A cédula de produto rural - Os títulos do agronegócio e a escrituração dos títulos de crédito - O depósito centralizado - A subvenção econômica
A apreciação que se pode fazer é no sentido de que os agentes do agronegócio podem ter esperança de que os institutos objeto da MP 897/19 tragam algum resultado positivo para essa área tão importante, destacados na análise os aspectos negativos que eu fui capaz de identificar.
segunda-feira, 4 de novembro de 2019
Atualizado às 10:50
Este é o terceiro e último artigo da série destinada ao estudo dos diversos institutos objeto da MP 897/19. Não falta assunto para que o exegeta desse texto se divirta (ou se desespere, conforme o ânimo). Vamos de novo por partes, como diria o guloso diante de uma atrativa barra de chocolates. E já percebemos que essa MP não se encontra nada organizada, pulando do A para o M, deste para o Z e de volta para o B, sem qualquer critério, como também não cuidou somente do agronegócio.
No artigo anterior deixei de me referir às mudanças efetuadas no tocante ao Certificado de Depósito Bancário - CDB, objeto dos arts. 26 a 36 da MP vertente, tendo sido revogado em consequência o art. 30 da 4.728/65, nossa antiga lei do Mercado de Capitais. As mudanças mais importantes são as seguintes:
- taxa de juros que passa a ser fixa ou flutuante, admitida a capitalização, ou outras formas de remuneração, inclusive baseadas em índices ou taxas de conhecimento público;
- emissão cartular ou escritural, por meio de lançamento em sistema eletrônico emissor;
- transferência por meio de endosso, respondendo o endossante pela existência do crédito, mas não pelo seu pagamento;
- crédito contra a instituição financeira emitente, representado pelo CDB, não poderá ser objeto de penhora, arresto, sequestro, busca ou apreensão ou outro embaraço que impeça o pagamento da importância depositada e de sua remuneração, mas o CDB poderá poderá ser penhorado por obrigação de seu titular;
- vedada sua prorrogação, mas admitida a renovação com lastro na quantia depositada na data do seu vencimento e a sua remuneração, desde que haja nova contratação.
Diante das profundas alterações do cenário dos juros no plano nacional e internacional, as alternativas à disposição do interessado tornam o título bastante atraente.
1 - A Cédula de Produto Rural - CPR
Nesse contexto a Cédula de Produto Rural - CPR recebeu algumas mudanças, começando por uma alteração na relação dos seus requisitos, conforme consta do art. 3º da lei 8.929, de 27/8/94. Dessa forma, onde se lia no inciso VI "descrição dos bens cedularmente vinculados em garantia" a nova redação passou a ser "descrição dos bens vinculados por cédula e das garantias pessoais existentes".
Recorrendo à teoria geral dos títulos de crédito penso que a interpretação da nova redação seja no sentido de que bens dados em garantia da CPR devem constar da sua literalidade (o que não seria necessário explicar), inclusive quando se tratar de uma fiança outorgada pelo emitente (e, possivelmente, por terceiro que não seja o produtor rural e suas associações (art. 2º da lei 8.929/94). Tenha-se em conta, ainda, um fator de insegurança permitido pelo § 3º do art. 2º dessa mesma lei que diz ser permitida a descrição dos bens vinculados em garantia por meio de documento à parte, assinado pelo emitente, fazendo-se a devida menção a essa circunstância na cédula. Ora, se tal documento se extraviar, a garantia poderá ficar comprometida.
Em seguida a MP 897/19 incluiu na mesma lei supra referida os artigos 3-A a 3-E, cuja transcrição deve ser feita aqui para sua melhor compreensão:
"Art. 3º-A A CPR poderá ser emitida sob a forma cartular ou escritural.
§ 1º A emissão na forma escritural será efetuada por meio do lançamento em sistema eletrônico de escrituração gerido por entidade autorizada pelo Banco Central do Brasil a exercer a atividade de escrituração.
§ 2º A CPR emitida sob a forma cartular assumirá a forma escritural enquanto permanecer depositada em depositário central, nos termos do disposto na lei 12.810, de 15 de maio de 2013.
§ 3º Os negócios ocorridos durante o período em que a CPR emitida sob a forma cartular estiver depositada não serão transcritos no verso do título." (NR)
"Art. 3º-B Compete ao Banco Central do Brasil:
I - estabelecer as condições para o exercício da atividade de escrituração de que trata o § 1º do art. 3º-A; e
II - autorizar e supervisionar o exercício da atividade prevista no inciso I.
§ 1º A autorização de que trata o inciso II do caput poderá, a critério do Banco Central do Brasil, ser concedida por segmento, por espécie ou por grupos de entidades que atendam a critérios específicos, dispensada a autorização individualizada.
§ 2º A entidade responsável pela escrituração de que trata o inciso I do caput expedirá, mediante solicitação, certidão de inteiro teor do título, inclusive para fins de protesto e de execução judicial.
§ 3º A certidão de que trata o § 2º poderá ser emitida na forma eletrônica, observados os requisitos de segurança que garantam a autenticidade e a integridade do documento." (NR)
"Art. 3º-C. O sistema de que trata o § 1º do art. 3º-A registrará:
I - a emissão do título com seus requisitos essenciais;
II - o endosso;
III - os aditamentos, as ratificações e as retificações; e
IV - a inclusão de notificações, de cláusulas contratuais e de outras informações.
Parágrafo único. Na hipótese de serem constituídos gravames e ônus, tal ocorrência será informada no sistema de que trata o § 1º do art. 3º-A." (NR)
"Art. 3º-D A CPR poderá ser negociada nos mercados regulamentados de valores mobiliários, desde que registrada ou depositada em entidade autorizada pelo Banco Central do Brasil a exercer a atividade de registro ou depósito centralizado de ativos financeiros.
Parágrafo único. A CPR será considerada ativo financeiro e a operação ficará isenta do imposto sobre operações de crédito, câmbio e seguro, ou relativas a títulos ou valores mobiliários, na hipótese de ocorrência da negociação de que trata o caput." (NR)
"Art. 3º-E As infrações às normas legais e regulamentares que regem a atividade de escrituração eletrônica sujeitam a entidade responsável pelo sistema eletrônico de escrituração, os seus administradores e os membros de seus órgãos estatutários ou contratuais ao disposto na Lei nº 13.506, de 13 de novembro de 2017." (NR).
Nota-se que o modelo das mudanças em foco segue aquele adotado para a CIR, estudada no artigo anterior cabendo à CPR, portanto, as mesmas observações já feitas.
O novo art. 3º-B outorga ao BCB uma competência destinada ao estabelecimento das condições para o exercício da atividade de escrituração da CPR, gerida por entidade autorizada por aquele Órgão. Aqui deve ser feita uma observação que me escapou quando comentei a CIR, no sentido de que somente lei complementar pode alterar a lei 4.595/64, que regulou o Sistema Financeiro Nacional - SFN e, com ele, o BCB. Isto porque, com o advento da CF de 1988 e, nos termos o seu art. 192, a lei Bancária foi recepcionada pelo texto constitucional na qualidade de lei complementar. Essa reserva se justifica como forma de se impedir alguma desastrada ou oportunista mudança legislativa por meio de lei ordinária que interfira na sistemática do SFN, nele se introduzindo jabuticabas em profusão, do que resultaria no seu esfacelamento. Note-se que a lei Bancária é uma das mais longevas no nosso ordenamento jurídico, não alterada substancialmente desde a sua promulgação e que segue cumprindo adequadamente o seu papel. Se mudanças são necessárias, especialmente diante do surgimento das criptomoedas e de outras novidades resultantes da nova tecnologia, não será o legislador ordinário competente para tanto. Como poderia dizer alguém, os bancos centrais são entidades importantes demais para ficarem na mão dos políticos.
O art. 3º-D qualifica a CPR como ativo financeiro, concedendo-lhe isenção quanto ao imposto sobre operações de crédito, câmbio e seguro ou relativas a títulos ou valores mobiliários, na hipótese de sua negociação em mercados regulamentados de valores mobiliários.
Segundo o art. 3º-E as infrações às normas legais e regulamentares que regem a atividade de escrituração sujeitam a entidade responsável pelo sistema eletrônico de escrituração, os seus administradores e os membros de seus órgãos estatuários ou contratuais ao disposto na lei 13.506, de 13/11/17. Essa lei, que dispõe sobre o processo sancionador do BCB e da CVM também padece de legitimidade, porque mexeu com a competência do BCB, sendo lei ordinária e, portanto, inconstitucional nesta parte1.
O art. 4º-A autoriza a emissão de CPRs - estipulada liquidação financeira e não física - com cláusula de variação cambial, desde que os produtos nelas especificados sejam negociados em mercados internacionais, de acordo com os critérios especificados, tendo se atribuído ao Conselho Monetário Nacional - competência para estabelecer outras condições para a emissão daqueles títulos. Faz-se a este respeito as mesmas observações quanto à questão de infringência da reserva constitucional por meio de lei complementar para que se possa mudança nas atribuições do CMN.
O risco da variação cambial em pauta está equalizado precisamente porque os bens jurídicos subjacentes são cotados em moeda estrangeira.
2 - Os Títulos do Agronegócio
Procurando concatenar dor forma harmônica os títulos de crédito cuja emissão é voltada para o agronegócio a MP 897/19 trouxe modificações também quanto à lei 11.076, de 30/11/04, no tocante ao Certificado de Depósito Agropecuário - CDA - e ao Warrant agropecuário, mais uma vez criando atribuições para o BCB de forma indevida. As mudanças principais são relativas à sua emissão sob a forma cartular ou escritural e o registro no sistema que já foi tratado nos artigos sobre esta matéria.
3 - O Depósito Centralizado e a Circulação dos Títulos do Agronegócio
Sobre o depósito centralizado também já tecemos considerações anteriormente, mais uma vez tendo havido intromissão indevida nas competências do BCB.
A alteração mais importante neste tema está no novo parágrafo único do art. 12, segundo o qual "subsiste ao titular do CDA e do WA, na hipótese de recuperação judicial ou de falência do depositante, o direito à restituição dos produtos que se encontrarem em poder do depositário na data do pedido de recuperação judicial ou da decretação da falência". Esse direito de restituição fortalece a opção por esse título por parte do investidor.
4 - Da Escrituração de Títulos de Crédito
Neste ponto a MP 897/19 fugiu do tema específico -para o qual parecer estar unicamente voltada - tendo trazido diversas mudanças com relação a outros títulos, como a Letra de Crédito Imobiliário - LCI, a Cédula de Crédito Imobiliário, a Cédula de Crédito Bancário - CCB ao mesmo tempo em que, outra vez, designa novas atribuições para o BCB.
Fez-se uma mudança também quanto à Cédula de Credito Rural, objeto do dec.-lei 167, de 14/2/67.
Não necessitamos repetir comentários já feitos sobre os mesmos assuntos.
5 - Da Subvenção Econômica para Empresas Cerealistas
Nessa área foram estabelecidas algumas mudanças tendo sido, na forma do art. 42 da MP em apreço, autorizada a União a conceder subvenção econômica àquelas empresas, sob a modalidade da equalização de juros, nas operações de financiamento a serem contratadas com o BNDES, também sido designado o CMN para o fim de estabelecer as condições necessárias para a contratação dos financiamentos correspondentes.
Como o negócio dessas empresas em parte está ligado ao comércio exterior, não sendo eu competente nessa matéria, tenho cá as minhas dúvidas se essa iniciativa não esbarraria na regulação correspondente, relativa à Organização do Comércio Internacional - OMC. Passo a bola, sem constrangimento.
6 - Considerações quase finais
Depois dessa odisseia a apreciação que se pode fazer é no sentido de que os agentes do agronegócio podem ter esperança de que os institutos objeto da MP 897/19 tragam algum resultado positivo para essa área tão importante, destacados na análise os aspectos negativos que eu fui capaz de identificar.
Mas, não nos esqueçamos, cabe ao Legislativo fazer o seu papel e o receio nada infundado é que as coisas ruins possam piorar e que a criatura criada por essa MP se torne um tenebroso Frankenstein. Jurisprudência para isto existe aos montes.
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1 - Vide a esse respeito "Processo Sancionador: Banco Central e CVM - Lei nº 13.506/2017", de Carlos Henrique Abrão, Eronides Aparecido Rodrigues dos Santos, Haroldo Malheiros Duclerc Verçosa e Rachel Sztajn, Ed. IASP, São Paulo, 2018, pp. 33 e segs.
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*Haroldo Malheiros Duclerc Verçosa é sócio do escritório Duclerc Verçosa Advogados Associados. Professor Sênior de Direito Comercial da Faculdade de Direito da USP.