A desconsideração da personalidade jurídica no âmbito trabalhista à luz da lei da liberdade econômica
Uma vez que a alteração trazida com a lei trouxe mudanças significativas para a jurisprudência - que anteriormente aplicava o incidente de desconsideração da personalidade jurídica visando a proteção dos trabalhadores, entendemos que deverá haver uma construção jurisprudencial sobre o tema, no âmbito da Justiça do Trabalho.
quinta-feira, 26 de dezembro de 2019
Atualizado em 27 de março de 2020 08:41
Em 20 de setembro de 2019, a MP 881/19, que estabelecia normas de proteção à livre iniciativa e ao livre exercício da atividade econômica, estabelecendo novas regras para minimizar a burocracia, foi convertida na lei 13.874/19.
Com isso, para atingir seu objetivo, a lei em questão alterou/revogou diversos artigos do Código Civil, da CLT e de outras normas esparsas. No entanto, sob a ótica do Direito do Trabalho, a alteração que mais chamou a atenção diz respeito às novas regras previstas para a desconsideração da personalidade jurídica.
De início, cabe mencionar que, o art. 20, do Código Civil de 1916, caracterizava pessoa jurídica como aquela que: "tem existência distinta da dos seus membros", sendo defeso "constituir, sem prévia autorização, as sociedades, as agências ou os estabelecimentos de seguros, montepio e caixas econômicas".
Em que pese o Código Civil de 2002 ("CC/02") não tenha trazido/mantido, em seus artigos, o conceito/definição sobre esse instituto, a doutrina acabou por suprir essa lacuna e passou a conceituar a pessoa jurídica da seguinte forma:
Para Flávio Tartuce, "as pessoas jurídicas, também denominadas de pessoas coletivas, morais, fictícias ou abstratas, podem ser conceituadas como sendo conjunto de pessoas ou de bens arrecadados, que adquirem personalidade jurídica própria, por uma ficção legal" (...) "a pessoa jurídica é capaz de direitos e deveres a ordem civil, independentemente dos membros que a compõem, com os quais não tem vínculo, ou seja, sem qualquer ligação com a vontade individual das pessoas naturais que a compõem, em outras palavras há uma autonomia da pessoa jurídica em relação aos seus sócios e administradores. Em regra, os seus componentes somente responderão por débitos dentro dos limites do capital social, ficando a salvo o patrimônio individual dependendo do tipo societário"1.
Em razão da definição de que a personalidade da pessoa jurídica se distingue da de seus membros/sócios, as empresas, eventualmente, acabavam desvirtuando seus "princípios conceituais", uma vez que era possível a exclusão da responsabilidade de seus sócios.
E, assim, como forma de mitigar eventuais abusos e fraudes cometidos pela pessoa jurídica e seus administradores, à própria sociedade ou a terceiros, surgiu o instituto da teoria da desconsideração da personalidade jurídica da sociedade (Disregard of legal entity doctrine).
No Brasil, o primeiro diploma legal a tratar do instituto da teoria da desconsideração da personalidade jurídica da sociedade foi o Código de Defesa do Consumidor ("CDC"), em seu art. 28:
Art. 28. O juiz poderá desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade quando, em detrimento do consumidor, houver abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social. A desconsideração também será efetivada quando houver falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração.
Após, referido instituto foi inserido no Código Civil de 2002, pelo que deixou-se de utilizar a expressão "teoria":
Art. 50. Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial, pode o juiz decidir, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica. (redação anterior)
A partir de então, os entendimentos doutrinários quanto à aplicabilidade do incidente de desconsideração da personalidade jurídica diferem.
Em contrapartida, os dois entendimentos abaixo citados, subdividem referido incidente em duas vertentes ou teorias, com as suas devidas peculiaridades, de modo a ensejar a responsabilidade dos administradores e/ou de sócios da pessoa jurídica, beneficiados direta ou indiretamente pelo abuso.
O primeiro entendimento defende que há duas vertentes para a realização da desconsideração da personalidade jurídica, sendo que a primeira vertente possui critério subjetivo, o qual implica prova do abuso de poder ou da fraude na utilização da autonomia patrimonial da pessoa jurídica.
Referida possibilidade está inserida, dentre outros dispositivos, no art. 50, do CC/02 (redação anterior), e no art. 28, do CDC.
A segunda vertente possui critério objetivo, aplicável a partir do momento em que a pessoa jurídica deixa de ter bens, não adimplindo suas obrigações.
Nesse sentido, frise-se que o limite temporal da responsabilidade do sócio retirante, é de até 2 (dois) anos, conforme inteligência do art. 1.032, do CC/02:
Art. 1.032. A retirada, exclusão ou morte do sócio, não o exime, ou a seus herdeiros, da responsabilidade pelas obrigações sociais anteriores, até dois anos após averbada a resolução da sociedade; nem nos dois primeiros casos, pelas posteriores e em igual prazo, enquanto não se requerer a averbação.
Dessa forma, em tese, a responsabilidade do sócio retirante abrange, inclusive, as dívidas já constituídas quando de sua saída do quadro societário e remanesce por dois anos, contados da averbação do instrumento de alteração contratual.
Ocorre que existem doutrinas que defendem que o art. 28, do CDC prevê a teoria objetiva ou menor da desconsideração da personalidade jurídica, pela qual basta a insuficiência de bens da pessoa jurídica, sendo irrelevante a análise da conduta dos seus sócios.
Outra parte da doutrina subdivide o incidente de desconsideração da personalidade jurídica em teoria menor e teoria maior.
A teoria menor diz respeito à aplicação do art. 28, do CDC, para a proteção do vulnerável das relações jurídicas, visto que autoriza a desconsideração quando houver insolvência, sem a necessidade de comprovação de abuso de direito.
Por outro lado, a teoria maior defende que, para que ocorra o incidente de desconsideração da personalidade jurídica, deve ser provado o "abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial", conforme disciplinado no art. 50, do CC/02.
No direito do trabalho, caso sejam observados os critérios (subjetivo ou objetivo) para aplicação do referido incidente de desconsideração da personalidade jurídica, dada a identidade principiológica existente entre o diploma consumerista e o trabalhista, em especial no que tange ao princípio da proteção do hipossuficiente na relação jurídica, a doutrina e jurisprudência justrabalhista têm adotado a segunda teoria em razão da dificuldade que tem o trabalhador para demonstrar a conduta culposa dos sócios.
No que tange ao segundo entendimento doutrinário, Valentin Carrion dispõe que:
"No direito do trabalho, tem sido aplicada nas hipóteses de abuso de direito, excesso de poder, como os casos de violação da lei ou do contrato, meios fraudulentos e insuficiência de bens da empresa. Amador Paes de Almeida admite-a quando os administradores utilizam a pessoa jurídica, aparentemente na forma da lei, com o desvio de sua exata função: 1) uso abusivo da sociedade; 2) fraude, como artifício para prejudicar terceiros, levados a efeito "dentro de presumida legalidade"; 3) confusão patrimonial; 4) insuficiência do capital social "para o exercício de sua atividade empresarial". O incidente de desconsideração da personalidade jurídica do novo CPC, art. 133, poderá ser utilizado no processo do trabalho, assim o art. 855-A e assim já indicava o TST (IN 39/16, art. 6º). Pode ser instaurado a pedido da parte ou do Ministério Público, quando lhe couber intervir no processos. É cabível em qualquer fase do processo, inclusive pode ser pedido na petição inicial"².
Nesta hipótese, considera-se incompatível com o processo do trabalho o incidente de desconsideração da personalidade jurídica previsto nos arts. 133 a 137, do CPC, em razão dos princípios do impulso oficial, da concentração dos atos, da celeridade e da efetividade, da simplicidade das formas e da irrecorribilidade das decisões interlocutórias, pois pressupõe iniciativa da parte; suspensão do processo; prova dos requisitos da desconsideração da personalidade jurídica pelo credor; exigência de contraditório prévio e previsão de recurso imediato.
Ademais, aplica-se referida tese sob o argumento de que o art. 6º, da Instrução Normativa 39, do TST, assegura a iniciativa do Juiz na fase de execução, motivo pelo qual se mostra incompatível a aplicação do incidente de desconsideração à execução trabalhista:
Art. 6°. Aplica-se ao Processo do Trabalho o incidente de desconsideração da personalidade jurídica regulado no Código de Processo Civil (arts. 133 a 137), assegurada a iniciativa também do juiz do trabalho na fase de execução (CLT, art. 878).
Dessa forma, sob qualquer ângulo, a doutrina e a jurisprudência aplicavam as duas doutrinas, considerando a linha mais benéfica ao trabalhador, em razão do princípio da proteção do hipossuficiente na relação jurídica.
Todavia, o que mais chama a atenção em relação à alteração ocorrida no Código Civil, é o art. 50, que dispõe sobre a desconsideração da personalidade jurídica.
Isso porque, após promulgada a lei, será mais difícil a apresentação de incidente de desconsideração da personalidade jurídica, uma vez que seu cabimento será restringido, aplicando-se somente em casos de confusão patrimonial e desvio de finalidade, conforme redação atual:
Art. 50. Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial, pode o juiz, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, desconsiderá-la para que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares de administradores ou de sócios da pessoa jurídica beneficiados direta ou indiretamente pelo abuso.
Dentre as alterações trazidas pela lei, destaca-se a possibilidade de desconsiderar a personalidade jurídica somente dos administradores ou de sócios beneficiados, ainda que indiretamente, pelo abuso.
A definição de "desvio de finalidade" encontra-se no parágrafo 1º do artigo, ressaltando-se que há o desvio de finalidade quando a pessoa jurídica é utilizada com o propósito de lesar credores e praticar atos ilícitos de qualquer natureza, não constituindo desvio de finalidade a mera expansão ou a alteração da finalidade original da atividade econômica específica da pessoa jurídica.
Ocorre que referido parágrafo foi modificado, uma vez que a redação anterior conferida pela MP 881/19 determinava que somente poderia ocorrer o "desvio de finalidade" caso a pessoa jurídica fosse utilizada de forma dolosa.
O parágrafo 2º esclarece que a "confusão patrimonial" é a ausência de separação de fato entre os patrimônios, caracterizada por: (1) cumprimento repetitivo pela sociedade de obrigações do sócio ou do administrador ou vice-versa; (2) transferência de ativos ou de passivos sem efetivas contraprestações, exceto os de valor proporcionalmente insignificante; e (3) outros atos de descumprimento da autonomia patrimonial.
O parágrafo 4º dispõe, expressamente, que a mera existência de grupo econômico sem a presença dos requisitos (desvio de finalidade e confusão patrimonial) não autoriza a desconsideração da personalidade da pessoa jurídica.
Dessa forma, uma vez que a alteração trazida com a lei trouxe mudanças significativas para a jurisprudência - que anteriormente aplicava o incidente de desconsideração da personalidade jurídica visando a proteção dos trabalhadores, entendemos que deverá haver uma construção jurisprudencial sobre o tema, no âmbito da Justiça do Trabalho, uma vez que a aplicação do art. 50, do CC/02 confrontasse com o princípio da proteção do hipossuficiente na relação jurídica.
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1 TARTUCE, Flávio. Direito Civil. Lei de Introdução e Parte Geral. 14.ª edição, Rio de Janeiro: Forense, 2018, p. 245 e 269.
2 CARRION, Valentin. Comentários à Consolidação das Leis Trabalhistas: legislação complementar, jurisprudência /Valentin Carrion; atualizado por Eduardo Carrion. 43.ª edição, São Paulo: Saraiva Educação, 2019, p. 766.
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*Ana Lúcia Pinke Ribeiro de Paiva é advogada do escritório Araújo e Policastro Advogados.
*Flavia Sulzer Augusto Dainese é advogada do escritório Araújo e Policastro Advogados.
*Marília Chrysostomo Chessa é advogada do escritório Araújo e Policastro Advogados.