Interpretações da súmula 257 do STJ e reflexos no seguro DPVAT
Para se ilustrar a magnitude e o alcance do seguro DPVAT, apenas no ano de 2017, foram pagas 284.191 (duzentas e oitenta e quatro mil, cento e noventa e uma) indenizações apenas na modalidade invalidez permanente, com uma frota superior a 94 milhões de veículos no país
quinta-feira, 31 de outubro de 2019
Atualizado às 11:35
O seguro obrigatório DPVAT, instituído pela lei 6.194/74, com coberturas para morte, invalidez permanente e reembolso de despesas médicas, independentemente de análise subjetiva da responsabilidade civil, vem sendo objeto de extrema judicialização nos últimos anos. Atualmente, a seguradora líder, responsável pela administração do mencionado seguro, possui mais de 350.000 (trezentas e cinquenta mil) demandas ativas.1
Para se ilustrar a magnitude e o alcance do seguro DPVAT, apenas no ano de 2017, foram pagas 284.191 (duzentas e oitenta e quatro mil, cento e noventa e uma) indenizações apenas na modalidade invalidez permanente, com uma frota superior a 94 milhões de veículos no país2.
Já em relação à inadimplência, temos um expressivo percentual de 33%3 (trinta e três por cento), isso com informações relativas ao ano de 2017, significando dizer que, a cada três acidentes com veículos automotores, na hipótese de invalidez, um proprietário não possui cobertura.
O alto percentual de inadimplência, acima comentado, tem relações com e consequências diretas sobre a súmula 257 do Superior Tribunal de Justiça, objeto do presente estudo, editada em 08/08/01, cujo teor segue abaixo:
A falta de pagamento do prêmio do seguro obrigatório de Danos Pessoais Causados por Veículos Automotores de Vias Terrestres (DPVAT) não é motivo para a recusa do pagamento da indenização.
Uma rápida leitura do teor da súmula acima, dissociada de outros elementos interpretativos, pode levar à compreensão de que, dentro das três coberturas indicadas para essa espécie de seguro, e independentemente de pagamento do prêmio, deveria haver a cobertura.
O DPVAT, diante de seu caráter social, teria sua cobertura, a princípio, independentemente de pagamento do prêmio ou de análise subjetiva da responsabilidade civil. O seguro DPVAT não está vinculado à teoria da culpa e, sim, à do risco.
Contudo, nas hipóteses especialmente de invalidez, nas quais as figuras da vítima e do beneficiário se confundem, é necessária a interpretação da súmula 257/STJ com a realização do competente distinguishing.
Mediante a adoção correta da teoria dos precedentes, é possível constatar que os fatos fundamentais (suporte fático) que ensejaram a elaboração da ratiodecidendi da súmula 257/STJ se aplicam a hipóteses restritas, levando à conclusão de que não pode ser assegurada cobertura ao proprietário inadimplente, quando este é a vítima, nas hipóteses de invalidez e reembolso de despesas médicas.
Dentro dessa circunstância, cumpre tecer alguns comentários acerca do sistema de precedentes vigentes em nosso ordenamento jurídico, com efetiva determinação para aplicação de súmulas pelos Tribunais Superiores.
O sistema brasileiro de precedentes judiciais ligado ao civil law, fundamentado em legislação, se contrapõe ao common law, adotado por países de origem anglo-saxônica. Na hipótese docommon law, os precedentes possuem característica vinculante. Observe-se que o vigente Código de Processo Civil buscou, em diversos dispositivos, aproximar o sistema brasileiro do common law, conferindo eficácia vinculante às súmulas dos Tribunais Superiores, sendo certo que não apenas súmulas, como outras hipóteses de precedentes encontram-se vinculadas ao sistema brasileiro, como os incidentes de uniformização de jurisprudência, a sistemática dos recursos repetitivos e a reclamação por desrespeito à decisões dos Tribunais Superiores
Especificamente sobre o assunto, discorre Fredie Didier Jr., "o precedente é uma realidade inerente a qualquer sistema jurídico, quer vinculado à família da civil law (como no Brasil), quer vinculado à família da common law (como nos Estados Unidos e Inglaterra), a diferença, na verdade, está no grau da autoridade (eficácia) que possui."4
O julgador deve conhecer em detalhes o precedente antes de aplicá-lo, levando em consideração uma série de elementos que individualizam a força vinculante a ele atribuída, com base no suporte fático posto e nos fundamentos utilizados.
Justamente na adequação aos casos concretos se concentra outra técnica de aplicação dos precedentes, qual seja, o distinguishing, de modo que a observação caso a caso, especificamente, verifica se o precedente se aplicará, observando o efetivo suporte fático e o fundamento, assim como a decisão paradigma.
Na hipótese do estudo em tela, especialmente na compreensão do teor da súmula 257 do Superior Tribunal de Justiça, necessário se faz buscar a ratiodecidendi dos precedentes judiciais, cuja aplicação deve ser verificada nos casos concretos, sob pena de desvirtuamento de sua aplicação.
A súmula/precedente objeto do presente estudo teve como fundamento o julgamento de 03 (três) casos pelo Superior Tribunal de Justiça, os quais serviram como embasamentos para sua edição, quais sejam: (I) REsp 67.763-RJ (4ª T, 17/10/95, DJ 18/12/95); (II) REsp 144.583-SP (3ª T, 18/11/99, DJ 07/02/2000); (III) e REsp 200.838-GO (4ª T, 29/02/00, DJ 02/05/00).
Todos os casos tinham como suporte fático a necessidade de condenação da seguradora ao pagamento da indenização do DPVAT a terceiros/vítimas de acidentes de trânsito, mas não tratavam do caso de a vítima ser o próprio proprietário de veículo que se encontrava inadimplente, consoante é possível observar do quadro resumo a seguir transcrito. Senão, vejamos.
PARADIGMA |
SUPORTE FÁTICO |
RATIO DECIDENDI |
REsp 67.763-RJ |
Ação de cobrança movida por segurado terceiro/vítima que sofreu acidente por culpa de veículo não identificado. |
Dever de pagar a indenização, ainda que estivesse o proprietário do veículo inadimplente. |
REsp 144.583-SP |
Ação de cobrança movida por espólio de vítima de acidente. Discutia-se a possibilidade de pagamento da indenização, em que pese a possibilidade de ajuizamento de ação de ressarcimento pela seguradora em face da viúva, a qual era casada em comunhão de bens com o responsável pelo sinistro, |
Dever de pagar a indenização à família da vítima, ainda que posteriormente a esposa do de cujus seja cobrada em ação de ressarcimento, não podendo ser prejudicado o quinhão dos herdeiros; |
REsp 200.838-GO |
Ação de cobrança movida por genitores de menor que faleceu em decorrência de atropelamento, por veículo identificado, que estava com o pagamento do prêmio do seguro DPVAT vencido. |
Dever de pagamento da indenização aos genitores da vítima, em que pese o proprietário identificado estar em mora. |
Aqui se faz mister realizar breve diferenciação entre os conceitos de proprietário e de terceiro/vítima de acidente para fins da súmula 257/STJ.
Consoante aduz a doutrina de Ricardo Bechara Santos, o terceiro/vítima do acidente é o beneficiário da indenização devida, mas não o proprietário do veículo, salvo se for pessoa natural - e não jurídica - e vítima de acidente de trânsito:
No seguro DPVAT, segurado e beneficiário também podem se confundir, mas o proprietário que o contrata, salvo se for também vítima, jamais poderá se arvorar na condição de beneficiário5.
Assim, embora nos termos do entendimento sumulado, possa em determinadas situações o terceiro/vítima receber o pagamento de indenização, tal tratamento não poderia ser estendido ao proprietário inadimplente. Essa é a razão por trás da previsão do art.17, §§1° e 2°, da Resolução CNSP 332/15, os quais determinam que, em caso de mora no pagamento do prêmio, não terá o proprietário causador do sinistro direito à indenização.
Ora, nada mais natural do que impedir que o proprietário que esteja em mora, responsável pelo acidente, seja beneficiado com o pagamento da indenização, uma vez que a suspensão da garantia é inerente ao inadimplemento da obrigação positiva de líquida de pagamento do prêmio junto ao licenciamento.
Não bastasse a suspensão de a cobertura ser inerente à mora, trata-se de consequência que visa a regulamentar o art.7, da lei 6.1984/74, uma vez que não haveria sentido em se criar uma obrigação de pagamento de indenização em favor do proprietário inadimplente e também permitir que seja exercida ação de regresso do consórcio contra o indivíduo, que iria figurar como credor e devedor da ré. O crédito se compensaria com o débito, operando-se a extinção obrigacional, senão vejamos:
art. 12º. O Seguro DPVAT garante cobertura por danos pessoais causados por veículos automotores de via terrestre, ou por sua carga, a pessoas transportadas ou não.
§ 7º fica dispensado o pagamento da indenização ao proprietário inadimplente.
Assim, caso não haja a quitação tempestiva do Seguro Obrigatório, não teria, portanto, direito à indenização do Seguro DPVAT, ressalte-se, caso o beneficiário da verba seja o proprietário do veículo. É o que se verifica do §1º do art. 7º da lei 6.194/74.
A Resolução da 332 da SUSEP, aliada ao §1º do art. 7º da lei 6.194/74, nada mais é que a reprodução de entendimento já disposto em nosso código civil, o qual se refere ao instituto da compensação e à consequente extinção das obrigações em seus artigos 368 e 381 do Código Civil.
art. 368. Se duas pessoas forem ao mesmo tempo credor e devedor uma da outra, as duas obrigações extinguem-se, até onde se compensarem.
art. 381. Extingue-se a obrigação, desde que na mesma pessoa se confundam as qualidades de credor e devedor.
Não obstante o entendimento acima exposto, em recente decisão da 3ª Turma do STJ, relatada pelo Ministro Paulo de Tarso Sanseverino, datada de 02/08/19 (AgInt no Resp 1.798.176/PR), houve interpretação extensiva ao teor da súmula 257, aplicando-se à hipótese, independentemente de interpretação dos precedentes, a cobertura ao proprietário inadimplente, resguardando, entretanto, a ação de regresso ou mesmo compensação com os prêmios vencidos, o que, data vênia, em relação à ação de regresso, faz pouco sentido, considerando o teor do artigo 368 do código civil.
Sustentando a aplicabilidade da súmula, o Relator fundamentou sua decisão no sentido de que a jurisprudência do STJ "atenta ao caráter social dessa modalidade peculiar de seguro, orientou-se no sentido de que, ante a norma do caput, não seria possível negar indenização à vítima, ainda que se trate de proprietária do veículo causador do acidente, em débito com o DPVAT."
De fato, diferentemente das outras espécies de seguro, o DPVAT é dotado de relevante função social e assistencialista, pois prima pela integridade física e pela vida das vítimas, seja de um motorista, passageiro ou um pedestre, não levando sequer em consideração a culpa ou mesmo a identificação do veículo causador do dano, oferecendo cobertura a todos os indivíduos que estiverem em território nacional e se envolvam em acidentes ocasionados por veículos automotores de via terrestre.
No entanto, em nosso entendimento, com base na legislação da matéria, a ampla cobertura do DPVAT não é extensiva aos proprietários inadimplentes para hipótese de invalidez e reembolso de despesas médicas, vez que, permitir o pagamento de indenização ao proprietário que se encontra em mora, implicaria verdadeiro estímulo à inadimplência, descaracterizando, inclusive, seu caráter social, na medida em que configuraria enriquecimento ilícito, beneficiando o devedor por sua própria torpeza, afetando, ainda, o fundo mutual, que é base para o equilíbrio financeiro do Consórcio do DPVAT, impossibilitando os repasses de valores integrais à União, efetuados na proporção de 50% (cinquenta por cento) dos prêmios arrecadados, nos moldes da destinação prevista na legislação pertinente.
Em decisão monocrática nos autos do Resp. 1.834.424/PR, datados de 1º/10/19, a ministra Maria Isabel Gallotti, ainda que no mesmo sentido do julgamento do AgInt no Resp relatado pelo ministro Paulo de Tarso Sanseverino, acima comentado, interpretou corretamente a ratio da súmula 257, porém, se curvou ao entendimento da jurisprudência do STJ, conforme trecho do voto abaixo:
Pois bem. Apesar de o Superior Tribunal de Justiça ter editado a súmula 257, prevendo que "A falta de pagamento do prêmio do seguro obrigatório de Danos Pessoais Causados por Veículos Automotores de Vias Terrestres (DPVAT) não é motivo para a recusa do pagamento da indenização", tal enunciado deve ser melhor interpretado de acordo com todo o ordenamento jurídico vigente.
Portanto, o entendimento a ser extraído da súmula 257 é de que somente a vítima ou o beneficiário direto, nos casos de morte, não podem ser prejudicados em face de proprietário inadimplente, todavia, caso sejam a mesma pessoa, não resta configurado o dever de indenizar, haja vista os dispositivos expressos em sentido contrário, além da ocorrência da confusão.
Deve-se atentar ao fato de que entender de forma contrária seria compactuar com o inadimplemento, já que não seria mais necessário o pagamento por parte do proprietário para que estivesse revestido de cobertura indenizatória, o que certam ente configuraria um enriquecimento sem causa, podendo futuramente com prometer a arrecadação dos prêmios e a finalidade social do Seguro DPVAT, já que se tornaria desnecessário seu pagamento, beneficiando o inadimplente em detrimento de toda a coletividade.
Ocorre que a jurisprudência desta Corte se orienta no sentido de que o inadimplemento do segurado não acarreta óbice ao pagamento do seguro DPVAT.
(...)
Como visto, os precedentes que deram origem à súmula, ora em estudo, tratam de hipóteses em que as figuras do beneficiário e vítima não se confundem, o que deve ser levado em consideração no momento de sua aplicação. A decisão da ministra Maria Isabel Gallotti demonstra inclinação, a nosso ver, à correta aplicação do verbete.
Por outro lado, temos que a leitura do teor verbete sumular deixa margens a intepretações extensivas quanto à sua aplicação, não fazendo distinção quanto a hipóteses de morte ou invalidez, sendo imprescindível a realização das técnicas de interpretação dos precedentes para sua correta aplicação, e não a aplicação literal de seu teor, desprovida de maiores reflexões.
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1 Fonte: clique aqui. Acessado em 18/10/2019, 09h15m.
2 Fonte: clique aqui. Acessado em 27/06/2018, 8h15m.
3 Fonte: clique aqui Acessado em 27/06/2018, 8h15m.
4 DIDIER JR., Fredie. Curso de Direito Processual Civil. Salvador: Podivm, 2008. 2ª Edição. p. 385.