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A sub-rogação e o ressarcimento integral no seguro internacional de transporte marítimo de carga

A sub-rogação e o ressarcimento integral no seguro internacional de transporte marítimo de carga: invalidade e a ineficácia das cláusulas limitativas de responsabilidade dos transportadores e a experiência jurídica brasileira

O sistema legal brasileiro é digno de reconhecimento. Defende, e muitíssimo bem, os princípios do mutualismo, da autonomia da vontade, do ressarcimento e da reparação civil integral.

quinta-feira, 24 de outubro de 2019

Atualizado às 11:32

1 - Introdução

"De nuevo sobre la función de la responsabilidad civil

En la sección doctrinal del presente número de Práctica Derecho de daños publicamos um estúdio monográfico de la Professora María Dolores Casas Planes, que incide sobre un tema recurrente en  los últimos tempos; recurrente, y muy controvertido: la función de la responsabilidad civil. En dicho trabajo, la autora defende (uma vez más, pues es sabido ya hay voces que lo han hecho antes, algunas muy autorizadas) la existência de una función punitiva en la responsabilidad civil, y la incorporación  a nustro ordenamiento de los punitives damages. Y lo hace de manera coerente, bien documentada y con aportación de fundamentos y argumentos. Nos parece, por ello, uma interessante aportación científica a ka materia, y um nuevo punto de referencia en el debate que se viene manteniendo en âmbitos doctrunales y jurisprudenciales."1

A responsabilidade civil é um dos temas mais importantes do Direito do Seguro. Não há dúvida. Parte integrante do chamado Direito de Danos, é mesa para discussões intensas e debates acalorados. Um ramo em evolução constante; primeiro com as fontes mediatas, a doutrina e a jurisprudência, depois com a fonte imediata, a lei.

Dentro desse tema vastíssimo um subtema se destaca: a responsabilidade civil do transportador internacional marítimo de carga. O que nos leva a chamar a atenção para esse assunto é algo que ultrapassa os limites do interesse puramente jurídico (se é que existe semelhante coisa). São as razões históricas, econômicas e sociais que o enlaçam. Não que outros temas não tenham também as suas; evidente que têm. Só carecem de certas peculiaridades distintivas, as quais, não obstante nada digam à primeira vista de especialmente interessante, num segundo passar de olhos, como nos clássicos da literatura que relemos com redobrado prazer, passam então a nos revelar, numa fenda despretensiosa, um abismo de nuances imprevistas.t

Diferenciada, a natureza do contrato internacional de transporte marítimo de carga, seu influxo em outros segmentos pedem um estudo constante, voltado à praticidade e efetividade do exercício do Direito. Afinal, temos diante de nós uma atividade bastante ampla, que nos permite navegar não só pelo espaço, mas também pelo tempo.

O transporte marítimo de cargas preserva sua essência, sem deixar-se atropelar pelas mudanças; mas também não as rejeita; adapta-se a elas, toma-lhes o que convém e, ao fim, visto mais de perto, torna-se um objeto de estudo que, apalpado, sentido, farejado, permite que dele se extraia o odor da antiguidade, a praticidade do presente e a docilidade ao futuro.

Ora, fala-se hoje em uma nova cosmovisão do fenômeno jurídico, na necessidade de fazer uma leitura sistêmica, de tratar de forma diferenciada a responsabilidade civil, com novas expressões para atos-fatos em geral. Sabendo disso, como encarar o estudo e a aplicação do Direito em relação a um negócio jurídico de caráter tradicional, mas sempre renovado; tão antigo e, ainda assim, tão novo?

Por ocasião da exposição do tema "Nova Fronteira do Direito de Danos", curso de especialização em Direito do Seguro da 45ª. Edição do Curso de Pós-Graduação em Direito da Universidade de Salamanca, o grande professor colombiano Carlos Ignácio Jaramillo em sala de aula, no dia 19 de junho de 2019, disse o seguinte: "há um grande paradoxo, porque quando se fala em modernidade, fala-se em antiguidade; que na leitura do passado, encontram-se as raízes do presente e a visão segura do futuro".

E não há como discordar. As coisas de fato são assim. É justamente o balanço entre presente e passado, o sopesar prudente de suas mais significativas distinções, que nos fornece as respostas para o futuro.

Segundo o professor, o Direito de Danos exige hoje "uma abordagem social, mais ampla e conectada ao constitucionalismo". Abordagem especialmente cara quando se fala de responsabilidade civil do transportador internacional marítimo de cargas em relação ao Direito do Seguro, notadamente a parte que trata do ressarcimento em regresso do segurador sub-rogado na pretensão original do seu segurado, o dono da carga danificada durante um transporte imperfeitamente executado.

O objetivo aqui é, sobretudo, mostrar um fascinante paradoxo, despertar o interesse pelo improvável: um país que, a despeito de há tanto tempo se ver mergulhado em problemas sociais, pode realmente ser modelo de justiça num segmento tão complexo, como a responsabilidade civil do transportador internacional marítimo de cargas e o dever de ressarcimento em regresso integral ao segurador sub-rogado; assuntos nos quais se unem, dedo a dedo, em inquebrantável vínculo de amizade, o Direito Marítimo, o Direito de Danos, o Direito Civil, o Direito Internacional Privado e o Direito do Seguro

E dizer que neste sentido o Brasil ostenta ordenamento tão exemplar não é coisa que se deva a patriotismos ou coisas do gênero. Absolutamente. A fé católica nos traz uma visão menos afeita a exageros patrióticos; instiga no peito do fiel um vislumbre da beleza que há na ideia de universalidade - desde que pela cruz. Além disso, a origem europeia nos faz conectados, pelo espírito dos tempos idos, ao mais importante dos continentes, como se fosse o nosso próprio.

Nossa motivação está fundada na racionalidade, no empirismo vital da profissão, na defesa dos princípios fundamentais do negócio de seguro e do princípio da reparação civil integral. Nesta matéria comungamos ao compasso duma liturgia da amplitude e integralidade da reparação civil, afigurando-nos inaceitável, e nada menos que inaceitável, a proteção dirigida justamente àquele que causa danos.

Outro detalhe a se trabalhar é a constatação de que o ressarcimento do segurador sub- rogado não finda em sua pessoa, residindo a função social da atuação no princípio do mutualismo.

Essas normas limitadoras podem o quanto queiram ser construções políticas ou econômicas. Mas não essencialmente jurídicas. Por chocar-se com o direito natural, por ferir o sentimento humano de justiça, acabam perdendo sua razão de ser, ainda que se enfeitem pelo pragmatismo do dia. Não que a política ou a economia não possa influenciar o Direito; evidente que podem, tanto é que acabam por fazê-lo em alguma medida. Só não podem tomar-lhe o coração, o centro da existência.

Nesse contexto é de se enfrentar, com ânimo de legião romana, as chamadas cláusulas limitativas de responsabilidade presentes em contratos internacionais de transporte marítimo de cargas; combatemo-las, de gládio em punho, com base na experiência jurídica brasileira,  a nosso ver mais saudável que as de outros ordenamentos jurídicos, mesmo aqueles com tradição jurídica mais robusta e sólida. O sistema legal do Brasil não recepciona nenhuma Convenção Internacional de Direito Marítimo. E esse detalhe, esse magnífico dar de ombros às modas globalizantes, neste caso, mas não só nele, faz diferença no trato com a responsabilidade civil: cria uma forte blindagem contra a concupiscência politiqueira, não raro submissa a interesses menos nobres.

Porque as cláusulas unilaterais impostas por transportadores nesses instrumentos de adesão, que são os contratos de transporte marítimo, quando não tidas por abusivas, eivadas de assimetria jurídica, adquirem um irrespirável eflúvio de ineficácia, de invalidade ou, tão apenas, de nulidade. A visão brasileira permitiu tratar da responsabilidade civil do transportador com equilibrado rigor. Marcada pelos princípios fundamentais do Direito e pela função social das obrigações, premia a vítima do dano ou o segurador dela, jamais o autor do ilícito.

O Brasil não reconhece o dirigismo contratual. Seu ordenamento, suas leis, suas decisões judiciais esvaziam o efeito dessas cláusulas, tiram-nas quase que à ponta da faca, porque, no caso do transporte marítimo, são estranhamente onerosas a embarcadores e consignatários de cargas, porém estranhamente benéficas a transportadores e afins. Cláusulas feito as de eleição de foro, de compromisso arbitral e de limitação de responsabilidade, por exemplo, não vigem no Brasil.

Longe de casuísmo jurídico, essa forma de encarar o Direito, já antiga no país, preserva também sua aptidão à vanguarda, ajustando-se como luva à mão ao modo como se deve interpretá-las ainda hoje. Justo é premiar o acesso à jurisdição, garantia constitucional fundamental em quase todos os sistemas legais do mundo ocidental, e o princípio da reparação civil integral, um dos principais objetos de estudo deste trabalho - senão o verdadeiro centro dele.

A coisa muda quando o protagonista do interesse é o segurador sub-rogado na pretensão original do dono da carga, segurado de apólice de seguro de transporte internacional de carga. Pois, se tal dinâmica já se ergue como uma clara injustiça em relação ao dono da carga, obrigado a aceitar a abusividade das disposições unilaterais do transportador, quem dirá ao segurador, que é nem parte do contrato de transporte, nem pôde anuir com nada.

Ela jamais lhe poderá ser oponível; primeiro porque isso seria simplesmente contrário à lei brasileira, simpática à ideia de voluntariedade, segundo porque a mera formulação da hipótese já aponta uma injustiça plena e radiante. Dois pontos que se desenrolarão nas linhas seguintes, ao jeito dum tecido que se desfaz.

É preciso dizer: nisso o sistema legal brasileiro é digno de reconhecimento. Defende, e muitíssimo bem, os princípios do mutualismo, da autonomia da vontade, do ressarcimento e da reparação civil integral. Faz do Brasil um país com uma abordagem do Direito Marítimo a qual, além de interessante em si mesma, se mostra, principalmente, justa e orientada à luz de princípios como os da proporcionalidade, isonomia, equidade e razoabilidade, guiada por um aroma mais chegado a olfatos jusnaturalistas.

É a partir daí que trataremos do direito de regresso do segurador sub-rogado contra o transportador marítimo de cargas inadimplente. Sempre à vista do princípio da reparação civil integral, sempre mostrando a necessidade de tratar de maneira mais condizente com o Direito Atual os temas que ligam Direito de Danos, Direito Marítimo e Direito do Seguro, em reconhecimento à visão social no seio de uma sociedade marcada por danos e responsabilidades.

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1POMBO, Eugenio Llamas, "Reflexiones sobre Derecho de Daños: casos y opiniones", Madrid: La Ley, p. 37

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t*Paulo Henrique Cremoneze é advogado com atuação nas áreas do Direito do Seguro e Direito dos Transportes, sócio de Machado, Cremoneze, Lima e Gotas - Advogados Associados.

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