O desuso da hipoteca após o advento da alienação fiduciária em garantia
O tema abordado no presente artigo científico traduz grande relevância para toda a comunidade jurídica, visto que trata sobre dois institutos de vasta utilização quando o propósito é atribuir garantia a negócios jurídicos, quais sejam: a hipoteca e a alienação fiduciária em garantia.
sexta-feira, 14 de junho de 2019
Atualizado em 13 de junho de 2019 12:14
INTRODUÇÃO
O presente estudo tem o propósito de, através do cotejo dos institutos da hipoteca e da alienação fiduciária em garantia, demonstrar de que forma o advento desse refletiu sobre aquele, e por quais razões a hipoteca deixou de ser uma garantia real vantajosa para os contratantes após o surgimento da alienação fiduciária em garantia.
O apresentado adiante terá o escopo de expor as características e as vantagens de cada um dos institutos em comento para, ao final, tratar de forma direta sobre os motivos pelos quais a alienação fiduciária em garantia, por se mostrar mais benéfica e eficiente do que a hipoteca, em termos de garantia real de bens imóveis, notadamente por representar mecanismo que confere mais segurança e celeridade aos financiamentos imobiliários, fez essa última cair em desuso, servindo-se, para tanto, das considerações de renomados doutrinadores brasileiros.
1. HIPOTECA
A hipoteca representa uma criação lenta e gradual do direito romano, e as suas origens históricas remetem à ideia de que a asseguração de uma obrigação através de uma garantia real surgiu para homem tão logo que a experiência demonstrou a falibilidade da garantia puramente pessoal.1
Carlos Roberto Gonçalves assim define esse instituto:
No direito moderno, a hipoteca é concebida e regulada, de modo geral, como direito real de garantia que consiste em sujeitar um imóvel, preferentemente, ao pagamento de uma dívida de outrem, sem retirá-lo da posse do dono. Inocorrendo a solutio, o credor pode excuti-lo, alienando-o judicialmente e tendo primazia sobre o produto de arrematação, para cobrar-se da totalidade da dívida e de seus acessórios2.
Ou seja, é um direito real de garantia sobre coisa alheia que recai, em regra, sobre bens imóveis, e no qual não há a transmissão da posse da coisa entre as partes. Dessa forma, o devedor dá ao credor, em garantia, um bem imóvel de propriedade sua ou de terceiro, suficiente para assegurar o pagamento da dívida, sem transmitir a posse, e a hipoteca serve, justamente, para assegurar preferencialmente ao credor o pagamento dessa dívida.
A disciplinação legal do sistema de garantia real em comento é bifronte, pois o Código Civil, em seus artigos 1.473 a 1.505, define seus aspectos substanciais, enquanto a Lei de Registros Públicos (lei 6.015/73) dispõe sobre seu aspecto procedimental.3
Nessa toada, o Código Civil, em seu artigo 1.473, elenca os bens que podem ser objeto de hipoteca, dentre eles e notadamente os imóveis e os acessórios dos imóveis conjuntamente com eles, conforme previsão expressa do inciso I4 desse dispositivo legal. Entendem-se abrangidas todas as espécies de acessórios conjuntamente com os bens imóveis, isto é, os naturais (como, por exemplo, árvores e frutos pendentes), aqueles que estiverem incorporados ao solo (como, por exemplo, sementes, plantações e safras) e todos aqueles que o sujeito empregar para sua comodidade, aformoseamento ou exploração do imóvel (como, por exemplo, máquinas e animais).5
A respeito da matéria, assinala Flávio Tartuce:
Como é notório, a regra é que a hipoteca recaia sobre bens imóveis, podendo ser citadas casas, apartamentos, escritórios, terrenos e edifícios. Diante do princípio da gravitação jurídica - segundo o qual o acessório, segue o principal -, o bem imóvel abrange todos os seus acessórios, caso dos frutos e das benfeitorias. Em suma, a hipoteca recai sobre o todo.6
Dada a natureza do presente trabalho, não será possível aprofundar o estudo sobre todas as singularidades da hipoteca, razão pela qual limitar-nos-emos ao debate apenas dos pontos essenciais, de maior relevância para contextualizar o tema objeto desse estudo.
1.1. CARACTERÍSTICAS
Sendo um direito real de garantia por excelência, a hipoteca tem como suas principais características: i) a incidência sobre imóvel de propriedade do devedor ou de terceiro; ii) a manutenção da posse da coisa pelo proprietário, devedor hipotecário, que sobre ela exerce todos os seus direitos, usa conforme sua destinação e percebe todos os frutos; iii) a indivisibilidade, em regra, pois, enquanto não liquidada a integralidade da dívida, remanesce a hipoteca sobre a totalidade do bem gravado, salvo estipulação convencional em contrário; iv) a acessoriedade, pois, como garantia, nasce, depende e só subsiste a partir da existência de um crédito a ser garantido.7
Além disso, é válido destacar as suas características de ambulatoriedade (também conhecida como sequela), pois a hipoteca acompanha o bem gravado ainda que haja alteração de sua titularidade, e de temporariedade, pois tem como uma das suas causas de extinção a perempção, com o respectivo cancelamento do registro, após transcorrido o prazo de 30 (trinta) anos.8
As partes desse sistema de garantia real são, naturalmente, o devedor hipotecante, isto é, aquele que dá em garantia um bem, de propriedade sua ou de terceiro, e o credor hipotecário, ou seja, quem recebe o benefício do crédito e do direito real, dotado de direito de preferência sobre a coisa garantida.9
Para Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald, a hipoteca se trata de uma garantia ponderada, senão vejamos:
Na construção teórica, é uma garantia perfeitamente ponderada, atendendo simultaneamente os interesses de credor e devedor: aquele goza de grande segurança jurídica e este obtém crédito e remanesce com a posse do bem hipotecado. Daí o acerto de Silvio Rodrigues ao exclamar que, por meio da hipoteca, "mobiliza-se a riqueza imobiliária". Sendo a hipoteca uma restrição obre o valor da coisa onerada, e não sobre o seu proveito econômico, o direito do credor hipotecário mantém-se suspenso até o prazo prefixado para o adimplemento da obrigação principal. Nesse interregno, o devedor permanece com todos os atributos dominiais, sem que seja desapossado, podendo usar, gozar e dispor do bem sem restrições, sendo-lhe vedado apenas praticar atos que degradem a garantia, pois detém a obrigação de conservar o valor originário da coisa hipotecada.10
De outro norte, convém registrar a possibilidade de o bem hipotecado sofrer uma ou mais sub-hipotecas, consoante dicção do artigo 1.476 do Código Civil, desde que os débitos garantidos não ultrapassem o valor total do imóvel, tendo em vista que essa garantia será convertida em dinheiro na hipótese de inadimplemento pelo devedor. A sub-hipoteca, portanto, é uma modalidade de hipoteca de segundo grau, que pode ser promovida tanto pelo credor já preferencial ou por um novo credor, posteriormente ao registro da hipoteca de primeiro grau, através de um novo registro.11
Admite-se, ainda, a instituição de hipoteca para garantia de dívida futura (a que sequer existe no momento da celebração da garantia) ou condicional (cuja eficácia depende de um evento futuro e incerto), o que a doutrina denomina de hipoteca eventual ou hipoteca condicional, as quais têm sua razão de ser na possibilidade de investimentos de vulto, havendo uma iliquidez inicial da obrigação. Nessas hipóteses, caberá a execução da hipoteca apenas quando a obrigação se tornar líquida, certa quanto à existência e determinada quanto ao valor.12
Por fim, cabe salientar as hipóteses de extinção da hipoteca, previstas no artigo 1.499 do Código Civil, que são: pela extinção da obrigação principal, pelo perecimento da coisa, pela resolução da propriedade, pela renúncia do credor, pela remição e pela arrematação ou adjudicação. É possível extinguir a hipoteca, ainda, com a averbação, no Registro de Imóveis, do cancelamento do registro, à vista da respectiva prova, conforme disposição expressa do artigo 1.500 do Código Civil. Contudo, nos termos do artigo 1.501 do mesmo Diploma Legal, não se extinguirá a hipoteca, devidamente registrada, a arrematação ou adjudicação, sem que tenham sido notificados judicialmente os respectivos credores hipotecários, que não forem de qualquer modo partes na execução.
1.2. ESPÉCIES
Para o presente estudo, algumas espécies de hipoteca apresentam maior relevância do que outras, inclusive por denotarem maiores repercussões práticas, motivo pelo qual serão abordadas brevemente apenas as seguintes espécies: convencional, legal, judiciária e cedular.
1.2.1. Hipoteca convencional
Esta modalidade de hipoteca é criada pela convenção das partes, decorre de um negócio jurídico de caráter acessório e tem o propósito de garantir o cumprimento de uma obrigação a ela subjacente. A sua validade requer a respectiva e competente escritura pública (exceto se o bem gravado tiver valor inferior ao patamar disposto no artigo 108 do Código Civil, ou, independentemente do valor, nas hipotecas do SFH), e sua efetivação dispensa a tradição. Além disso, o artigo 104 do Código Civil, que dispõe sobre os requisitos de validade, exige que o devedor hipotecante seja proprietário do bem constrito e tenha capacidade de fato para hipotecar.13
De acordo com o artigo 1.473, sujeitam-se à hipoteca convencional os imóveis e os acessórios dos imóveis conjuntamente com eles, o domínio direto, o domínio útil, as estradas de ferro, os recursos naturais a que se refere o artigo 1.230 do mesmo Diploma Legal, independentemente do solo onde se acham (isto é, as jazidas, minas e demais recursos minerais, os potenciais de energia hidráulica, os monumentos arqueológicos e outros bens referidos por leis especiais), os navios, as aeronaves, o direito de uso especial para fins de moradia, o direito real de uso e a propriedade superficiária.
1.2.2. Hipoteca legal
Diferentemente da hipoteca convencional, a hipoteca legal não resulta da autonomia privada, mas é imposta por norma jurídica.
Nessa toada, o Código Civil, em seu artigo 1.489, elenca taxativamente os sujeitos e os bens sobre os quais tal modalidade de penhora incide, que são: i) às pessoas de direito público interno (artigo 41) sobre os imóveis pertencentes aos encarregados da cobrança, guarda ou administração dos respectivos fundos e rendas; ii) aos filhos, sobre os imóveis do pai ou da mãe que passar a outras núpcias, antes de fazer o inventário do casal anterior; iii) ao ofendido, ou aos seus herdeiros, sobre os imóveis do delinquente, para satisfação do dano causado pelo delito e pagamento das despesas judiciais; iv) ao co-herdeiro, para garantia do seu quinhão ou torna da partilha, sobre o imóvel adjudicado ao herdeiro reponente, e v) ao credor sobre o imóvel arrematado, para garantia do pagamento do restante do preço da arrematação.
Por expressa disposição do artigo 1.497 do Código Civil, "as hipotecas legais, de qualquer natureza, deverão ser registradas e especializadas". O parágrafo primeiro desse dispositivo legal ainda prevê que "o registro e a especialização das hipotecas legais incumbem a quem está obrigado a prestar a garantia, mas os interessados podem promover a inscrição delas, ou solicitar ao Ministério Público que o faça". Já o parágrafo segundo adverte que "as pessoas, às quais incumbir o registro e a especialização das hipotecas legais, estão sujeitas a perdas e danos pela omissão".
É válido destacar que, no Código de Processo Civil de 1973, revogado, havia a previsão e o tratamento da ação de especialização da hipoteca legal, entre os procedimentos especiais de jurisdição voluntária. Todavia, o Código de Processo Civil de 2015 não reproduziu tais comandos, de sorte que, portanto, a referida demanda passou a ser regulada pelo procedimento comum.14
1.2.3. Hipoteca judiciária
Nos termos do artigo 495 do Código de Processo Civil, "a decisão que condenar o réu ao pagamento de prestação consistente em dinheiro e a que determinar a conversão de prestação de fazer, de não fazer ou de dar coisa em prestação pecuniária valerão como título constitutivo de hipoteca judiciária".
A teor do parágrafo primeiro desse dispositivo legal, a decisão produz a hipoteca judiciária ainda que a condenação seja genérica ou que o credor possa promover o cumprimento provisório da sentença ou esteja pendente arresto sobre bem do devedor, ou, ainda, mesmo que impugnada por recurso dotado de efeito suspensivo.
Essa modalidade de hipoteca, portanto, possui natureza ex lege, dispensa requerimento da parte, e tem como único pressuposto a publicação da decisão, independentemente da interposição de recurso ou de aferição do periculum in mora ou do fumus boni iuris, ou seja, independentemente da cautelaridade ínsita aos procedimentos de arresto e de sequestro, potencializando a chance de o credor, demandante, expropriar o patrimônio do devedor, demandado, a fim de satisfazer seu crédito.15
1.2.4. Hipoteca cedular
A hipoteca cedular foi introduzida no ordenamento jurídico brasileiro pelo decreto-lei 70/66, e é também disciplinada pelo Código Civil, em seu artigo 1.486, segundo o qual "podem o credor e o devedor, no ato constitutivo da hipoteca, autorizar a emissão da correspondente cédula hipotecária, na forma e para os fins previstos em lei especial".
Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald, sobre a matéria, explicam:
Nas leis especiais, a constituição da hipoteca independe de contrato solene e específico, ois, na própria cédula, são inseridos o acordo de criação e reconhecimento da dívida pelo devedor-emitente, e a constituição da hipoteca, especializando-se os bens dados em garantia, com registro da cédula no Ofício Imobiliário. O credor da cédula dispõe de segurança, em razão do vínculo que resulta do registro da cédula no cartório imobiliário.
As hipotecas cedulares são corriqueiras na atualidade, em face do interesse econômico despertado pela possibilidade de sucessivos endossos dos títulos. Outrossim, ao contrário das hipotecas convencionais, o bem constrito não poderá ser objeto de penhora por dívidas posteriores, e o devedor só poderá dele dispor com consentimento do credor. São peculiares às instituições financeiras, são ínsitas à constituição da garantia, no Código Civil a sua emissão será uma mera faculdade dos contratantes, desde que prevista no contrato hipotecário.16
Cabe registrar ainda que, na forma do artigo 10 do decreto-lei 70/66, "é instituída a cédula hipotecária para hipotecas inscritas no Registro Geral de Imóveis, como instrumento hábil para a representação dos respectivos créditos hipotecários, a qual poderá ser emitida pelo credor hipotecário nos casos de: I - operações compreendidas no Sistema Financeiro da Habitação; II - hipotecas de que sejam credores instituições financeiras em geral, e companhias de seguro; e III - hipotecas entre outras partes, desde que a cédula hipotecária seja originariamente emitida em favor das pessoas jurídicas a que se refere o inciso II supra".
1.3. EFEITOS JURÍDICOS
O efeito principal da hipoteca é, sem sombra de dúvida, a vinculação de um bem imóvel ao cumprimento de uma obrigação. Todavia, esse não é o único efeito produzido pela prestação dessa garantia.
Em suma, a hipoteca gera consequências jurídicas para: i) o devedor, pois desde o momento da constituição até a extinção, impõe restrições no direito desse em relação ao bem gravado, porquanto não pode sobre ele constituir outro direito real, exceto outras sub-hipotecas; ii) o credor, tendo em vista que desde o momento em que começa a viger a hipoteca, até que se opere a sua extinção, a garantia mantém o bem gravado em segurança especial ao credor, que, tendo interesse na sua conservação, pode exigi-la, além de poder pedir o reforço da hipoteca, caso a referida garantia venha a se reduzir, sob pena de vencimento antecipado do débito garantido; iii) a relação jurídica em si mesma, quanto aos direitos de preferência (direito reconhecido ao credo de se pagar prioritariamente, sem se sujeitar a concursos ou rateios) e de sequela (particularidade de seguir a coisa onde quer que se encontre, própria dos direitos reais em geral); iv) terceiros, pois, uma vez inscrita, é oponível erga omnes, o que implica dizer que não poderá outro credor promover validamente a venda judicial do imóvel sem citação do credor garantido, nem disputar o rateio do seu produto, salvo quanto às sobras, depois de devida e preferencialmente pago o credor hipotecário; e v) o bem gravado, visto que, uma vez regularmente constituída, a hipoteca adere ao imóvel, e acompanha-o até que se extinga, independentemente de suas mutações subjetivas.17
2. ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA
2.1. BREVE HISTÓRICO
A introdução do instituto da alienação fiduciária como garantia no sistema jurídico brasileiro ocorreu por meio do artigo 66 da lei 4.728/65, dispositivo este atualmente revogado pela lei 10.931/04 após a promulgação da lei 9.514/97.
Com o advento desta lei (9.514/97), foi criado o Sistema de Financiamento Imobiliário e a alienação fiduciária em garantia de bem imóvel. Esta lei é reconhecidamente importante, pois facilita o acesso da população ao crédito para compra de imóvel, tendo em vista que reduz o risco do credor. Constitui em favor do credor uma propriedade resolúvel sobre o imóvel dado pelo devedor a fim de garantir uma outra obrigação, comumente, um empréstimo.18
O legislador tenciona criar meios mais céleres para o credor fiduciário recuperar seu crédito, em substituição ao Sistema Financeiro de Habitação, no qual preponderava a execução da garantia hipotecária, que perdeu a credibilidade em razão de gerar um processo judicial extremamente demorado e oneroso que inviabilizava a própria concessão do crédito habitacional. Ademais, há sério questionamento em face da constitucionalidade do Processo de execução hipotecária, reservado ao DL 70/66.19
O Código Civil, por sua vez, dispôs acerca da propriedade fiduciária sobre bens móveis em seu artigo 1.225, especificamente em seu inciso I20, pois a propriedade fiduciária é propriedade resolúvel, enquanto a alienação fiduciária é a forma contratual.
2.2. INSTITUTO
A alienação fiduciária surgiu para estimular o financiamento imobiliário, atingindo relevante grau de importância na sociedade, visto que difere das demais garantias reais pois nestas, penhor, anticrese e hipoteca, o titular da garantia tem um direito real na coisa alheia, enquanto na propriedade fiduciária o titular da garantia é titular de direito de propriedade, embora limitado pelo caráter fiduciário.21
Assim, a alienação fiduciária em garantia instituída pela lei 9.514/97, consiste na transferência da propriedade do bem pertencente ao devedor fiduciante ao credor fiduciário, sob a condição resolutiva consistente no adimplemento da dívida. O devedor fiduciante deixa de ser proprietário para ser titular de um direito de reaquisição, sob condição suspensiva, e o de fruição da posse direta e dos frutos do imóvel.22
O artigo 22 da lei 9.514/97 prevê que "A alienação fiduciária regulada por esta lei é o negócio jurídico pelo qual o devedor, ou fiduciante, com o escopo de garantia, contrata a transferência ao credor, ou fiduciário, da propriedade resolúvel de coisa imóvel.".
Portanto, a alienação fiduciária em garantia é o contrato bilateral que, quando é registrado no órgão competente, constitui a propriedade fiduciária em favor do credor fiduciário. A propriedade fiduciária é um direito real e, portanto, é oponível erga omnes, de maneira que o credor fiduciário (como seu titular) pode reivindicar a coisa perante quem quer que seja.23
Em regra, o órgão competente para o registro do contrato de alienação fiduciária é: (a) o Registro de Títulos e Documentos, no caso de bens móveis em geral, consoante art. 1.361, § 1º, do NCC, e (b) o Registro de Imóveis, se se tratar de bem imóvel, conforme art. 23 da lei 9.514, de 1997.
Nessa esteira, a alienação fiduciária transfere a propriedade resolúvel do bem ao credor, ou seja, somente após o cumprimento da obrigação é que o bem passa a pertencer legalmente ao devedor, sendo a propriedade resolvida pelo implemento de eventual condição ou termo. Antes disso, o alienante ou devedor fica como possuidor direto e depositário do bem, respondendo por todos os encargos que lhe incumbem de acordo com a lei civil.24
A alienação fiduciária é definida por Orlando Gomes25 da seguinte maneira: "o negócio jurídico pela qual o devedor, para garantir o pagamento da dívida, transmite ao credor a propriedade de um bem, retendo-lhe a posse direta, sob a condição resolutiva de saldá-la".
Esclarecidas as definições e conceitos acerca do instituto da Alienação Fiduciária, passa-se abaixo a exposição de seus requisitos, formas de extinção, bem como procedimento para leilão do bem dado em garantia.
2.2.1. Requisitos
A já mencionada lei 9.514/97 prevê alguns requisitos para a formalização e realização da alienação fiduciária, quais sejam, subjetivos, objetivos e formais.
Dentre os requisitos subjetivos, são sujeitos o fiduciário e o fiduciante, sendo que este, também chamado de devedor, pode ser tanto pessoa física quanto jurídica, enquanto aquele, também credor, pode ser apenas pessoas jurídicas, de qualquer tipo, não restrito às instituições financeiras ou sociedades de crédito.
Melhim Chalhub elucida que a generalização da legitimidade decorre da intenção do legislador:
Diferentemente, a lei no 9.514 de 1997, que instituiu o Sistema de Financiamento Imobiliário e disciplinou a alienação fiduciária em garantia sobre bens imóveis, atribuiu legitimidade para contratação dessa alienação a qualquer pessoa, quer física, quer jurídica, não restringindo às entidades que operam no mencionado Sistema. Com a generalização, o legislador deixa clara sua intenção de dotar o setor imobiliário, em toda a sua amplitude, de um novo instrumento para dinamização de suas atividades, em atenção à sua função multiplicadora na economia e à sua capacidade de geração de empregos em larga escala, e, em especial, viabilizar o funcionamento do mercado secundário de créditos imobiliários.26
Além dos requisitos subjetivos, devem ser observados os requisitos objetivos, os quais estão previstos no artigo 22 da lei 9.514/97 (alterados em 2007 pela lei 11.481):
§1º A alienação fiduciária poderá ser contratada por pessoa física ou jurídica, não sendo privativa das entidades que operam no SFI, podendo ter como objeto, além da propriedade fiduciária plena:
I - bens enfitêuticos, hipótese em que será exigível o pagamento do laudêmio, se houver a consolidação do domínio útil no fiduciário;
II - o direito de uso especial para fins de moradia;
III - o direito real de uso, desde que suscetível de alienação;
IV - a propriedade superficiária.
Por fim, quanto aos requisitos formais, destacam-se as cláusulas essenciais que devem ser inseridas no contrato a ser firmado (artigo 24, lei 9.514/97), bem como a forma do contrato, que pode ser por escritura pública ou por instrumento particular com efeitos de escritura pública (artigo 38, lei 9.514/97).
2.2.2. Extinção do contrato
Observados os requisitos para a validade do negócio jurídico em questão, importa apontar as formas de sua extinção, quais sejam, o adimplemento do devedor (pagamento da dívida pelo fiduciante ao fiduciário) (artigo 25, lei 9.514/9727), e o inadimplemento do devedor (artigo 26, lei 9.514/9728).
2.2.3. Leilão
Com o inadimplemento do devedor e a consequente consolidação da propriedade em favor do credor fiduciário, este deverá, em 30 (trinta) dias contados da averbação da consolidação, promover leilão público para a venda do bem (artigo 27, lei 9.514/9729).
A consolidação da propriedade no patrimônio do fiduciário ocorre mediante simples ato de averbação praticado pelo oficial de registro de imóveis após o devedor persistir na inadimplência diante de sua notificação para purgar a mora em 15 (quinze) dias.30
Com isso, a legislação garantiu uma via expedita, célere e eficaz para que o credor fiduciário, no caso de inadimplência, execute a sua garantia para saldar a dívida, sem depender do Poder Judiciário.31
Destaca-se que o credor fiduciário, após a consolidação da propriedade do bem, deve promover-lhe a venda extrajudicial em prazo razoável, sob pena de arcar com a desvalorização do veículo, lembrando-se do princípio do res perit dominum, ou seja, há de suportar as consequências de sua desídia na venda do bem32.
3. APLICAÇÃO PRÁTICA E ATUAL DAS GARANTIAS NOS CONTRATOS DE COMPRA E VENDA DE IMÓVEL
Tratando-se de garantia na aquisição de bens imóveis, a hipoteca foi até o ano de 1965 o instituto jurídico mais utilizado, porém, foi caindo em desuso tendo em vista não oferecer o rigor e a eficiência desejada em relação à segurança do crédito.
Nessa época, o Brasil atravessava um momento de grandes recessões no setor imobiliário, não existindo um mercado imobiliário expressivo. Segundo Lima33 "(a hipoteca), desta forma, não atendia os anseios da população fosse de baixa renda, para os casos de política habitacional de aquisição de propriedade imobiliária a crédito, bem como para aquelas classes economicamente mais favoráveis da sociedade".
Com a edição da lei 9.514/97 que além de criar o sistema financeiro imobiliário, disciplinou o regime jurídico da alienação fiduciária de bens imóveis, facilitando o acesso da população ao crédito para compra de imóvel, tendo em vista que reduz o risco do credor.
No tocante a Alienação fiduciária em garantia de bens imóveis o que dizem Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald:
O legislador tenciona criar meios mais céleres para o credor fiduciário recuperar seu crédito em substituição ao Sistema financeiro de Habitação no qual preponderava a execução de garantia hipotecaria que perdeu a credibilidade em razão de gerar um processo judicial extremamente demorado e oneroso que inviabilizava a própria concessão do crédito habitacional. Ademais a sério questionamento em face da constitucionalidade do processo de execução hipotecaria reservado ao DL 70 de 1966.34
Complementando tal pensamento Frederico Henrique Viegas de Lima traz:
O modelo usual de hipoteca existente no sistema brasileiro é incapaz de dotar os negócios imobiliários de rapidez indispensáveis requerida pela economia de escala como solução de recuperação do crédito concedido caso exista a impontualidade do devedor. As execuções hipotecarias são procedimentos judiciais infindáveis arrastando-se nos foros judiciais por anos a fio. Muitas vezes o credor se vê compelido a adjudicação do imóvel, coisa que no momento da concessão de crédito não era a sua intenção.35
Neste sentido a Alienação Fiduciária em Garantia de Bens Imóveis, instituída pela lei 9.514/97, fez com que as instituições financeiras voltassem a ter interesse na linha de negócios, visto que a criação do instituto da alienação fiduciária de coisa imóvel foi realizada em beneficio do credor e não do devedor, destinando-se a facilitação do aporte financeiro por parte do investidor.
Este novo direito real buscou um mecanismo capaz de possibilitar a rápida recuperação do crédito imobiliário, conforme Lima:
Por regra geral, estas são prestadas sem que haja necessidade de transferência, para o credor da coisa dada em garantia. Portanto no modelo tradicional que experimentamos até hoje, não existe a transferência da propriedade para a constituição da garantia real, fazendo com que a posse, sob a modalidade de posse direta, e a propriedade do bem, dado em garantia, permaneçam com o devedor que não será privado de sua utilização no caso de inadimplemento até o termino do procedimento expropriação forçosa.36
Logo, a Alienação Fiduciária nasceu para estimular o financiamento imobiliário atingindo extremo grau de importância na sociedade visto que difere das demais garantias reais, pois nestas, o titular da garantia tem um direito real na coisa alheia, enquanto na propriedade fiduciária o titular da garantia é o próprio titular do direito de propriedade, embora limitado. Assim, em suma, enquanto a hipoteca é um direito real em coisa alheia, a propriedade fiduciária é um direito real em coisa própria.
CONCLUSÃO
Procurou-se demonstrar a eficácia da Alienação Fiduciária em Garantia de bens imóveis estabelecida pela lei 9.514/97, a qual reduziu o risco dos negócios imobiliários para o credor, facilitando o acesso ao crédito imobiliário ao devedor.
Concluiu-se que devido ao descrédito em que se encontrava a hipoteca, bem como com a necessária criação de um mecanismo seguro e célere aos financiamentos imobiliários, especialmente às instituições financeiras, com a criação da lei supra, foi criado, assim, o Sistema Financeiro Imobiliário que demonstrou grande eficácia, vindo a aquecer o mercado imobiliário.
Destaca-se que o contrato de alienação fiduciária em garantia de bens imóveis é instituto típico, possuindo todas as características necessárias para continuar com sua crescente utilização. Atendendo, por um lado, a população que deseja adquirir imóvel próprio, e, por outro lado, tranquiliza os credores por meio de uma garantia que reduz o risco contratual e facilita, posteriormente, uma recuperação do crédito concedido.
É importante termos em mente que o instituto da alienação fiduciária não substituiu em nosso ordenamento o instituto da hipoteca, tratando-se somente de uma nova modalidade de garantia que passou a ser mais utilizada por conta da sua eficácia, segurança e celeridade.
___________________
1 FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de direito civil: direitos reais. 13ª ed. Salvador: Ed. JusPodivm, 2017, p. 881.
2 GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro. v. 5. 12ª ed. São Paulo: Saraiva, 2017, p. 680.
3 FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de direito civil: direitos reais. 13ª ed. Salvador: Ed. JusPodivm, 2017, p. 881.
4 Art. 1.473. Podem ser objeto de hipoteca: I - os imóveis e os acessórios dos imóveis conjuntamente com eles.
5 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. v. 4. 25ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2017, p. 331.
6 TARTUCE, Flavio. Direito civil. v. 4. 8ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2016, p. 582.
7 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. v. 4. 25ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2017, pp. 331/332.
8 FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de direito civil: direitos reais. 13ª ed. Salvador: Ed. JusPodivm, 2017, pp. 881/882.
9 TARTUCE, Flavio. Direito civil. v. 4. 8ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2016, p. 577.
10 FARIAS, op. cit., p. 882.
11 FARIAS, op. cit., p. 892.
12 TARTUCE, Flavio. Direito civil. v. 4. 8ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2016, p. 607.
13 FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de direito civil: direitos reais. 13ª ed. Salvador: Ed. JusPodivm, 2017, pp. 886.
14 TARTUCE, Flavio. Direito civil. v. 4. 8ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2016, p. 591.
15 FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de direito civil: direitos reais. 13ª ed. Salvador: Ed. JusPodivm, 2017, p. 899.
16 FARIAS, op. cit., p. 903.
17 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. v. 4. 25ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2017, pp. 344/348 e 350.
18 SICCARDI, Fabiana Peixoto. Alienação fiduciária em garantia de bem imóvel: uma análise do instituto. 2008. PUC-RJ. Disponível em:
19 FARIAS, Cristiano Chaves; ROSENVALD, Nelson. Direitos Reais. 3ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Júris, 2006. P. 385.
20 Art. 1.225. São direitos reais: I - a propriedade;
21 CHALHUB, Melhim Namem. Negócio Fiduciário, pp. 200/201.
22 CHALHUB, Melhim Namem e DANTZGER, Afranio Carlos Camargo Dantzger. A alienação fiduciária de bens imóveis em segundo grau? Disponível em:
23 COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Civil, volume 4: direito das coisas e direito autoral. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 257.
24 OLIVEIRA, Carlos Eduardo Elias de. Alienação fiduciária em garantia: reflexões sobre a (in)suficiência do cenário normativo e jurisprudencial atual. 2013. Núcleo de Estudos e Pesquisas da Consultoria Legislativa.
25 GOMES, Orlando. Alienação fiduciária, 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1975, pp. 62/63.
26 CHALHUB, Melhim Namem. Negócio Fiduciário, pp. 202/203
27 Art. 25. Com o pagamento da dívida e seus encargos, resolve-se, nos termos deste artigo, a propriedade fiduciária do imóvel.
28 Art. 26. Vencida e não paga, no todo ou em parte, a dívida e constituído em mora o fiduciante, consolidar-se-á, nos termos deste artigo, a propriedade do imóvel em nome do fiduciário.
29 Art. 27. Uma vez consolidada a propriedade em seu nome, o fiduciário, no prazo de trinta dias, contados da data do registro de que trata o § 7º do artigo anterior, promoverá público leilão para a alienação do imóvel.
30 OLIVEIRA, Carlos Eduardo Elias de. Alienação fiduciária em garantia: reflexões sobre a (in)suficiência do cenário normativo e jurisprudencial atual. 2013. Núcleo de Estudos e Pesquisas da Consultoria Legislativa.
31 OLIVEIRA, op. cit.
32 TJDFT, Apelação Cível 20120110026067APC, Acórdão nº 642.661, 4ª Turma Cível, Relator Desembargador Cruz Macedo, julgamento em 12/12/2012.
33 LIMA, Frederico Henrique Viegas de. Da alienação fiduciária em garantia de coisa imóvel. 2ª ed. Curitiba: Juruá Editora, 2006, p. 30.
34 FARIAS, Cristiano Chaves; ROSENVALD, Nelson. Direitos Reais. 3ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Júris, 2006, p. 385.
35 LIMA, op. cit., pp. 32/33.
36 LIMA, Frederico Henrique Viegas de. Da alienação fiduciária em garantia de coisa imóvel. 2ª ed. Curitiba: Juruá Editora, 2006, p. 37.
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TARTUCE, Flavio. Direito civil. v. 4. 8ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2016.
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*Bárbara Gobetti Zanella é graduada em bacharelado em Direito.
*Carolina Stein é graduada em bacharelado em Direito.
*Natália Cristina Passos é graduada em bacharelado em Direito.
*Sandra Regina Delatorre é graduada em bacharelado em Direito.