Sentença é sentimento
Para melhor compreender a triangulação processual, basta lançar mão da dialética hegeliana, aquela que se compreende na síntese dos opostos.
domingo, 24 de novembro de 2019
Atualizado em 25 de novembro de 2019 07:09
Em recurso interposto perante a 8ª Turma do Tribunal Regional Federal-4, de uma ação penal que não fazia parte do núcleo da força tarefa da Lava Jato, a juíza Gabriela Hardt teve sua sentença anulada por ter "copiado e colado" partes dos argumentos jurídicos lançados pelo Ministério Público Federal, sem qualquer referência da fonte, adotando-os como razão de decidir.1 Tal fato despertou a atenção dos advogados do ex-presidente Lula que, em sede de recurso perante o mesmo Tribunal, dentre outras teses, elegeram a utilização pela juíza de alguns argumentos do então juiz Sérgio Moro, colecionados no caso conhecido como tríplex do Guarujá.
O capítulo da Constituição Federal que trata do Poder Judiciário, especificamente na primeira parte do artigo 93, IX, proclama: "Todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade..."
O processo, como é sabido, é o locus apropriado para que a parte autora possa deduzir sua pretensão perante a jurisdição que, por sua vez, irá convocar a parte demandada, contando também com a participação do Ministério Público, quando assim for exigido, do advogado, das testemunhas, peritos e outros eventuais participantes do actum trium personarum, com a intenção de dirimir a pretensão suscitada e realizar a efetividade integral do Direito.
Para melhor compreender a triangulação processual, basta lançar mão da dialética hegeliana, aquela que se compreende na síntese dos opostos. Tem-se, de um lado, o autor representado pela tese, o réu pela antítese e a jurisdição como órgão interveniente indispensável para encontrar a síntese na sentença. A busca será na tentativa de construção de uma realidade com a apreciação aprofundada das provas, não no sentido de construir uma nova alternativa, que poderia compreender o julgamento ultra petita, mas sim aquela elaborada nos limites propostos na inicial.
Assim, forma-se a percepção jurídica de acordo com os argumentos e elementos probatórios apresentados e inicia-se a tarefa de buscar a realidade perquirida. A sentença, em razão da racionalidade, irá dizer o Direito. Diga-se ainda que a palavra sentença é proveniente do verbo latino sentire, que expressa exatamente aquilo que foi sentido pelo juiz ao analisar a causa e proferir a decisão fundamentada a respeito de uma lide.
"A sentença, já advertia Couture com sua peculiaridade inigualável de processualista, não é um pedaço de lógica, nem tampouco uma norma pura. A sentença é uma obra humana, uma criação da inteligência e da vontade, isto é, uma criatura do espírito do homem".2
É também um ato personalíssimo e, como tal, deve seguir rigorosamente o due process of law. O juiz irá expor seu silogismo com clareza tal que a parte interessada não tenha dificuldade de interpretação, além de empregar palavras apropriadas e coerentes com a ciência do Direito, sem a necessidade de agir com a precisão de um linguista. Ao se expressar na sentença o juiz vai apontar com suas próprias palavras, os motivos determinantes do córtex de sua decisão, já que com a entrega da prestação jurisdicional estará produzindo um direito. Deve, portanto, expressar sua opinio juris a respeito da res in judicium deducta.
É importante registrar que poderá utilizar e lançar mão de citações doutrinárias, jurisprudenciais ou até mesmo de peças processuais, mas sempre fazendo a indicação da fonte. E, no momento de encerrar seu raciocínio, deverá prevalecer sua decisão de cunho pessoal deixando transparecer seus acréscimos, comentários e ponderações aditivas. Poderá até mesmo reprisar com suas palavras um pensamento que já foi dito anteriormente, visando corrigi-lo ou atualizá-lo, mas jamais transcrevê-lo ipsis litteris, sem fazer qualquer referência. Se assim acontecer, dá-se a impressão que a motivação e a fundamentação construídas na sentença correspondem ao saber precedente.
Com sua argúcia de filósofo e crítico literário, Eco afirma: "Santo Tomás revolucionou a filosofia cristã, mas estaria pronto a afirmar a quem o criticasse (e houve quem tentasse) que não fazia mais do que repetir o que Santo Agostinho dissera oito séculos e meio antes. E não era mentira e nem hipocrisia. Simplesmente, o pensador medieval considerava justo corrigir aqui e ali as opiniões de seus antecessores quando achava que tinha, precisamente, graças a eles, ideias mais claras".3
Se assim andar a carruagem, o recurso interposto pelos advogados do ex-presidente Lula será provido pelo Tribunal, que determinará a expedição de nova sentença.
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2 Couture, Eduardo J. Introdução ao estudo do processo civil. Tradução de Mozart Víctor Russomano, Rio de Janeiro: José Konfino - Editor, 1951, p.86.
3 Eco, Umberto. Nos ombros dos gigantes: escritos para La Milanesiana. Tradução: Eliana Aguiar - Rio de Janeiro: Record, 2018, p. 22.
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*Eudes Quintino de Oliveira Júnior é promotor de Justiça aposentado/SP, mestre em direito público, pós-doutorado em ciências da saúde, reitor da Unorp, advogado.