Substituição processual:da asfixia à overdose?
Se o Enunciado 310 asfixiava a substituição processual, na contramão da tendência mundial de fortalecimento da tutela jurisdicional dos chamados conflitos de massa, permitir que direitos individuais homogêneos, mesmo a pretexto de indisponibilidade, sejam defendidos por essa mesma via, redundará na anomalia inversa: a overdose de conflituosidade, que também não é salutar para o desenvolvimento social.
sexta-feira, 21 de novembro de 2003
Atualizado às 10:10
Substituição processual:da asfixia à overdose?
Mário Gonçalves Júnior*
Sobre o cancelamento do Enunciado 310, havíamos salientado que o Tribunal Superior do Trabalho terá que construir uma nova jurisprudência que defina os limites da substituição processual sindical (Clique aqui).
Como importante instrumento de defesa dos interesses das categorias profissionais, a substituição processual não poderia ser tão restrita, pois o Estado tem se mostrado incapaz de, sozinho, provocar a melhoria das condições de trabalho.
Mas não se pode transformar esse instituto (a substituição processual), tal como já se tentou fazer com a ação civil pública, em panacéia para todos os males.
Não é o que parece ter inspirado recente decisão da 2a. Turma do TST, em julgamento de recurso de revista relatado pelo juiz convocado Saulo Emídio dos Santos (RR 433/99), para quem "removido o obstáculo da súmula que restringia a legitimação extraordinária do sindicato, pode ele substituir processualmente os trabalhadores na reivindicação de horas extras decorrentes de turnos ininterruptos de revezamento, como direitos individuais homogêneos e indisponíveis relacionados com a saúde" (g.n.o.).
Se o Enunciado 310 asfixiava a substituição processual, na contramão da tendência mundial de fortalecimento da tutela jurisdicional dos chamados conflitos de massa, permitir que direitos individuais homogêneos, mesmo a pretexto de indisponibilidade, sejam defendidos por essa mesma via, redundará na anomalia inversa: a overdose de conflituosidade, que também não é salutar para o desenvolvimento social.
A vantagem da substituição processual é justamente a de não expor os trabalhadores individualmente a represálias patronais contra o exercício de direitos. O empregado é muito fraco, e na grande maioria dos casos, não é dono do seu emprego (não é estável). O patrão, em regra, detém direito potestativo de rescindir contratos individuais de trabalho, sem que para isso tenha que declinar uma justa causa. Ou seja, mesmo que o trabalhador desempenhe exemplarmente o contrato, para somar nas crescentes estatísticas do desemprego basta que assim o queira seu amo. Basta uma pequena desavença, uma noite mal dormida, o mau humor do empregador. Sob esse ângulo, todo emprego sobrevive, em tese e potencialmente, por um fio.
Os dispositivos legais destinados a desestimular a demissão imotivada, como por exemplo a multa do FGTS, não têm se mostrado eficazes. O custo das demissões é rapidamente recuperado com a economia auferida na redução da folha de pagamento por si só. É uma correlação de forças sem dúvida muito desigual, qual a de Davi e Golias.
Nesse contexto, não se pode esperar que o trabalhador exija judicialmente seus direitos. O que se vê, ao contrário, é que pequenos pecados restam perdoados por falta de outra alternativa segura para a parte hipossuficiente.
A substituição processual coloca na linha de frente os sindicatos, empresta ao pólo ativo das ações trabalhistas um rosto indefinido, de um ente, que não se confunde com o de qualquer substituído. Nas ações coletivas o protagonista não é o sujeito, mas o próprio direito material disputado; o foco se concentra no conflito em si, e não tanto nas pessoas.
Nas ações coletivas movidas pelo substituto processual, o controle da eficácia das leis assumirá, já nos primeiros graus de jurisdição trabalhista, a mesma importância que até então era reconhecida como competência das instâncias extraordinárias (artigos 896, "c" e 894, "b" da CLT).
O Estado-juiz poderá cuidar do controle da normatividade direta e mais incisivamente. A satisfação desses direitos, do ponto de vista individual, deixará de ser a causa primeira do processo e se tornará a sua conseqüência.
Nesse novo mundo, até o antigo modelo de sentença, individualista do século XIX, não serve mais. Persiste a necessidade de casos concretos (identificados por uma relação jurídica base ou ligadas por circunstâncias de fato, cfr. incisos I e II do artigo 81 da Lei 8078/90), mas isto não significa que esse tipo de conflito, para poder ser resolvido por atacado, tenha que expor em juízo todos os seus menores e mais insignificantes contornos.
Nada tem que ver isto com a sentença condicional ou incerta, reprimida pelo parágrafo único do artigo 461 do CPC, que, aliás, foi imaginada para o contexto individualista da sua época. Sentença incerta é aquela que não resolve totalmente a lide. Mal comparando, é, antes, uma "vírgula", quando deve ser, sempre, um "ponto final" no litígio.
Os processualistas mais conservadores e arraigados ao modelo de 1973 costumam confundir a sentença coletiva com a sentença incerta, só porque a lide não tem rosto, o que é um equívoco. Como se disse, o protagonista das ações coletivas não é o sujeito do direito, mas o seu objeto. Estando este bem definido, a lide tem sua feição completa, deve ser resolvida independentemente de quem venham a ser seus titulares.
A individualização do direito se dará em execução, pela modalidade de artigos (art. 608 do CPC), o que não dispensará, no processo de conhecimento, é claro, a comprovação da existência da lesão do direito, tomada no seu conjunto mas demonstrada por amostragem. E para que envolva um interesse coletivo, não se deve esperar que atinja todos os trabalhadores, mas aqueles que se enquadrem naquelas condições comuns.
No mundo moderno, globalizado, as decisões empresariais têm maior potencial de implicações. Para o controle jurisdicional dessa responsabilidade difusa, é rigorosamente pertinente que se dote o sistema com instrumentos de igual magnitude, que sejam capazes de tomar esses reflexos na sua inteireza (o que individualmente equivaleria a "enxugar gelo"), sob pena de o Estado perder o controle social, reduzindo-se a expectador impotente dos conflitos de massa.
Mas há, sempre, o outro lado da medalha, como dizíamos. A asfixia de tutela é tão nefasta quanto a overdose de conflituosidade.
O Ministério Público, que defende a sociedade, e para tanto se vale, por exemplo, das ações civis públicas, não tem poderes ilimitados. Nenhum instrumento, graças ao temperamento jurisprudencial, foi transformado em panacéia.
Se o Ministério Público tem encargos e responsabilidades tão mais abrangentes e não conta com liberdades infinitas, as entidades sindicais obviamente também não podem pretender tudo.
Somos da opinião que o norte confiável reside na diferenciação entre direitos individuais homogêneos, direitos coletivos e difusos. Para estes últimos, a substituição processual cai como uma luva (e não pode se restringir à expressa previsão legal como até agora se prega, pois a participação da sociedade na construção da cidadania é incentivada com empolgação na Carta de 1988, cfr. estudo já referido no início). Já em relação àqueles, os Sindicatos nada podem, dependendo da iniciativa de cada um dos trabalhadores.
Em poucas palavras, para as lides sem rosto é vital admitir instrumentos processuais impessoais. Mas sem exageros.