o celular ao suspeito e passaram a monitorá-lo pela plataforma Web até conseguirem as informações das quais já receavam preexistir a fim de homologar o flagrante, e não erraram, dias após prenderam o indivíduo, já que notaram conversas que indicavam e levavam a possíveis empreitadas criminosas. 

O referido caso chegou ao Superior Tribunal de Justiça que decidiu pela impossibilidade da analogia entre a lei de interceptação telefônica e o espelhamento de conversas no WhatsApp, conforme realizado pelos policiais.  

Parece-me que os agentes policiais fizeram uso da engenharia social ao apreender o celular do indivíduo e depois devolvendo o aparelho sob a possível alegação de que nada de ilícito fora encontrado a fim de confortar o suspeito para que este permanecesse sob uso do telefone para que daí em diante fosse possível o precário monitoramento.

Os argumentos utilizados pelo STJ para repelir a analogia entre o mencionado espelhamento e a lei da interceptação telefônica são interessantíssimos e ousarei transcrever alguns trechos ipsi litteris.

Nas palavras do STJ (a) "ao contrário da interceptação telefônica, no âmbito da qual o investigador de polícia atua como mero observador de conversas empreendidas por terceiros, no espelhamento via WhatsApp Web o investigador de polícia tem a concreta possibilidade de atuar como participante tanto das conversas que vêm a ser realizadas quanto das conversas que já estão registradas no aparelho celular, haja vista ter o poder, conferido pela própria plataforma online, de interagir nos diálogos mediante envio de novas mensagens a qualquer contato presente no celular e exclusão, com total liberdade, e sem deixar vestígios, de qualquer mensagem passada, presente ou, se for o caso, futura. (b) ao contrário da interceptação telefônica, que tem como objeto a escuta de conversas realizadas apenas depois da autorização judicial (ex nunc), o espelhamento via Código QR viabiliza ao investigador de polícia acesso amplo e irrestrito a toda e qualquer comunicação realizada antes da mencionada autorização, operando efeitos retroativos (ex tunc) (c) ao contrário da interceptação telefônica, que é operacionalizada sem a necessidade simultânea de busca pessoal ou domiciliar para apreensão de aparelho telefônico, o espelhamento via Código QR depende da abordagem do indíviduo ou do vasculhamento de sua residência, com apreensão de seu aparelho telefônico por breve período de tempo e posterior devolução desacompanhada de qualquer menção, por parte da Autoridade Policial, à realização da medida constritiva, ou mesmo, porventura - embora não haja nos autos notícia de que isso tenha ocorrido no caso concreto -, acompanhada de afirmação falsa de que nada foi feito5".

Nítido que se é impossível a priori realizar o espelhamento das conversas do WhatsApp com base na lei de interceptação telefônica é certo que inexiste legislação no cenário atual que permita o acesso as conversas do WhatsApp - seja por qual meio for, ou via Código QR, ou por algum código malicioso instalado no celular do suspeito -  pois, conforme o STJ a obtenção de conversas pretéritas e futuras de modo irrestrito violariam cabalmente à privacidade do indivíduo dentre outros princípios basilares do direito, eis que funcionaria como forma de garimpo já que não é possível realizar uma interceptação certa e determinada (ex tunc), é dizer, o acesso é ilimitado (ex nunc e ex tunc).

Ainda assim, o acesso permitiria ao terceiro observador forjar novas conversas ou ainda excluí-las sem possibilidade de restauração a posteriori via perícia, pois, sustenta o WhatsApp que as conversas não permanecem em nenhum servidor, ou  seja, a integridade da diligência seria temerária e duvidosa, pois, totalmente unilateral. 

Entretanto, em que pese inexistir legislação no Brasil que viabilize as autoridades seja por qual meio tecnológico for a interceptar e ter acesso as conversas do WhatsApp a verdade é que existem países que já legislaram sobre o tema e inclusive já desenvolveram malwares que podem ser instalados tanto remotamente nos telefones-celulares quanto fisicamente a fim de ter acesso às conversas criptografadas e um desses países é a Alemanha que passou a utilizar programas espiões para interceptar a comunicação tanto do WhatsApp quanto do Skype6, sem mencionar os Estados Unidos que já possuem essa técnica - dentre outras, já que são a polícia do mundo, basta lembrarmos de seu programa de vigilância delatado por Edward Snowden.

É certo que se tal software espião fosse utilizado no Brasil também se enquadraria na interpretação do Superior Tribunal de Justiça, já que muito provavelmente viabilizaria o acesso às mensagens em tempo real, bem como, acesso às mensagens pretéritas e futuras, bem como ainda poderia permitir o investigador criminal ser protagonista da conversa, podendo criar ou deletar as mensagens renunciando seu caráter de mero observador.

Na ausência de legislação atual sobre o tema o Ministro da Justiça Sérgio Moro até que tentou emplacar no projeto de lei Anticrime um dispositivo legal que poderia dar ar de legalidade ao programa espião no Brasil mediante uma alteração na lei de interceptação telefônica com o acréscimo do Art. 9º-A que passaria a prever. Vejamos:

"Art. 9º-A. A interceptação de comunicações em sistemas de informática e telemática poderá ocorrer por qualquer meio tecnológico disponível desde que assegurada a integridade da diligência e poderá incluir a apreensão do conteúdo de mensagens e arquivos eletrônicos já armazenado em caixas postais eletrônicas7".

Nota-se que o dispositivo ao mencionar "qualquer meio tecnológico disponível desde que assegurada a integridade da diligência" permitira facilmente a utilização de malwares como forma de obtenção de provas para embasar investigações ou ainda ensejar um decreto condenatório, encontrando-se óbice tão e somente em face do argumento do acesso aos dados ex nunc e ex tunc, todavia, o Estado deve acompanhar o avanço tecnológico que muitas das vezes é utilizado de forma criminosa por pessoas mal-intencionadas, conquanto, àquele permanece emparelhado. 

É certo que uma análise profunda do dispositivo poderia colocá-lo na linha tênue entre a constitucionalidade e a inconstitucionalidade, entretanto, com os avanços tecnológicos, repisa-se, o Estado-Juiz não pode permanecer inerte e impotente diante da onda de crimes que o aplicativo por via transversa possivelmente resguarda. 

Não havendo ainda regulamentação legal desse modo anômalo de investigação é verdade que já existem notícias que certas autoridades brasileiras já fizeram uso do programa espião em algumas investigações conforme noticiado na mídia8.

A bem da verdade, se de fato autoridades brasileiras utilizaram o programa espião no intuito de driblar a criptografia e iniciar investigações quer me parecer que qualquer informação obtida por intermédio do malware é ilícita justamente por inexistir lei prevendo essa metodologia complexa de investigação, inclusive por ainda ser duvidosa a integridade da diligência. 

É evidente que se deve respeitar o manto constitucional dos direitos fundamentais, quais sejam, a intimidade e privacidade, bem como o sigilo de dados telefônicos, telemáticos e seus correspondentes fluxo de comunicações (Art. 5º, incisos X e XII) resguardados pela nossa Carta Magna.  

Por outro lado, sendo essas novas tecnologias um instrumento anômalo que armazenam dados telefônicos e telemáticos já passíveis de interceptação no que toca ao seu fluxo de comunicação quando atendidos os requisitos legais não vislumbro inconstitucionalidade caso fosse realçado o não mantido Artigo 9º-A do Projeto Anticrime elaborado pelo então Ministro da Justiça Sérgio Moro que previa: 

"Art. 9º-A. A interceptação de comunicações em sistemas de informática e telemática poderá ocorrer por qualquer meio tecnológico disponível desde que assegurada a integridade da diligência e poderá incluir a apreensão do conteúdo de mensagens e arquivos eletrônicos já armazenado em caixas postais eletrônicas".  

Até porque o que difere do grampo telefônico para a inserção de um vírus computacional inserido remotamente ou manualmente por intermédio da engenharia social a fim de interceptar dados telefônicos, telemáticos e seus correspondentes fluxos de comunicações - continuo a insistir - é apenas o meio executório e operacional, mas veja que a finalidade e as informações a serem obtidas possuem o mesmo cerne da interceptação telefônica, inclusive o bem jurídico tutelado e por ora tolhido seria o mesmo, ou seja, a rigor não há novidade. 

O arguido problema do investigador protagonista que poderia ter acesso em tempo real às conversas, inclusive forjando ou excluindo mensagens poderia ter sua idoneidade comprovada se da interceptação realizada comprovasse a presença de elementos probatórios de conduta criminal preexistentes do investigado.

É dizer, se restar comprovado que dá interceptação todas as circunstâncias apontam para o investigado como delinquente e dessa interceptação também se adquire materialidade suficiente acerca de um juízo reprovável em face do suspeito - estas derivadas da interceptação - não há que se imaginar que o agente estatal criaria um teatro ensaiado para lesar outrem, daí ser possível ao meu sentir a interceptação em tempo real em face de crimes graves ou indícios destes nos moldes dos requisitos já conhecidos pela lei de interceptação telefônica. 

Lembrando que a interceptação em tempo real não é uma vontade do Estado, mas, uma circunstância ínsita à própria tecnologia e em alguns países já é uma realidade e quem sabe se já não praticada aqui conforme algumas notícias pesquisadas9; logo, ao que me parece, é plenamente possível a investigação e a obtenção de provas por intermédio do malware ou qualquer outro meio tecnológico disponível que possa interceptar dados telefônicos e telemáticos e seus fluxos comunicacionais inerentes, desde que advenha legislação acerca do tema nos moldes do artigo 9-A proposto pelo ministro da Justiça Sérgio Moro no projeto de lei anticrime que seria inserido na lei de interceptação telefônica do qual infelizmente não fora mantido. 

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*Carlos Henrique de Souza Pimenta é advogado no escritório Fábio Berti Advogados.

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