A correta interpretação da cláusula de dispensa ao direito de regresso
A interpretação defendida não visa a proteger as seguradoras, mas a saúde do negócio de seguro e os legítimos interesses do colégio de segurados, sempre presentes e destacáveis por conta do princípio do mutualismo.
terça-feira, 13 de agosto de 2019
Atualizado em 12 de agosto de 2019 13:28
O seguro de transporte pode ser definido como o contrato que garante "ao segurado uma indenização pelos prejuízos causados aos bens segurados durante o seu transporte em viagens aquaviárias, terrestres e aéreas, em percursos nacionais e internacionais".1
Já o contrato de transporte é conceituado como aquele em que "alguém se obriga, mediante retribuição, a transportar, de um lugar para outro, pessoas ou coisa2".
Entre diversos ramos que compõem o negócio de seguros um dos mais importantes é o de transporte. Porque se trata de modalidade que garante o equilíbrio econômico das atividades de toda uma cadeia logística, beneficiando direta e indiretamente diversos personagens que atuam no transporte de bens, desde importadores até consumidores finais.
Não é exagero dizer, portanto, que o transporte de cargas e o seguro de transporte são negócios jurídicos que guardam profunda intimidade e interagem constantemente no mundo dos fatos, e dos mais diferentes modos.
Em sendo assim, as seguradoras são também importantes personagens do contexto negocial, assumindo em não poucos aspectos seu protagonismo. Assumem de pequenos a grandes riscos, calculando o valor do prêmio de acordo com condições previamente estabelecidas em apólice, para um evento extrínseco certo e determinado.
O seguro de transporte é complexo, tem significativas particularidades, merecendo destaque no cenário geral dos seguros. Exatamente por isso talvez seja o que gera o maior número de questões polêmicas e controvertidas.
Trataremos de uma delas, muito comum no modo rodoviário de transporte de carga.
Nos últimos anos, uma nova figura jurídica ganhou força nas apólices de seguro de transporte: a cláusula de dispensa de direito de regresso (DDR), que tem objetivo de eximir o transportador de responsabilidade civil para determinados sinistros.
A DDR pode ser definida como um benefício concedido ao transportador pela seguradora, mediante o estrito cumprimento de cláusulas contratuais e principalmente um plano de gerenciamento de risco (PGR), o qual tem por objetivo reduzir a ocorrência de sinistros, minorar prejuízos ou eventualmente recuperar cargas subtraídas.
Dessa forma, para que o transportador possa ser beneficiado com a renúncia ao Direito de Regresso, são contratualmente estabelecidas certas obrigações de natureza objetiva, além do dever de cuidado que é inerente a todo contrato de transporte.
As condições exigidas pela seguradora para concessão da DDR são acordadas contratualmente. Garantem maior segurança tanto para os transportadores como para embarcadores e consignatários de cargas, considerando que são elaboradas com fundamentos em critérios atuariais, com anuência das partes.
Dentre as questões contratuais estabelecidas para a concessão de DDR, pode-se destacar o plano de gerenciamento de riscos (PGR), elaborado de acordo com o tipo de mercadoria transportada, seu valor agregado, trajeto a ser percorrido pelo transportador e outros fatores.
Quanto maior o risco coberto, maiores serão as exigências de segurança, que podem passar pelo prévio cadastro e consulta perfil do motorista (antecedentes criminais e qualificação), utilização de sistema de rastreamento e monitoramento de veículo, escolta armada e paradas em pontos previamente determinados.
É notório que vivemos uma verdadeira epidemia de roubos de carga, eventos que deixaram de ser imprevisíveis, pois já são do cotidiano daqueles que operam no mercado de transporte.
Nesse cenário, algumas mercadorias como produtos farmacêuticos e equipamentos eletrônicos, por exemplo, possuem um alto índice de sinistralidade, exigindo um maior cuidado no transporte.
O aumento na concessão das renúncias ao direito de regresso tem gerado, por questões comerciais, diversas demandas judiciais, já que os transportadores abusam da DDR, usam-na como um salvo-conduto, uma espécie de excludente de responsabilidade civil imprópria, deixando de cumprir integralmente com o clausulado estabelecido no termo de renúncia.
Eis aí um grande erro: a cláusula DDR não pode ser tida como passaporte para o erro e para a inobservância dos deveres objetivos de cuidado, próprios da atividade de transporte. Claro que se trata de um poderoso benefício contratual, mas requer limites e não descuida de forma alguma da boa-fé objetiva e da função social das obrigações.
Outro equívoco interpretativo reside em pensar que a Dispensa ao Direito de Regresso também se aplica a riscos cobertos pelo seguro de responsabilidade civil do transportador rodoviário de carga (RCTR-C).
De fato, esse seguro (RCTR-C) é de contratação obrigatória pelo transportador rodoviário, como prevê o Capítulo VI do decreto 61.867/67, que regulamenta os seguros obrigatórios previstos no artigo 20 do decreto-lei 73, de 21 de novembro de 1966 e estabelece que as pessoas jurídicas são obrigadas a segurar os bens ou mercadorias de sua propriedade, contra riscos inerentes aos transportes ferroviários, rodoviários, aéreos e hidroviários, quando objeto de transporte no território nacional.
"CAPÍTULO IV
Do seguro obrigatório de responsabilidade civil dos transportadores em geral
Art. 10. As pessoas físicas ou jurídicas, de direito público ou privado que se incumbirem do transporte de carga, são obrigadas a contratar seguro de responsabilidade civil em garantia das perdas e danos sobrevindos à carga que lhes tenha sido confiada para transporte, contra conhecimento ou nota de embarque.
§ 1º A obrigatoriedade a que se refere este artigo se restringirá aos casos em que os embarques sejam suscetíveis de um mesmo evento, e tenham valor igual ou superior a dez mil cruzeiros novos.
§ 2º Para apuração dessa importância, serão considerados os valores constantes das notas fiscais, faturas, conhecimentos de embarque ou outros documentos hábeis, para aquele fim, que acompanham as mercadorias ou bens."
Segundo a Circular 10/2007 da FENSEG (Federação Nacional dos Seguros Gerais), a contratação do seguro RCTR-C (Responsabilidade Civil do Transporte Rodoviário - Carga), é obrigatória para o transportador conforme a alínea "h" e "m" do artigo 20 do decreto-lei 73/66.
"O RCTR-C é um seguro de responsabilidade civil que garante indenizações a terceiros em razão de acidentes rodoviários. Sua cobertura abrange colisão, capotagem, abalroamento, tombamento, incêndio e explosão, riscos não contemplados na DDR."
Considerando que o RCTR-C é obrigatório por imposição legal, as seguradoras não podem isentar transportadores de sua contratação. Mesmo porque a DDR não se aplica a eventos cobertos por seguro RCTR-C, que abarcam sinistros.
Essa interpretação já foi objeto de criteriosa análise pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo:
RECURSO DE APELAÇÃO INTERPOSTO CONTRA R. SENTENÇA PELA QUAL FOI JULGADA IMPROCEDENTE AÇÃO REGRESSIVA DE RESSARCIMENTO, ESTA DECORRENTE DA INDENIZAÇÃO DE SEGURO POR DANOS SOFRIDOS EM VIRTUDE DE TRANSPORTE DE CARGA TERRESTRE - ALEGAÇÃO DE INCORREÇÃO - PEDIDO DE REFORMA - SEGURO DE TRANSPORTE INTERNACIONAL - DISPENSA DE DIREITO DE REGRESSO ALEGADA PELA EMPRESA RÉ QUE NÃO SE APLICA AO CASO DOS AUTOS, MORMENTE PORQUE TAL DISPENSA SOMENTE SE VERIFICA PARA O CONTRATO DE SEGURO "RCTR-C+DC", QUE CONTA COM COBERTURA DE RISCOS DIVERSOS DO SEGURO OBJETO DE DISCUSSÃO NOS AUTOS - DEVER DE INDENIZAR QUE RESULTOU CONFIGURADO NOS AUTOS - AVARIAS COMPROVADAS - RESPONSABILIDADE OBJETIVA DO TRANSPORTADOR - NEXO CAUSAL COMPROVADO - NECESSIDADE DE REFORMA - RECURSO PROVIDO.
(TJSP; Apelação Cível 1020968-35.2016.8.26.0564; relator (a): Simões de Vergueiro; Órgão Julgador: 16ª Câmara de Direito Privado; Foro de São Bernardo do Campo - 8ª Vara Cível; Data do Julgamento: 30/8/17; Data de Registro: 30/8/17)
AÇÃO REGRESSIVA DE RESSARCIMENTO DE DANOS - Contrato de seguro estabelecido entre a empresa AIG Seguros e Vestas do Brasil Ltda que se destina a garantia das mercadorias transportadas em razão da atividade empresarial - Disposição contratual na apólice de dispensa do direito de regresso (DDR) - Inexistência, entretanto, de "renúncia" de forma ilimitada por parte da seguradora por eventual direito de regresso a possível causador do dano - Interpretação restritiva do art. 114 do CC - Dispensa do direito de regresso (DDR) que não substitui o seguro de Responsabilidade Civil do Transportador Rodoviário (RCTRC), tendo em vista não ser possível dois contratos de seguro cubram o mesmo interesse legítimo do segurado (art. 782 do CC) - Requerida que incidiu efetivamente em culpa ao manobrar o veículo com carga de grandes dimensões, sem os cuidados devidos para a ocasião - Aplicação da Súmula n.º 188, do C. STF, bem como do art. 786, do Código Civil - Reconhecimento do direito de regresso - Sentença reformada para julgar procedente, em parte, a ação - Recurso provido, em parte.
(TJSP; Apelação Cível 1042854-64.2015.8.26.0002; relator (a): Lígia Araújo Bisogni; Órgão Julgador: 14ª Câmara de Direito Privado; Foro Regional II - Santo Amaro - 1ª Vara Cível; Data do Julgamento: 19/4/17; Data de Registro: 5/5/17)
Em relação aos casos de roubo de carga, o clausulado da DDR somente gera efeitos quando o transportador segue corretamente as condições estabelecidas contratualmente no Plano de Gerenciamento de Risco.
Com efeito, o transportador não pode agravar o chamado coeficiente de sinistralidade muito menos oferecer significativa contribuição ao sucesso do roubo, por ato ou omissão.
A conduta grave do transportador implica a desqualificação do benefício e inibe a dispensa de regresso, até mesmo porque torna viciado o conceito de fortuidade e factível o ressarcimento em regresso.
O transportador que viola o PGR, realizando transportes ao arrepio de regras de segurança, não pode ser beneficiado com a dispensa ao direito de regresso, por ferir o princípio da boa-fé que norteia os contratos de seguro.
Também nesse sentido é a jurisprudência:
"PRELIMINAR - Inocorrência de nulidade da sentença quando devidamente motivada e fundamentada - Preliminar afastada. CONDIÇÕES DA AÇÃO - Interesse processual - Ação regressiva - Presença dos elementos adequação e necessidade do provimento jurisdicional - Tendo a autora logrado demonstrar a inaplicabilidade da cláusula de dispensa de direito de regresso (DDR), não há que se falar em carência de ação - Preliminar afastada. APELAÇÃO CÍVEL. Ação regressiva - Seguro - Transporte de mercadorias - Roubo de carga - Sub-rogação da seguradora nos direitos da segurada - Sentença de procedência - Inconformismo da requerida - Inadmissibilidade - Cláusula contratual de dispensa de direito de regresso - Não incidência no caso concreto - Inadimplemento contratual da transportadora - Ausência de escolta armada - Apelada que tem o direito de verificar periodicamente se as medidas de segurança estão sendo adequadamente tomadas pelas empresas de transporte, mas não tem o dever de fazê-lo - Referida obrigação de atuar de acordo com o previsto na apólice é da empresa de transporte, sob risco de responder pela ocorrência do sinistro - A transportadora responde perante o cliente se não comprovar ter tomado as medidas preventivas condizentes com o serviço que presta - Agravamento do risco evidenciado - Roubo da carga transportada que não configura evento de força maior, pois a apelante deixou de observar a contratação de escolta contribuindo, deste modo, para a ocorrência do infortúnio - Sentença mantida - Aplicação do artigo 252 do Regimento Interno do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo - Recurso não provido.
(TJSP; Apelação Cível 1060620-30.2015.8.26.0100; relator (a): Helio Faria; Órgão Julgador: 18ª Câmara de Direito Privado; Foro Central Cível - 16ª Vara Cível; Data do Julgamento: 2/5/17; Data de Registro: 9/5/17)"
Se há um agravamento de risco consubstanciado na violação contratual, o transportador não pode ser beneficiado pela DDR, que busca fortalecer medidas de segurança a serem adotadas pelo transportador.
Considerando a natureza restritiva do instrumento de renúncia, a DDR dever ser analisada em harmonia com o artigo 114 do Código Civil, pois "Os negócios jurídicos benéficos e a renúncia interpretam-se estritamente."
Ora, a cláusula DDR não é salvo-conduto para procedimentos arbitrários e facilitadores da perda da carga por parte do transportador.
A violação aos termos pactuados no instrumento de renúncia desqualifica a cláusula DDR, tornando ineficaz seu conteúdo perante o transportador que atua de forma desidiosa.
A condição especial de dispensa do direito de regresso é concedida aos transportadores diligentes que buscam cumprir as medidas garantidoras da incolumidade da carga, em estrito cumprimento aos termos contratuais.
A Dispensa ao Direito de Regresso não é uma carta branca concedida aos transportadores, principalmente àqueles que violam normas de trânsito, ignoram regras de gerenciamento de risco e atuam de forma negligente na execução do contrato de transporte.
É preciso ficar claro que a concessão da DDR não pode isentar o transportador rodoviário da contratação do seguro RCTR-C, que não poderá ser contratado pelo embarcador em seu nome3.
Os riscos cobertos pelo seguro RCTR-C de contração obrigatória pelo transportador rodoviário não são alcançados pela DDR, pois são de naturezas distintas. As seguradoras não podem transigir sobre um direito que não lhes pertence.
Pode-se concluir que a DDR, em essência, tem como objetivo garantir uma maior diligência dos transportadores na prestação do serviço, por isso a importância do estrito cumprimento dos termos contratuais e das regras que disciplinam o transporte rodoviário de cargas.
Nosso interesse imediato neste modesto comentário foi dedicado ao roubo de carga, mas os arquétipos do raciocínio podem e devem ser empregados aos demais fenômenos adversos do transporte de cargas, especialmente o tombamento, normalmente marcado por erros gravíssimos do transportador.
Em suma, quem faz jus a um bônus de tamanha envergadura, como a isenção de responsabilidade, deve abraçar o ônus do estrito cumprimento ao clausulado e das demais regras que disciplinam o transporte rodoviário de cargas, sob pena de perder tal benefício.
O erro grave, inescusável, pode ser perfeitamente equiparado, conforme o desenho fático do caso concreto, com o quase-dolo e este inibe a concessão do benefício clausular, até porque o dolo jamais poderá ser contemplado pelo negócio de seguro.
A interpretação defendida não visa a proteger as seguradoras, mas a saúde do negócio de seguro e os legítimos interesses do colégio de segurados, sempre presentes e destacáveis por conta do princípio do mutualismo. Nisso consiste a função social especial do negócio de seguro.
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*Marcio Sebastião Aguiar é advogado, membro de Machado, Cremoneze, Lima e Gotas - Advogados Associados.
*Paulo Henrique Cremoneze é advogado e sócio-diretor de Machado, Cremoneze, Lima e Gotas - Advogados Associados.