2019 - O primeiro ano do resto de nossas vidas (ensaio sobre a distopia no Brasil)
"Nossas vidas começam a acabar no dia em que nos calamos sobre as coisas que importam". Martin Luther King
terça-feira, 1 de outubro de 2019
Atualizado às 10:39
Cá estou eu, há uma semana, pensando no tema deste artigo, afinal, assuntos polêmicos temos aos montes, mas o que seria mais relevante?
Poderia falar sobre o genocídio no Brasil contra a população indígena, o incêndio criminoso na Amazônia, que fez com que nosso país estampasse todos os jornais do mundo, ou o número recorde de agrotóxicos liberados nos últimos meses. Também pensei em escrever sobre o ato de censura e repressão literária ocorridos na Bienal do Livro do Rio de Janeiro no início do mês, mas tudo me pareceu "notícia velha", diante da velocidade em que os fatos estão ocorrendo.
Como se já não bastasse a sessão de notícias ruins, Ágatha Vitória Sales Félix, uma menina negra e pobre, morreu após ser baleada nas costas na noite da última sexta feira no "Complexo do Alemão" no Rio. Ela tinha apenas 8 anos. Li outro dia que "bala perdida no Brasil, tem sensor cromático" (desconheço a autoria). Só neste ano já foram 16 crianças vítimas de bala perdida no Rio de Janeiro. Todas pobres e, muito provavelmente, negras. Parafraseando a brilhante Elza Soares: "a carne mais barata do mercado é a carne negra". Até quando? Mas também não vim discursar sobre a necessidade de uma política de segurança pública ou sobre o racismo estrutural.
Quero falar sobre a distopia que estamos vivendo. De certo que, desde 1.500, não houve um dia sequer de paz na história deste país, mas sem dúvida, vivemos tempos difíceis.
No último dia 16 de setembro, foi publicada no DOU a resolução 2232 do Conselho Federal de Medicina. Com base no princípio constitucional da dignidade humana, o CFM retirou das gestantes o direito à recusa terapêutica, se a "vontade da mãe caracterizar abuso de direito dela em relação ao feto." Isto significa que os médicos poderão realizar procedimentos médicos à revelia da paciente, priorizando a vida do feto à integridade física e psicológica da mulher que o carrega.
Vale lembrar que é assegurado a todo paciente maior de idade, capaz, lúcido, orientado e consciente, o direito de decidir se deseja ou não se submeter a um tratamento médico. O artigo 5º, § 2º, da aludida resolução, abre um precedente para que médicos possam decidir sobre os corpos das mulheres, o que não se pode admitir! Trata-se de mais um golpe ao direito de defesa da mulher grávida, em um país no qual os índices de violência obstétrica já são altíssimos.
A realidade imitou a ficção. O livro "The Handmaid's Tale", de Margaret Atwood, que virou série, narra um mundo distópico que trata as mulheres como incubadoras, tão somente. No país fictício, o feto também é colocado em situação de superioridade à mulher, ignorando a vontade e bem-estar da gestante.
Outro clássico sobre distopia é o livro "1984", de George Orwell, publicado em 1949. Assim como relatado no romance distópico, vivemos tempos de guerra e de profundo desrespeito aos direitos humanos. Orwell retrata um mundo onde há uma forte e constante vigilância das pessoas por um estado totalitário chegando a ponto de manipular a história, restringir a individualidade e perseguir o direito de expressão.
Novamente, qualquer semelhança com os tempos atuais não é mera coincidência. Recentemente, presenciamos o uso da tecnologia para disseminar fake news, como ferramenta de manipulação partidária, nas campanhas eleitorais. Meses depois, estamos testemunhando, dia após dia, as mais diversas formas de opressão, perseguição e controle da sociedade e de suas expressões culturais e artísticas. A censura é real. Filmes de temáticas "sensíveis" ao governo (como ditadura, por exemplo) já estão sofrendo boicote. O Estado voltou a categorizar o que é próprio e impróprio ao consumo da sociedade, em uma tentativa muito clara de controle da massa. Sem falar nos cortes de verbas públicas no setor de pesquisa e educação. Afinal, o conhecimento liberta, e pessoas bem informadas e dotadas de senso crítico não são facilmente manipuláveis, o que representa uma verdadeira ameaça à elite governante.
Todas estas demonstrações de censura visam o cerceamento e encarceramento da individualidade do ser, conforme padrões morais e religiosos ditados por um Estado, que, na teoria, é laico e não tolhe (não??) direito por orientação ou convicção religiosa, filosófica ou política. O resultado disso é a perseguição e aumento de violência contra as camadas mais fragilizadas da sociedade, para não dizer, marginalizadas: negros, índios, pobres, mulheres, crianças, idosos e LGBTQIA+.
Enquanto crianças, pobres e pretos são dizimados nas favelas todos os dias por quem deveria zelar pela segurança pública; homossexuais são discriminados e mortos nas ruas por homens brancos cis*; mulheres são vítimas de violência ora doméstica, ora obstétrica; índios perdem suas terras e vidas em nome dos interesses do agronegócio; diversas formas de expressão cultural e artística são censuradas; o capitalismo desenfreado é o grande responsável por esgotar os recursos naturais na velocidade da luz, e nossos pratos seguem cada vez mais envenenados.
O final deste roteiro distópico não conhecemos, mas estou certa que 2019 marcou o início de uma nova era, quando a ficção se misturou à realidade, de forma inesperada, expurgando a podridão que estava latente, e tendo como efeitos colaterais o colapso da sociedade e o abalo das estruturas do país.
Quem viver, verá!...
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*Juliana de Oliveira Mazzariol é advogada associada da Advocacia Hamilton de Oliveira.