A utilização desvirtuada do instituto da recuperação judicial pelo "empresário/produtor rural"
Faz-se necessário que o Poder Judiciário não dê guarida a pretensões que, claramente, visem desvirtuar o instituto da Recuperação Judicial e que se descuidem da segurança jurídica e boa-fé contratual, sob pena de viabilizar procedimentos contraproducentes e prejudiciais à sociedade.
terça-feira, 30 de julho de 2019
Atualizado em 29 de julho de 2019 13:21
Não é novidade que, muito embora se tenha notado sensível reação da economia, os pedidos de Recuperação Judicial crescem de maneira significativa.
Nesta toada, os pedidos de Recuperação Judicial realizados por produtores rurais ganharam força com decisões recentes do Tribunal de Justiça de São Paulo e do Superior Tribunal de Justiça.
A controvérsia, na ampla maioria dos casos, envolve a interpretação dos dispositivos legais que regem a matéria, ou seja, que somente poderá requerer recuperação judicial aquele que comprovar o exercício regular da atividade por mais de dois anos (art. 48, LRF) e demonstrem registro mercantil na Junta Comercial (art. 51, V, LFR).
Ademais, a discussão circunda a aplicação do art. 971 do Código Civil, que faculta ao produtor rural tal registro, não significando, com isso, que este não exerça atividade empresarial regular. Assim, parte da jurisprudência passou a olhar o produtor rural como empresário de fato, apto a fazer recuperação judicial, mesmo sem registro há dois anos na Junta Comercial.
Os recentes enunciados 96 e 97 da III Jornada de Direito Comercial do Conselho da Justiça Federal, de maneira equivocada e genérica, orientam pela aceitação do pedido de recuperação judicial do empresário rural, pessoa natural ou jurídica, de todos os créditos existentes na data do pedido, inclusive os anteriores à data da inscrição no Registro Público de Empresas Mercantis, dispensando ainda que o produtor rural esteja inscrito há mais de dois anos no Registro Público de Empresas Mercantis, bastando a demonstração de exercício de atividade rural por esse período e a comprovação da inscrição anterior ao pedido.
No entanto, há insofismável silêncio da doutrina e da jurisprudência para situações peculiares, nas quais ficam evidentes as intenções dos supostos "produtores rurais" ao se utilizarem do pedido de recuperação judicial com nítido oportunismo, fraude a credores e deturpação da lei.
São comuns as manobras societárias fraudulentas praticadas por sócios de empresas ligadas ao agronegócio, como a abertura de empresas individuais ou registro público de empresa mercantil, meses ou até dias antes do pedido de recuperação judicial, visando enquadrarem-se no conceito de "empresários/produtores rurais".
Via de regra, sócios de empresas ligadas ao agronegócio se utilizam do pedido recuperacional em clara ofensa à boa-fé contratual (artigo 422 do Código Civil) e à segurança jurídica, uma vez que visam alterar todas as premissas de contratos anteriores firmados anteriormente com credores e afastar a qualidade de avalistas/coobrigados/devedores solidários. Tais pretensões colocam sócios em posição confortável, ao permitirem que deixem de adimplir com as obrigações assumidas perante os credores na qualidade de pessoas naturais.
Sobreleva notar que, em tais situações, os credores da empresa em Recuperação Judicial são surpreendidos com os pedidos dos sócios na qualidade de "produtores rurais", quando, na verdade, no momento da concessão do crédito, fornecimento de produtos ou da prestação do serviço, os sócios não sustentavam tal posição na relação jurídica de natureza contratual.
Neste raciocínio, inviável invocar o interesse da sociedade na preservação da atividade empresarial que sequer existia formalmente no momento, ou melhor, que apenas passou a existir muito depois da origem do crédito, quando do registro da condição de empresário, ato que corrompe a boa-fé, regra de conduta e dever de agir com honestidade e lealdade das partes na relação contratual.
Por outro lado, é preciso frisar que só pode ser considerada empresa a atividade econômica organizada, que engloba, de forma encadeada, quatro fatores de produção: capital, mão de obra, insumos e tecnologia. (COELHO, Fabio Ulhoa. Manual de Direito Comercial. 14 Edição São Paulo: Saraiva, 2003.)
Assim, não podem ser considerados "empresários/produtores rurais" aqueles que, na verdade, já se utilizavam de pessoa jurídica constituída no mercado para obter lucro, em sociedade com outro, e, furtivamente, constituem empresas individuais para se enquadrarem nos requisitos da lei 11.101/05, com clara intenção de blindar patrimônio pessoal e fraudar credores.
Neste raciocínio, em recente decisão proferida pelo desembargador Péricles Bellusci de Batista Pereira, do Tribunal de Justiça do Paraná (agravo de instrumento 0030457-33.2019.8.16.0000 da 18ª Câmara Cível), foi afastada, liminarmente, a inclusão dos ditos produtores rurais, sócios de empresa de renome no setor agropecuário. Destacamos os fundamentos:
"Note-se que, conquanto haja divergência na doutrina e na jurisprudência sobre a matéria, ao menos em um juízo sumário, há que se adotar a posição de que, para pleitear sua recuperação judicial, o produtor rural deve estar inscrito como empresário na Junta Comercial há pelo menos 02 (dois) anos.
Entendimento em sentido diverso, ao que tudo indica, não apenas viola a literalidade da lei (que permite tão somente a recuperação de empresário e de sociedade empresária, impedindo, assim, a utilização do instituto em benefício de pessoas físicas), como também traz um quadro de insegurança jurídica aos credores, que contratam com o produtor rural (pessoa física) acreditando que ele não se submete aos ditames da lei 11.101/05.
Além disso, há que se observar que os autores _____________________, ao que tudo indica, constam como garantidores de diversas obrigações da pessoa jurídica, o que demanda ainda mais cautela na análise dos fatos, até mesmo para evitar que o instituto da recuperação judicial seja utilizado de forma desvirtuada, com o intuito de impedir a execução das garantias ofertadas pelos sócios."
Não se pode olvidar, ainda, que existem os defensores da interação estratégica entre devedor e credores, com base no artigo 47 da lei 11.101/05. No entanto, tal prática, visa a recuperação da empresa em dificuldades financeiras e não pode se sobrepor quando existirem indícios de que os supostos "empresários/produtores rurais", pessoas naturais, visam blindar patrimônio pessoal, desvirtuar o instituto da Recuperação Judicial e, por conseguinte, afrontar a boa-fé.
Portanto, faz-se necessário que o Poder Judiciário não dê guarida a pretensões que, claramente, visem desvirtuar o instituto da Recuperação Judicial e que se descuidem da segurança jurídica e boa-fé contratual, sob pena de viabilizar procedimentos contraproducentes e prejudiciais à sociedade.
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*Marcus Vinicius Moura de Oliveira é advogado do escritório Tortoro, Madureira e Ragazzi Advogados.