A desconsideração da personalidade jurídica
As recentes discussões noticiadas pela imprensa sobre o conteúdo do Projeto de Lei nº 2.246/2003, em tramitação na Câmara dos Deputados1, trouxeram o recorrente tema da desconsideração da personalidade jurídica à reflexão dos operadores do direito. Nos exatos termos da respectiva ementa, tal projeto de lei "regulamenta o disposto no art. 50 da Lei nº 10.406/02, disciplinando a declaração judicial de desconsideração da personalidade jurídica". Antes de nos voltarmos à desconsideração, impõe-nos algumas poucas palavras acerca da personalidade jurídica.
sexta-feira, 6 de outubro de 2006
Atualizado em 5 de outubro de 2006 11:54
A desconsideração da personalidade jurídica
Paula Heleno Vergueiro*
As recentes discussões noticiadas pela imprensa sobre o conteúdo do Projeto de Lei nº 2.426/2003 (clique aqui), em tramitação na Câmara dos Deputados1, trouxeram o recorrente tema da desconsideração da personalidade jurídica à reflexão dos operadores do direito. Nos exatos termos da respectiva ementa, tal projeto de lei "regulamenta o disposto no art. 50 da Lei nº 10.406/02 (clique aqui), disciplinando a declaração judicial de desconsideração da personalidade jurídica"2.
Antes de nos voltarmos à desconsideração, impõe-nos algumas poucas palavras acerca da personalidade jurídica. Diante da inconveniência de aduzirmos comentários detalhados acerca das teorias clássicas3 relativas à conceituação deste instituto, desenvolvidas a partir de fins do século XVIII, limitamo-nos a admitir que os objetivos precípuos do reconhecimento da pessoa jurídica são a autonomia patrimonial e a limitação de responsabilidade.
Na verdade, a problemática conceitual referente ao instituto - intimamente relacionada a condições históricas isoladas e específicas - cedeu lugar à preocupação com a aplicação de soluções mais pertinentes e adequadas aos casos concretos.
É na realidade fática que se observa, de um lado, o crescimento da corrente defensora do afastamento da separação patrimonial absoluta, isso em prol da eqüidade e da censura geral à fraude e ao abuso de direito. Para esta corrente - integrada por magistrados, notadamente os da Justiça do Trabalho, membros do Ministério Público, e representantes da Fazenda -, a supremacia estatal, por via legislativa ou judicial, deve desconsiderar, da forma mais ampla possível, a personalidade jurídica nas hipóteses em que a personificação se caracterizar pela ilegitimidade, a exemplo do abuso de poder ou desvio de finalidade.
Do outro lado concentram-se empresários, investidores, representantes da indústria e do mercado de capitais, e advogados, na defesa de limitações a eventual aplicação desmedida e irrestrita da desconsideração da personalidade jurídica.
Neste contexto é que o Projeto de Lei nº 2.426/2003 (clique aqui) atende aos anseios do segundo grupo, isso ao exigir que a medida da desconsideração observe algumas providências tais como (i) a indicação, em requerimento específico - pela parte que se julgar prejudicada pela ocorrência de desvio de finalidade ou confusão patrimonial - dos atos abusivos praticados e dos sócios e administradores pelos mesmos beneficiados; e (ii) a concessão de prazo para a defesa dos administradores e sócios cujos bens pessoais venham a ser atingidos pela desconsideração.
Ainda que concordemos com as principais orientações do projeto, notadamente no que se refere à inserção do contraditório e da ampla defesa, inclinamo-nos a refletir também no sentido da conveniência da alteração da norma contida no art. 50 do Código Civil. Nesse sentido, imaginamos que a normatização da desconsideração poderia ser aperfeiçoada em nosso ordenamento se alguns elementos fossem considerados.
Assim, nas hipóteses de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial, a desconsideração da personalidade jurídica deve ser procedida mediante a responsabilização solidária dos sócios controladores, isso, por evidente, se restar comprovado que os mesmos praticaram atos de administração, diretos ou indiretos, abusivos ou fraudulentos. Os demais sócios somente serão responsabilizados caso seja comprovada sua participação direta nos atos abusivos ou fraudulentos. A desconsideração deve ser feita em função do poder de controle societário.
Quanto aos administradores que praticarem atos irregulares de gestão, acreditamos que não se afigura a utilização da desconsideração da personalidade jurídica como a medida mais apropriada a atingir seu patrimônio pessoal. Aos mesmos, reservam-se os princípios da teoria dos atos ultravires e todas as regras acerca da responsabilidade, civil e penal, dos administradores de pessoas jurídicas constantes no ordenamento jurídico nacional, a exemplo daquelas contidas no art. 158 da Lei nº. 6.404/76 (clique aqui), nas disposições do Código Penal ou de leis esparsas, como da Lei nº. 1.521/51 (clique aqui), que trata dos crimes contra a economia popular, da Lei nº. 7.492/86 (clique aqui), que define os crimes contra o sistema financeiro nacional e da Lei nº. 8.137/90 (clique aqui), que trata dos crimes contra a ordem tributária, econômica e as relações de consumo.
Em conclusão, salientamos que a busca deve ser pelo equilíbrio entre os legítimos interesses dos dois grupos acima relacionados. De um lado, devem ser pugnados, pelo Poder Público, atos que possam evidenciar fraude ou abuso de direito: se entendermos a personalidade jurídica como um direito concedido aos empreendedores para suas práticas econômicas, os mesmos não podem afastar-se do fim social inerente ao direito que lhes foi concedido. Por outro lado, a exposição desmedida do patrimônio pessoal de sócios amplamente minoritários e de todos os administradores, sem qualquer critério diferenciador, pode desviar importantes recursos financeiros de setores em desenvolvimento, como os fundos que investem em pequenas e médias empresas (private equity e venture capital) e, ainda, prejudicar a composição dos órgãos de administração das sociedades.
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2Art. 50. Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial, pode o juiz decidir, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica.
3As concepções tradicionais de pessoa jurídica foram contribuições das (1) teoria da ficção (teoria fundamentada sobretudo no direito canônico do século XVIII, cuja formulação clássica - atribuída a SAVIGNY - definiu a pessoa jurídica como sendo um sujeito criado artificialmente pela lei, capaz de possuir patrimônio; (2) teorias de superação ou teorias objetivas (defendiam argumentos no sentido da completa desnecessidade da existência de personalidade jurídica: a situação do patrimônio da pessoa jurídica e dos direitos exercidos pela mesma poderia ser explicada mediante o conceito de patrimônio-fim ou patrimônio de afetação (Zweckvermögen, de BRINZ); e (3) teoria da realidade (de acordo com as teses defendidas por seus adeptos - GIERKE, ZITELMANN, WORMS, dentre os mais notáveis -, a pessoa jurídica é dotada de personalidade real.
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*Advogada do escritório Siqueira Castro Advogados
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