No silêncio, o contrato... ou sobre a importância de desobedecer
Esta é uma boa hora para lembrarmos o jurista e professor Francesco Carnelutti, mestre de Milão, quando escreveu na pedra que, por sua natureza, o direito, em um mundo dominado pela economia, tem a função de reduzir a economia à ética. Que o direito cumpra serenamente a sua função.
segunda-feira, 17 de junho de 2019
Atualizado em 21 de março de 2022 14:06
Lanterna de popa acessa. Consumado o impeachment da presidente Dilma Rousseff, revelado o imbróglio no processo que fatiou a acusação, separou a condenação e torturou a Constituição. Judicializado o caso, atenuadas ou exacerbadas as paixões conforme o gosto de cada um, voltamos a nossa atenção para uma questão acadêmica que emergiu na época. Discutiu-se com ardor no processo, como tudo que se passou no cenário-bolha daqueles meses de 2016, se o que houve entre o Tesouro e os bancos estatais foi um contrato de empréstimo ou apenas uma mera demora no pagamento de obrigações regulares.
Como se sabe, o Banco do Brasil e a Caixa Econômica foram usados pelo governo para efetuar pagamentos a terceiros, antes que o Tesouro provesse os fundos necessários a tais desembolsos. As operações foram feitas sem base em um contrato escrito. Eis que, naquele turbilhão político, voltou renascido das cinzas, literalmente, o problema do contrato implícito ou meramente verbal.
Alguém já escreveu que, assim como Colombo morreu acreditando ter chegado às Índias, o direito atravessou séculos sem realizar o que viria a ser a teoria dos contratos. Uma vez verificada a sua procedência, não seria mais possível à mente jurídica fazer qualquer raciocínio objetivo sem pensar no contrato, nem que fosse para descartar a sua existência.
No caso Dilma, a acusação e o TCU detectaram a sua existência nos procedimentos entre Tesouro e bancos estatais. A acusação disparou que o Tesouro, ao retardar os desembolsos programados, combinado com a efetivação de pagamentos aos destinatários pelos bancos, contraiu divida com esses bancos, não por acaso entidades controladas pelo próprio Tesouro.
A defesa alinhou inicialmente três argumentos em contrário: (i) tratava-se de prestação de serviços, (ii) um contato pressupõe acordos de vontade supostamente inexistentes no caso, e, ao fim, (iii) não há ocorrência de atrasos quando não há prazos estipulados. Ora, se não há operação de empréstimo formal e escrito, com nomes, datas, objeto, preços e prazos, não haveria contrato, sustentou a defesa.
Pode-se dizer a guisa de ironia, que há um abismo entre fazer alguma coisa natural ou instintivamente - como respirar ou falar em prosa - ou fazer algo com o pleno conhecimento consciente do que se está fazendo. Damos conta que ao falamos em prosa, vem logo à mente preocupações sobre regras de expressão oral, sintaxe, escolhas verbais, enfim, sobre a teoria da linguagem. Depois que bibliotecas foram erguidas sobre a teoria dos contratos, tornou-se impossível às pessoas - mesmo as comuns - mais ainda a profissionais, agir sem saber quando se está diante de um contrato, um pacto, uma combinação, um compromisso, um dever, um direito, uma obrigação, mesmo que silenciosa, implícita, tácita ou apenas oral.
No direito anglo-saxão, apegado aos costumes mais do que à formalidade do direito escrito, essa questão nem chega a provocar curiosidade. Parafraseando Mallarmé, que disse o mesmo em relação à literatura, e à Susan Sontag em relação à fotografia, no mundo da Common Law, onde a menor intervenção estatal não é apenas uma coincidência, até o mais comum dos mortais sabe que quase tudo na vida existe para ser um contrato.
Mas, para anotar que a ideia de contrato vem se enfraquecendo, remetemos ao professor de Stanford, Lawrence Friedman, talvez o autor mais citado sobre a História do Direito, ao constatar que as maiores mudanças que afetam o contrato vieram não do próprio direito contratual, mas sim do Estado, que roubou a autonomia de vontade e da liberdade de contratar pela imposição de normas de ordem pública no campo administrativo, trabalhista, tributário, societário, antitruste, seguros, aos quais acrescentamos meio ambiente, consumo e previdência social. Não à toa, é quase lugar comum dizer nietzscheanamente, como Grant Gilmore, este professor de Yale, que o contrato, como Deus, está morto. Mas, para a (in)felicidade de muitos, temos um Deus ressurreto.
No nosso direito, filiado ao regime da Civil Law, cuja fonte é romano-germânica, no qual a lei escrita ocupa posição de prevalência como fonte do direito, a figura do contrato implícito ou apenas oral, ganhou acolhimento e amplitude no corpo da legislação. Assim, o nosso ordenamento em diversas situações acolhe a instituição do contrato mesmo quando esse não está instrumentalizado por um documento escrito.
Com efeito, o nosso Código Civil é abundante em estabelecer condições entre as partes mesmo quando estas efetuam transações silenciosas. Assim, o silêncio ou a omissão pode configurar anuência; os negócios sem prazo são considerados exequíveis desde logo; o silencio intencional pode constituir omissão dolosa; considera nulos os negócios ilícitos; condições de parcelamento de pagamento de dívidas somente são admitidas por escrito, caso contrário, a dívida deve ser paga em prestação única; operações de mútuo presumem pagamento de juros, e assim por diante.
A defesa de Rousseff apegou-se em torno da ausência do instrumento contratual restando evidente que, se esse existisse, as impressões digitais estariam ali marcadas. Em outras palavras, a quebra da Lei de Responsabilidade Fiscal estaria provada e documentada1, além disso, seria mais difícil deixar de contabilizar os valores devidos se esses constassem de contratos escritos. Eis ai, justamente, a razão da omissão, esgrimiu a acusação. Touchè!
A verdade é que a transação se operou convenientemente no silêncio ou apenas mediante comando verbal. Um recado? Uma ordem telefônica? Aqui entra mais um fator. E este nos leva aos bancos controlados pela União, na prática pelo Tesouro, o tomador do empréstimo. No Brasil, seria surpreendente se a administração desses bancos tivesse se recusado a efetuar pagamentos a descoberto, como foi o caso desses desembolsos de recursos dos caixas dos bancos estatais. Faltou a Dilma Rousseff um assessor insubordinado.
O temor reverencial, ainda que não configure coação, é um fato inexorável no âmbito desses entes estatais diante do comando do poder político central. Não devia ser assim, mas no Brasil não se conhece dirigente estatal que tenha se recusado a cumprir ordens de seu controlador, seu chefe ou seu padrinho político, ainda que duvidosas ou mesmo contrárias às normas. Ou que tenha denunciado publicamente o fato. Uma exceção de comportamento digna de nota foi adotada pelo então Ministro Marcelo Calero, que em 2016 denunciou forte pressão para rever um parecer técnico desfavorável a interesses pessoais do então ministro-chefe da Secretaria de Governo do Brasil. Não por acaso, Calero foi eleito deputado federal pelo Rio de Janeiro nas eleições de 2018.
Nos Estados Unidos verificamos agora no chamado Relatório Muller (2019), elaborado após quase dois anos de investigações sobre a interferência russa nas eleições norte americanas de 2016, que os assessores do presidente recusaram-se a cumprir ordens para sabotar o inquérito. Ademais, esses assessores passaram a ostensivamente anotar por escrito as ordens do chefe do governo, como se usassem um escudo, para se proteger previamente da acusação de obstrução de justiça. A um deles (o consultor jurídico da Casa Branca, Don McGahn) o presidente manifestou estranheza com as anotações, dizendo que seus advogados não tomavam notas escritas. O advogado respondeu que os advogados de verdade fazem anotações2. McGahn recusou-se a executar a ordem para demissão de Robert Muller III, o chefe da investigação. Ironicamente, esse cauteloso assessor, ao desobedecer às ordens do presidente pode tê-lo protegido contra si mesmo, ao impedir a efetiva obstrução da justiça.
É de causar arrepios pensar que enquanto trabalhamos duro ou enfrentamos o tráfego ou pagamos as contas, a burocracia esteja trabalhando para criar dificuldades aos cidadãos e encontrar facilidades para os políticos, no seu árduo empenho para gastar, e mal, os recursos do Tesouro. De preferência, para evitar impressões digitais, sem que seja necessária uma ordem ou um contrato por escrito.
Esta é uma boa hora para lembrarmos o jurista e professor Francesco Carnelutti, mestre de Milão, quando escreveu na pedra que, por sua natureza, o direito, em um mundo dominado pela economia, tem a função de reduzir a economia à ética3. Que o direito cumpra serenamente a sua função.
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1 LRF - Art. 36. É proibida a operação de crédito entre uma instituição financeira estatal e o ente da Federação que a controle, na qualidade de beneficiário do empréstimo.
2 Diálogo entre o Presidente Donald J. Trump e o Consultor Jurídico da Casa Branca, conforme o Relatório Muller, no capítulo sobre obstrução de justiça: "E sobre essas anotações? Por que você faz anotações?" Trump indagou, segundo McGhan. "Advogados não fazem anotações. Eu nunca tive um advogado que fizesse anotações." McGhan explicou que suas anotações não eram necessariamente negativas e que ele tomava notas porque era um "advogado de verdade".
3 CARNELUTTI, Francesco. Teoria Geral do Direito, Âmbito Cultural, Rio de Janeiro, 2006.
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*Francisco Rohan de Lima é advogado e consultor sênior em Tauil & Chequer Advogados. Autor de A razão societária - reflexões sobre fusões & aquisições e governança corporativa no Brasil. Renovar, Rio de Janeiro, 2015.