IN RFB 1888/19 e as pessoas físicas que operam com criptoativos (cont.)
Antes de prosseguir e para que não haja mal-entendidos, convém enunciarmos explicitamente qual é e qual não é o objetivo deste artigo.
terça-feira, 3 de setembro de 2019
Atualizado em 2 de setembro de 2019 12:25
No artigo anterior (disponível aqui) expusemos as obrigações que a IN RFB 1888/19 impõe às pessoas físicas residentes no Brasil que venham a operar com criptoativos. Neste, avaliaremos a razoabilidade, a possibilidade de cumprimento e a legalidade daquelas obrigações, também através de perguntas e respostas.
Antes de prosseguir e para que não haja mal-entendidos, convém enunciarmos explicitamente qual é e qual não é o objetivo deste artigo. Pretendemos, com ele, tão somente expor o nosso posicionamento acerca da razoabilidade, da possibilidade de cumprimento e da legalidade ou não de obrigações previstas na IN RFB 1888/19. Não pretendemos, com isso, incentivar quaisquer pessoas a descumprirem as mencionadas obrigações, nem o recomendamos.
P11- O limite de R$30.000,00, previsto na IN, exige a movimentação de uma quantia significativa? Em outros termos, esse limite é razoável?
R11- Não. O valor de R$30.000,00 refere-se à soma do valor das operações realizadas no mês, de modo que valores baixos, ou até irrisórios quando considerados por operação, movimentados diversas vezes, podem facilmente extrapolar esse limite total.
O que se afirma será demonstrado com a descrição de algumas situações bastante comuns, que podem ocorrer diversas vezes ao dia. Ainda que simplificadas, são situações muito mais reais que aquelas constantes do "Manual de preenchimento" da RF (disponível aqui).
Suponhamos, como ponto de partida para cada uma das situações a seguir descritas, que nosso operador de criptoativos (OC): dispõe de 0.125 bitcoin (pouco mais de R$ 5.000,00 em bitcoin) na sua única carteira (wallet); tem conta em 02 (duas) exchanges estrangeiras (EE1 e EE2), e deseja operar apenas com 03 (três) criptoativos diversos [BTC (bitcoin), ETH (ethereum) e LTC (litecoin)]. Além disso, não realiza nenhuma operação fora de exchanges.
Veja-se o quanto a nossa suposição já é reducionista: existem, hoje, mais de 240 exchanges estrangeiras (disponível aqui) e mais de 2300 criptoativos diversos (disponível aqui), sendo extremamente simples e ágil tanto o processo de abertura de contas em exchanges estrangeiras quanto o processo de negociação de criptoativos.
Reduzindo-a ainda mais, em todas as situações descritas na sequência, iremos nos ater ao número mínimo de operações que o OC deverá realizar para atingir o seu objetivo, desconsiderando o fato notório de que a grande oscilação nos valores de criptoativos frequentemente recomenda um número muito maior de operações para que o objetivo possa ser alcançado da maneira economicamente mais proveitosa.
SITUAÇÃO 1. O OC deseja permutar (=trocar) seu BTC por ETH; para tanto: (i) transfere seu 0.125 BTC da wallet para a EE1; (ii) permuta por ETH na EE1; (iii) transfere seus ETH de volta para a wallet. Valor total aproximado das operações: R$15.000,00.
SITUAÇÃO 2. O OC deseja permutar seu BTC por LTC, mas percebe que obterá uma permuta mais vantajosa no par LTC/ETH; para tanto: (i) transfere seu 0.125 BTC da wallet para a EE1; (ii) permuta por ETH na EE1; (iii) permuta, depois disso, seus ETH por LTC; (iv) transfere seus LTC de volta para a wallet. Valor total aproximado das operações: R$20.000,00.
SITUAÇÃO 3. O OC deseja realizar uma arbitragem, ao constatar uma diferença de cotações, no par ETH/BTC, entre EE1 e EE2; para tanto: (i) transfere seu 0.125 BTC da wallet para a EE1; (ii) permuta por ETH na EE1; (iii) transfere seus ETH para a EE2; (iv) permuta por BTC na EE2; (v) transfere seu BTC de volta para a wallet. Valor total aproximado das operações: R$25.000,00.
A verificação por duas únicas vezes, em um mês e não em um dia, de quaisquer das referidas situações, é o quanto basta para, nos termos da IN, ser devida a prestação de informações. Note-se que mesmo um OC que disponha de apenas 0.0125 BTC (pouco mais de R$500,00), poderá ultrapassar a soma total de R$30.000,00 caso se envolva naquelas situações mais de 20 (vinte) vezes num determinado mês.
P12- O OC tem acesso às informações que lhe são exigidas pela IN RFB 1888/19? Em outras palavras, prestar tais informações lhe é possível?
R12- Nem sempre, porque muitas das informações demandadas pela IN poderão não estar disponíveis ao OC.
Para se demonstrá-lo, foquemos nossa análise nas operações de permuta realizadas em exchanges estrangeiras.
Exchanges estrangeiras não estão sujeitas à RFB. Logo, não se encontram obrigadas a fornecerem a seus usuários todas as informações demandadas pela RFB. Efetivamente, muitas delas não disponibilizam ao OC diversos dos dados que agora lhe passam a ser exigidos pela RFB. E não existe nenhuma forma pelo qual o OC possa, que não por meio delas, obter tais dados.
Um exemplo. A IN exige que os campos "data", "quantidade" e "valor" sejam informados por operação; enquanto que diversas exchanges estrangeiras informam tais dados por preenchimento de ordem.
Uma ordem é uma pretensão ("desejo comprar" ou "desejo vender"); já uma operação é um encontro de pretensões (da pretensão de uma compra com a pretensão de uma venda). Quando as pretensões se encontram, a ordem é executada, no todo ou em parte. Como as ordens admitem execuções parciais, não é raro que de uma ordem resultem muitas operações.
Evidenciaremos a diferença entre os dados de uma operação e os dados do preenchimento de uma ordem a partir de algumas situações, onde, para fins de simplificação, substituímos a permuta entre criptoativos pela permuta entre bananas e maçãs (= pela compra de bananas realizada com maçãs e vice-versa).
Suponhamos que temos 10.000 bananas. Às 16:00h do dia 10/08, verificamos que a cotação do par banana/maçã em determinada exchange está em 0,500. Significa dizer que na última operação realizada neste par trocou-se banana por maçã na proporção de 2:1 (= duas bananas equivalendo a 1 maçã). Apenas isso. A cotação nada diz (i) nem sobre quanto o(s) próximo(s) comprador(es) estará(ão) disposto(s) a pagar nas nossas bananas (ii) nem em que quantidade desejarão adquiri-las. Essas são informações que podem ser encontradas no "livro de ofertas".
SITUAÇÃO 1. Lançamos uma "ordem de venda a mercado" das 10.000 bananas, que é executada imediatamente com o preenchimento de todas as ordens de compra em aberto, compreendidas no intervalo de 0,499 a 0,479. Diante disso, a exchange, em vez de nos informar todas as operações realizadas (i.e. todas os encontros que nossa ordem de venda teve com ordens de compra menores), informa-nos apenas que 10.000 bananas foram vendidas ao preço médio de 0,4831. Ou seja, não nos informa quantas bananas vendemos por cada um dos preços compreendidos naquele intervalo.
SITUAÇÃO 2. Lançamos uma "ordem de venda limitada" das 10.000 bananas por 0,490, que é executada imediatamente apenas em parte, com a venda de 1.000 bananas (10%), pelo preenchimento de todas as ordens de compra em aberto compreendidas no intervalo de 0,499 a 0,490. Nossa ordem permanece, portanto, aberta (90%) e vai sendo preenchida aos poucos, na medida em que aparecem pessoas dispostas a pagarem 0,490 por banana. Às 05:00 do dia 12/08, finalmente, completa-se a execução da nossa ordem, com a venda da última banana pelo preço de 0,490. A exchange, então, em vez de nos informar todas as operações realizadas (= todos os encontros que nossa ordem de venda teve com ordens de compra menores), informa-nos apenas que, em 12/08, completou-se uma venda, iniciada em 10/08, de 10.000 bananas. Ou seja: não nos informa quantas bananas vendemos em cada um dos dias.
P13- Caso o OC tenha acesso às informações que lhe são exigidas pela IN RFB 1888/19, seu cumprimento é viável?
R13- Não necessariamente. Ainda que o OC atue apenas em exchanges estrangeiras que lhe disponibilizem todas as informações demandadas pela RFB, poder acessá-las é muito diferente de possuí-las de maneira tratada. E é por isso que utilizá-las no preenchimento do leiaute imposto pela RFB será, muitas vezes, uma tarefa impraticável, frente a um imenso volume de dados, disponibilizados pelas exchanges em padronizações diversas daquela pretendida pela RFB.
Para se demonstrá-lo, sem um agravamento do aspecto técnico envolvido nas operações com criptoativos, mais uma vez focaremos nossa análise apenas nas operações de permuta realizadas em exchanges estrangeiras, recorrendo às Situações 1 e 2 da resposta anterior.
Vimos ali que o que determina o número de operações numa atividade de permuta não é propriamente a ordem de compra ou de venda, mas sim o número de vezes que tal ordem encontra sua contrapartida. Disso decorre a constatação de que ninguém tem, de fato, o controle sobre o número de operações em que se verá envolvido, no momento em que posiciona uma ordem de compra ou de venda.
SITUAÇÃO 1. Nossa "ordem de venda a mercado" das 10.000 bananas é executada imediatamente, com o preenchimento de todas as ordens de compra em aberto, compreendidas no intervalo de 0,499 a 0,479. Consultando o extrato da exchange, no entanto, verificamos que essa única ordem resultou em mais de 200 operações, com quantidades e valores de venda diversos. E cada uma delas, nos termos da IN, deverá ser informada à RFB.
SITUAÇÃO 2. Nossa "ordem de venda limitada" das 10.000 bananas por 0,490, na parcela em que permaneceu aberta (90%), vai sendo preenchida aos poucos, ao longo de 03 dias. Completada a venda, consultamos o extrato da exchange e verificamos que a essa única ordem resultou em mais de 200 operações, em datas e quantidades diversas. E cada uma delas, nos termos da IN, deverá ser informada à RFB.
200 (duzentas) operações cujos dados completos deverão ser informados à RFB, efetivadas a partir de 01 (uma) única ordem de compra. Imagine-se, agora, o volume de dados de possível atingimento por quem opere, ainda que com baixíssimos valores, em diversas exchanges e com variados criptoativos. Acresça-se a isso, por fim, a obrigatoriedade de se informar não apenas as permutas, mas sim todas as operações com criptoativos2 e se concluirá que um mês não será suficiente para o completo preenchimento do leiaute fornecido pela RFB.
P14- Pode ser questionada a legalidade dessa exigência?
R14- Sim. Das respostas dadas às perguntas anteriores (11-13), extrai-se um primeiro fundamento - e, por ora, iremos nos ater apenas a ele - para se questionar a legalidade da exigência: trata-se de obrigação irrazoável/desproporcional e que, por vezes, será de impossível cumprimento.
Examinemos mais detidamente essa questão.
A obrigação de prestar informações, determinada pela IN discutida, em termos jurídicos, define-se como uma obrigação tributária acessória.
Contrariamente ao que o nome poderia dar a entender, aqui, o acessório não depende do principal. A existência de obrigações tributárias acessórias não depende da existência de uma obrigação tributária principal. Em razão do interesse público na arrecadação e na fiscalização tributária, o ente federado (no caso, a União) tem o poder de instituir obrigação tributária acessória, caracterizada como um dever instrumental orientado a fornecer à Administração o máximo possível de informações das atividades dos administrados (no caso, do OC). Esse entendimento é firme nos Tribunais brasileiros, notadamente no Superior Tribunal de Justiça, para quem o ente federado pode estabelecer tal dever instrumental a "ser observado pelas pessoas físicas ou jurídicas, a fim de viabilizar o exercício do poder-dever fiscalizador da Administração Tributária, ainda que o sujeito passivo da aludida 'obrigação acessória' não seja contribuinte do tributo ou que inexistente, em tese, hipótese de incidência tributária, desde que observados os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade ínsitos no ordenamento jurídico" (vide Recurso Especial Repetitivo 1116792/PB, 1ª Seção, rel. min. Luiz Fux, Data de Publicação do Acórdão: 14/12/10).
Obrigações acessórias podem vir previstas em atos normativos infralegais, tal como uma IN. Ou seja: elas não precisam estar expressas em lei (Código Tributário Nacional, arts. 113, §2º, 96 e 100, I).
Acontece que, essas duas circunstâncias (i. a possibilidade de se instituir em IN uma obrigação acessória, ii. independentemente da existência de uma obrigação principal) não autorizam o Fisco a instituir obrigações tributárias acessórias que desrespeitem a proporcionalidade/razoabilidade, como se infere do próprio acórdão citado (RESp Repetitivo 1116792/PB).
A criação de obrigações tributárias acessórias deve, portanto, observar os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, sob pena de serem nulas.
Finalmente, não é de demais recordar-se que ninguém está obrigado ao impossível ("ad impossibilia nemo tenetur"); em outras palavras, que a validade jurídica de qualquer obrigação pressupõe a sua possibilidade de cumprimento (Código Civil, art. 166, II).
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1 O preço médio não equivale à média do intervalo entre o maior e o menor preço porque o quantitativo de bananas desejadas varia a depender do preço, tendendo a aumentar na medida em que o preço diminui. Ex: a 0,499 havia ordens de compra de 100 bananas, já a 0,479 as ordens de compra somavam 2.000 bananas.
2 (IN RFB 1888/19, art. 6º) § 2º A obrigatoriedade de prestar informações aplica-se à pessoa física ou jurídica que realizar quaisquer das operações com criptoativos relacionadas a seguir: I - compra e venda; II - permuta; III - doação; IV - transferência de criptoativo para a exchange; V - retirada de criptoativo da exchange; VI - cessão temporária (aluguel); VII - dação em pagamento; VIII - emissão; e IX - outras operações que impliquem em transferência de criptoativos.
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*Alexandre Senra é procurador da República no Estado do Espírito Santo.
*João Felipe Calmon Nogueira da Gama é juiz leigo do Tribunal de Justiça do Estado do Espírito Santo.