A administração do medo e os óbices à efetivação do princípio constitucional da eficiência
A substituição da Administração do medo por uma "boa administração" é a medida que se impõe.
quinta-feira, 8 de agosto de 2019
Atualizado em 7 de agosto de 2019 17:31
Em razão dos incentivos financeiros, tecnológicos e de pessoal, somados à relevante autonomia operacional, os órgãos de controle brasileiros fortaleceram-se. Como resultado desse evento, atuações da Polícia Federal (PF), em conjunto com o Ministério Público Federal (MPF), Procuradoria Geral da República (PGR) e Poder Judiciário resultaram na maior operação dita anticorrupção da história do Brasil. Trata-se da operação Lava Jato, cuja intenção primordial era estancar a corrupção que consumia a estrutura da Administração Pública e, por sua vez, influenciava sobremaneira a qualidade de vida da sociedade brasileira.
A operação Lava Jato - marcada pela luta contra corrupção e contra a impunidade dos criminosos do colarinho branco -; recebeu apoio dos grandes veículos de imprensa e de uma esmagadora maioria da sociedade brasileira. Não é forçoso reconhecer a legitimidade1 da qual passaram a gozar os órgãos de controle.
Assim como as escalações das seleções brasileiras dantes empolgantes, a composição do STF tornou-se pauta das conversas de botequim. A estrutura e as instituições essenciais à justiça passaram a ser (re)conhecidas.
Os órgãos de controle promoveram benefícios à sociedade (luta contra a corrupção, fim da impunidade, responsabilização dos agentes públicos). Entretanto, prejuízos também podem ser identificados como, dentre outros, a supressão de garantias fundamentais, a flexibilização de normas constitucionais e a insegurança jurídica.
Em decorrência da operação Lava Jato e do fortalecimento dos órgãos de controle, o modus operandi da Administração Pública fora alterado. O medo, sob diversas acepções, passou a influenciar o cotidiano da estrutura do Poder Público. O alargamento de competência dos órgãos de controle cumulado com o clamor popular na sanha de extirpar a corrupção do Brasil, sem olvidar o ativismo judicial, deslocaram os agentes públicos para o alvo das suspeitas e investigações. Como consequência disso, a Administração Pública - e, por sua vez o agente público -, passou a ser observada como um todo corrompido e responsável pelas mazelas da sociedade brasileira.
A reboque responsáveis da cruzada aos agentes públicos enquanto responsáveis únicos pela corrupção sistêmica e seus efeitos nocivos ao desenvolvimento do Estado, deve-se colacionar o desafogo de José Carlos Abraão "De que vale constituir o servidor público em bode expiatório das mazelas que infelicitam o País? Como profissionalizar uma classe perseguida, acintosamente, pretendendo-se reduzi-la a uma subalternidade que só interessa ao partido político dominante?".2 Nessa amálgama, pelo simples fato de exercer função pública, presume-se de forma genérica a culpabilidade ou aptidão para praticar delitos contra a Administração Pública ou contra o sistema financeiro do agente
A praxe, portanto, tornou-se a repressão e a punição célere e exemplar dos agentes públicos, ainda que máculas aos direitos fundamentais sejam necessárias, a exemplo da inobservância do devido processo legal e seus corolários, dentre os quais a ampla defesa, o contraditório, o juiz natural, a presunção de inocência e outras garantias conquistadas a duras penas e elencadas na Constituição Cidadã.
Nessa linha de conta, com medo de ser penalizado nas mais variadas esferas (administrativa, civil, eleitoral ou penal), o agente público evita decidir, quer seja na atuação vinculada ou no exercício da discricionariedade conferida por lei. A busca pela satisfação do interesse público é deixada de lado, a proteção pessoal e a esquiva ao raio de observação dos órgãos de controle é que pautam a atuação do administrador público.
Implantou-se, portanto, o que se convencionou por chamar de "crise de ineficiência pelo controle".3 A realização do interesse da Administração não mais importa ao agente público que, por seu turno, baliza sua atuação nas condutas que lhe garantirão uma situação de segurança e proteção pessoal. A proatividade dos órgãos de controle e a flexibilização de garantias constitucionais somadas às influências da opinião popular engessaram a estrutura de uma Administração Pública crescentemente subalterna ao medo.
Não se questiona a importância dos órgãos de controle e a necessidade para a elisão da corrupção de condutas fraudulentas do cotidiano do Poder Público, uma vez que o controle da Administração é medida essencial para a limitação do arbítrio e ponto nodular para os Estados Democráticos. Entretanto, controle e repressão em demasia oportunizam a ineficiência administrativa e a manutenção do status quo - o que mais uma vez viola frontalmente os preceitos da Constituição da República.
Toda atuação do Estado - e, por consequência da Administração Pública - destina-se ao desenvolvimento. Nesse caminho, o agente público não pode limitar suas atividades na solução robotizada de "problemas já configurados", deve prezar, na busca pelo interesse público, pela configuração de soluções benéficas para o futuro e para o desenvolvimento.4
E mais. A eficiência é um princípio constitucional fundamental da Administração Pública, disposto no art. 37, caput, da Constituição da República, que fora incorporado no regime jurídico administrativo por meio da Emenda Constitucional 19/98, emenda essa que oportunizou a reforma administrativa do Estado.
O princípio constitucional da eficiência inovou a ordem jurídica com a finalidade de impulsionar uma Administração Pública mais eficaz a uma prestação mais benéfica de serviços à sociedade com os mecanismos existentes, de forma a otimizar e a respeitar as contribuições do cidadão.5 Com o surgimento do referido princípio, algumas concepções sobre o Direito Administrativo e sobre os serviços públicos foram reestruturadas, o administrado passou a ser denominado como cliente da Administração.6
A eficiência, portanto, norteia a Administração Pública no caminho de bons resultados e de uma boa administração. Traduz-se, portanto, na prestação de serviços públicos de forma universal, contínua e gratuita; na intervenção do Estado na economia de modo a promover o desenvolvimento nacional com a erradicação da pobreza e a redução de desigualdades sociais; na formalização de contratos administrativos que propiciem a melhor satisfação do interesse público.
Nesse caminho são os ensinamentos de Maria Sylvia Zanella Di Pietro, para a qual o princípio da eficiência vincula o agente público a uma atuação voltada à satisfação dos fins aos quais se destina o Estado.7 Para Odete Medauar, a eficiência na Administração Pública enseja uma atuação célere e precisa na satisfação das necessidades da população.8
Para além disso, a eficiência está associada a uma razão de boa administração - decorrente da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (art. 41. da Carta de Nice, 2000). O "direito fundamental a uma boa administração" nada mais é do que a garantia conferida aos cidadãos de cobrarem do Estado a plena efetivação dos direitos fundamentais.9
Pois bem. O exercício da função pública está associado ao regime jurídico administrativo, o qual engloba a observância ao princípio constitucional da eficiência. Princípio esse que vincula o agente público à satisfação de direitos fundamentais dos cidadãos e à "'utilização de toda perícia, objetividade, prudência, eficiência e critérios necessários à satisfação de cada necessidade concreta cuja satisfação figure entre as competências do Estado."10.
A eficiência, enquanto princípio, possibilita que o agente público crie e utilize todas as suas capacidades e habilidades na satisfação do interesse público. Ocorre que, a imputação - sem processo prévio e justo - de culpabilidade aos agentes públicos pelo simples fato de exercerem função pública desborda os preceitos do referido princípio, razão pela qual se instaurou a Administração e, por sua vez, a ineficiência administrativa.
Embora os órgãos de controle e os mecanismos de combate à corrupção sejam essenciais à democracia, o respeito às garantias fundamentais é imprescindível. A corrupção é intrínseca às civilizações, portanto, a burocracia (mecanismos de controle e repressão) não parece ser adequada em detrimento dos direitos fundamentais dos cidadãos, o respeito ao devido processo legal, ao juiz natural, à presunção de inocência, à legalidade figuram como alternativas mais satisfatórias à eficiência administrativa.
Note-se: muitos agentes públicos deixam de desenvolver atividades típicas da Administração Pública11 defronte ao temor de sofrerem as duras consequências de uma investigação ou de um processo criminal pela ferrenha repressão dos órgãos de controle. A inércia e a ineficiência tomaram conta da Administração Pública em tempos de burocracia e repressão.
A substituição da Administração do medo por uma "boa administração" é, portanto, a medida que se impõe.
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1 Administração pública do medo.
2 ABRAÃO, José Carlos. "Princípio da Eficiência". Informativo Licitações e Contratos 64. Curitiba: Zênite, 1999. p. 455.
3 Disponível aqui.
4 BLANCHET, Luiz Alberto. Administração pública, ética e desenvolvimento: o que o agente público deve e o que não pode fazer. 2ª ed. Curitiba: Juruá, 2016. p.10.
5 MODESTO, Paulo. Notas para um Debate sobre o Princípio da Eficiência. Boletim de Direito Administrativo. São Paulo, ano XVI. n. 11. novembro, 2000, p. 840.
6 FIGUEIREDO, Lúcia Valle. Curso de direito administrativo. 4.ed. São Paulo: Malheiros, 2000. p. 61.
7 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 10.ed. São Paulo: Atlas, 1999. p. 73.
8 Direito administrativo moderno. 5. ed. rev. e atual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001. p. 152.
9 SCHWANKA, Cristiane; OLIVEIRA, Gustavo Justino de. A administração consensual como a nova face da Administração Pública no séc. XXI: fundamentos dogmáticos, forma de expressão e instrumentos de ação. Revista Eletrônica da Faculdade de Direito da PUC-SP, São Paulo, v. 104, p. 305, 2009.
10 BLANCHET, Luiz Alberto. Administração pública, ética e desenvolvimento: o que o agente público deve e o que não pode fazer. 2ª ed. Curitiba: Juruá, 2016. p.35.
11 Nesse item, deve-se evidenciar as atividades que deixam de ser realizadas em razão da Administração do medo: medicamentos e materiais escolares deixam de ser comprados; estradas, pontes, rodovias e investimentos em saneamento básico deixam de ser realizados; professores e médicos deixam de ser contratados; políticas públicas deixam de ser realizadas.
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*Leonardo de Souza Prates Menezes é pós-graduando em Direito Administrativo pelo Instituto de Direito Romeu Felipe Bacellar Filho.