Da tributação dos veículos concedidos a administradores, diretores e empregados
Caso o veículo não seja um instrumento indispensável ao trabalho, mas um benefício concedido pela empresa, é possível analisar outras formas, menos onerosas do ponto de vista tributário, de atração e retenção de funcionários.
segunda-feira, 26 de agosto de 2019
Atualizado em 23 de agosto de 2019 13:58
Introdução
Em um mercado cada vez mais concorrido, a concessão de benefícios aos administradores, diretores e empregados é instrumento comumente adotado pelas empresas para captar e reter talentos. Veículo de luxo, moradia, mensalidade de clubes e escolas e salário de empregados domésticos são alguns dos benefícios mais comuns oferecidos, principalmente, aos ocupantes dos altos cargos das companhias.
O fornecimento dos chamados "fringe benefits", ou remuneração indireta, entretanto, traz consequências não apenas na esfera trabalhista, mas também na tributária. Isso porque, a depender da natureza do benefício e do contexto do seu pagamento, a empresa poderá sofrer a glosa de despesas, bem como a exigência de contribuições previdenciárias e imposto de renda da pessoa física, acrescidos de multa e juros. Tais exigências podem abarcar os últimos 5 (cinco) anos e englobar os benefícios concedidos a todos os executivos e empregados, alcançando, assim, somas vultosas.
Diante disso, analisaremos a tributação dos veículos concedidos a administradores, diretores e empregados, bem como os gastos incorridos pela empresa com seguro, combustível, manutenção e custeio desses bens. Por fim, exporemos algumas medidas que podem ser adotadas pelas empresas para minimizar os riscos tributários.
1. Da incidência de contribuições previdenciárias e imposto de renda da pessoa física
a) Veículo como remuneração pelo trabalho
Sem grandes controvérsias é a tributação do uso de veículos concedidos a administradores, diretores e empregados a título de remuneração pelo trabalho, isto é, quando o veículo não é considerado um instrumento de trabalho do usuário. O mesmo se dá com todas as despesas correlatas arcadas pela empresa, tais como seguro, combustível, manutenção e custeio.
Isso porque, nos termos do art. 22, I, da lei 8.212/91, as contribuições previdenciárias a cargo da empresa incidem, à alíquota de 20%, sobre o total das remunerações pagas a qualquer título aos segurados empregados e trabalhadores avulsos, destinadas a retribuir o trabalho, qualquer que seja a sua forma, inclusive os ganhos habituais sob a forma de utilidades.
Ao analisar o conceito de remuneração para fins de incidência de contribuições previdenciárias, o STF, nos autos do RE 565.160/SC, julgado na sistemática da repercussão geral, firmou a tese de que a "contribuição social a cargo do empregador incide sobre ganhos habituais do empregado, quer anteriores ou posteriores à EC 20/98".
Portanto, sendo o veículo e as despesas a ele relacionadas ganhos habituais sob a forma de utilidade, dúvidas não há da sua tributação pelas contribuições previdenciárias.
Com relação ao imposto de renda da pessoa física, o Regulamento do Imposto de Renda, aprovado pelo decreto 9.580/18 ("RIR/18"), é expresso acerca da tributação dos veículos concedidos a administradores, diretores e gerentes a título de remuneração pelo exercício de emprego, cargo ou função, bem como das despesas pagas com conservação, custeio e manutenção de tais bens1.
Nesse contexto, o imposto é calculado de acordo com a tabela progressiva e incide sobre o valor do arrendamento mercantil ou do aluguel, caso se trate de bem de terceiro, ou do encargo de depreciação, na hipótese de o veículo pertencer à própria empresa. O imposto incidente sobre gastos com conservação, custeio e manutenção dos veículos, por sua vez, é calculado com base no valor da despesa.
Por se tratar de um pagamento em utilidade, a empresa responsável pela retenção do imposto de renda da pessoa física, deverá efetuar o reajustamento da base de cálculo ("gross up"), de forma que o valor do benefício seja considerado líquido. Tal tributação, entretanto, não é definitiva, devendo o administrador, diretor ou empregado, contemplado com o veículo, incluir tais rendimentos em sua Declaração de Ajuste Anual.
Quanto à responsabilidade, a fonte pagadora que deixar de reter o imposto de renda poderá ser exigida do imposto, da multa de ofício e dos juros de mora, a depender do momento em que for constatada a falta de retenção. Explica-se: (i) se a Autoridade Fiscal verificar que a fonte pagadora deixou de reter o imposto sobre o veículo ou despesas correlatas antes da data fixada para a entrega da Declaração de Ajuste Anual do beneficiário, poderá exigir-lhe o imposto, acrescido de multa de ofício e juros de mora; por outro lado, (ii) se constatada a falta de retenção após a data de entrega da referida declaração, caberá à empresa o pagamento apenas da multa de ofício e dos juros de mora, calculados desde a data prevista para o recolhimento do imposto até aquela fixada para a entrega da Declaração de Ajuste Anual.
Isto é, após a data prevista para a entrega da Declaração de Ajuste Anual, a responsabilidade pelo pagamento do imposto caberá unicamente ao administrador, diretor ou empregado, que, não o fazendo, ficará sujeito à multa de ofício e aos juros de mora calculados a partir da data prevista para o pagamento do ajuste anual do imposto de renda da pessoa física2.
A empresa é responsável, ainda, por identificar e individualizar os beneficiários dos veículos e das demais despesas correlatas, sob pena de exigência do imposto de renda, exclusivamente na fonte, à alíquota de 35%, sobre a base de cálculo reajustada. Nessa hipótese, entretanto, os rendimentos não serão adicionados à remuneração para fins de exigência do imposto de renda da pessoa física3.
Diante disso, não há dúvidas de que a concessão de veículos a administradores, diretores e empregados, de forma habitual, como contraprestação pelo trabalho, atrai a incidência de contribuições previdenciárias e imposto de renda da pessoa física. No entanto, casos há em que o veículo não consiste em remuneração pelo trabalho, mas, em verdadeiro instrumento necessário à sua realização, o que, como se verá a seguir, gera efeitos tributários distintos.
b) Veículo como instrumento para o trabalho ou de uso misto
A depender da atividade da empresa, ou da função exercida pelo usuário, pode ser necessário que os administradores, diretores e empregados valham-se do uso de veículos para o desempenho de suas funções. Nessa hipótese, o veículo deixa de ser um benefício e integrar a remuneração da pessoa física, e, passa a ser um verdadeiro instrumento do trabalho, não atraindo, portanto, a incidência de contribuições previdenciárias e imposto de renda da pessoa física.
Ocorre que, comumente, o administrador, diretor ou empregado, que necessita do veículo para sua atividade, permanece com o bem aos finais de semana, férias e feriados, caracterizando o chamado "uso misto" do veículo. Nessa situação, o Tribunal Superior do Trabalho sumulou o entendimento de que o veículo fornecido pelo empregador ao empregado, quando indispensável para a realização do trabalho, não tem natureza salarial, ainda que seja utilizado também em atividades particulares do empregado4.
Tal posicionamento, entretanto, não é compartilhado pelas Autoridades Fiscais. O Parecer Normativo Cosit 11/92, invocado com frequência pelo Conselho Administrativo de Recursos Fiscais ("CARF"), estabelece que para a atribuição de efeitos tributários, deve-se quantificar o tempo efetivamente gasto na utilização do veículo para fins particulares e, na impossibilidade de fazê-lo, pode a fonte pagadora adotar o critério da proporcionalidade, rateando os custos e encargos relacionados ao veículo em função dos dias úteis e não úteis do período de utilização.
Dessa forma, nos casos de veículo de uso misto, incidem contribuições previdenciárias e imposto de renda da pessoa física somente sobre a parcela correspondente à sua utilização extra operacional. Para que não haja tributação integral dos valores relativos ao veículo e às despesas correlatas, é preciso comprovar sua indispensabilidade para o trabalho, isto é, sua natureza de instrumento essencial para que administrador, diretor ou empregado desempenhe suas funções5.
c) Situações especiais
Não raro, ao final de determinado período, é concedida ao administrador, diretor ou empregado a opção de adquirir o veículo que, até então, era fornecido pela empresa como benefício ou instrumento para o trabalho. Nessa situação, caso o veículo seja transacionado por valor compatível ao de mercado, estar-se-á diante de uma operação mercantil, não havendo que se falar em efeitos tributários outros6.
Por outro lado, caso o veículo seja vendido ao administrador, diretor ou empregado por valor abaixo ao de mercado, a diferença entre este e o preço de venda poderá (i) ser considerada remuneração e tributada pelo imposto de renda da pessoa física e, eventualmente, pelas contribuições previdenciárias; ou (ii) ser classificada como doação, atraindo a incidência do Imposto de Transmissão Causa Mortis e Doação ("ITCMD").
Ademais, se o veículo pertencer à pessoa jurídica e for alienado a seu administrador por valor notoriamente inferior ao de mercado, a operação pode ser considerada distribuição disfarçada de lucros, nos termos do art. 528, I do RIR/18, e sua consequência será a adição, ao lucro líquido do período de apuração, da diferença entre o valor de mercado e aquele transacionado7.
Por fim, na eventualidade de a empresa optar por não fornecer veículos aos executivos e empregados, mas sim reembolsar as despesas incorridas por estes no uso de veículo próprio para o trabalho, não há que se falar em tributação, desde que (i) haja comprovação efetiva das despesas incorridas; e (ii) os pagamentos se limitem ao valor de tais despesas, sem quaisquer acréscimos8.
2. Dedutibilidade
As despesas com o fornecimento de veículos - isto é, a depreciação, no caso de veículos próprios, ou o preço do aluguel ou do arrendamento, no caso de veículos de terceiros -, em regra, são dedutíveis, independentemente do uso que se faça do veículo. Isso porque, caso o veículo seja utilizado como instrumento de trabalho, a dedutibilidade decorre da sua necessidade à atividade da empresa, nos termos do art. 311 do RIR/18. Por outro lado, caso o veículo seja concedido como benefício indireto, integrará a remuneração do administrador, diretor ou empregado e, igualmente, será dedutível como salário indireto, conforme expressamente autorizado pelo art. 369, §3º, I, do RIR/18.
O CARF, entretanto, já se manifestou pela indedutibilidade dos gastos relacionadas ao fornecimento de veículos de luxo, supostamente utilizados como instrumento de trabalho por funcionários da empresa, por entender não se tratar de despesa normal ou necessária à percepção de receitas ou à atividade da pessoa jurídica9.
Por fim, para que os dispêndios com veículos concedidos a administradores, diretores e empregados sejam considerados dedutíveis, qualquer que seja o seu uso, é indispensável que haja identificação e individualização dos beneficiários, conforme exige o art. 369, §3º, II, do RIR/18.
3. Minimização de riscos
Algumas medidas podem ser adotadas pelas empresas para minimizar riscos de autuações no caso de veículos fornecidos a administradores, diretores e empregados como instrumento de trabalho ou veículos de uso misto.
Além da comprovação inequívoca de que o veículo é necessário à atividade desempenhada pela empresa ou à função exercida pelo executivo ou empregado, é recomendável que a empresa mantenha controles e relatórios adequados, com informações e dados para validar a existência e extensão do uso do carro, a depender das peculiaridades de cada caso.
Além disso, indícios que comumente levam a Receita Federal a lavrar autuações são a existência de apólice de seguro indicando que o veículo se presta unicamente para fins particulares10 e de arrendamento mercantil em nome do sócio, que utiliza o veículo como suposto instrumento de trabalho e cede o contrato à empresa11.
O fornecimento de veículo de porte ou preço incompatível com as necessidades operacionais da empresa, igualmente, poderá levar o Fisco a concluir que não se trata de instrumento de trabalho, mas sim de remuneração indireta, atraindo a incidência de contribuições previdenciárias e imposto de renda da pessoa física.
Outra prática que, igualmente, deve ser evitada, sob pena de majorar os riscos de autuação fiscal, é a tributação do fornecimento de veículos pelo imposto de renda da pessoa física e não pelas contribuições previdenciárias, ou vice e versa. Isso porque, como ambos os tributos, nesse caso, incidem sobre a mesma grandeza, qual seja, a parcela remuneratória correspondente ao veículo, seu tratamento tributário deve ser coerente.
Tais medidas, entretanto, são apenas parâmetros, que não dispensam a análise cuidadosa do caso concreto, para elaborar uma política adequada de fornecimento de veículos e pagamento de despesas correlatas, de forma a minimizar os riscos de indedutibilidade e de exigência de contribuições previdenciárias e imposto de renda da pessoa física.
4. Conclusões
Conforme tratado acima, o fornecimento de veículos a administradores, diretores e empregados, bem como o pagamento de despesas correlatas, de forma habitual e como contraprestação pelo trabalho prestado, atraem a incidência de contribuições previdenciárias e imposto de renda da pessoa física, não havendo grandes controvérsias sobre o tema.
Por outro lado, quando o veículo é instrumento indispensável ao trabalho, o seu fornecimento e o pagamento das despesas correlatas, em regra, não são tributados. Ocorre que, comumente, o veículo é utilizado para o trabalho, mas permanece com o executivo ou empregado aos finais de semana, férias e feriados, caracterizando o seu "uso misto", hipótese na qual a tributação recai sobre a parcela de tempo correspondente, efetiva ou presumidamente, ao uso particular do veículo.
A identificação e individualização dos beneficiários, a manutenção de controles e relatórios adequados, o suporte documental, a contratação de seguro refletindo o efetivo uso do bem e o tratamento tributário coerente são algumas das medidas que podem ser adotadas para diminuir os riscos tributários decorrentes do fornecimento de veículos a administradores, diretores e empregados - o que, entretanto, não afasta a necessidade de análise das peculiaridades do caso concreto e de elaboração cuidadosa de uma política empresarial sobre o tema.
Além disso, caso o veículo não seja um instrumento indispensável ao trabalho, mas um benefício concedido pela empresa, é possível analisar outras formas, menos onerosas do ponto de vista tributário, de atração e retenção de funcionários.
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1 Art. 36, XVII e XVIII.
2 Acerca do tema é o Parecer Normativo Cosit 01/02.
3 Art. 36, §2º do RIR/18.
4 Súmula TST 367.
5 Sobre o tema, entretanto, já entendeu o CARF que incumbe à Fiscalização fornecer, no mínimo, indícios de que os veículos estariam sendo utilizados para outros fins que não os visados no objeto social da empresa, e o fossem em benefício de empregados ou terceiros (Acórdão 2101-001.879, j. em 19/9/12).
6 Nesse sentido é o Acórdão do CARF 2301-002.820, julgado em 16/2/12.
7 Art. 531, I, do RIR/18.
8 Foi o que ocorreu, por exemplo, no Acórdão 2401-004.917, no qual o CARF decidiu que "O contrato de locação de veículo firmado entre empregador e empregado para que este utilize o veículo de sua propriedade na realização dos serviços para o qual fora contratado, desde que celebrado dentro das regras de direito civil, devidamente formalizado, a valor de mercado, por liberalidade das partes, não configura salário indireto para fins de incidência da contribuição previdenciária". Tal entendimento foi confirmado, em 23/7/19, pela Câmara Superior de Recursos Fiscais.
9 Confira-se trecho do Acórdão 180100841, j. em 18/2/12: "A utilização de veículos de luxo, como os Vectras CD (02) e o importado (Pólo Classic 1.8), ainda que adquiridos em nome da empresa, e as despesas por estes geradas excedem, em muito, o conceito de despesas usuais ou normais para a atividade de empregados visitarem clientes, fazerem compras, traçar estratégias etc como discriminado nos tais 'Relatórios de Visitas' apócrifos".
10 Sobre o tema tratou o Acórdão CARF n. 180100841, j. em 18/1/12.
11 Nesse sentido é o Acórdão CARF n. 2402006059, j. em 7/3/18.
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*Maria Carolina Maldonado Mendonça Kraljevic é advogada do escritório A. Lopes Muniz Advogados Associados.