MP 881/19: individualização de responsabilidade fiduciária em fundos de investimento
A MP 881 demonstra-se como uma medida executiva positiva para o mercado, representando uma corrente que defende o aperfeiçoamento do ambiente regulatório, com a consequente desoneração da cadeia de investimento e proteção ao mercado, mas que não gozará de real eficácia se a CVM não convergir no ideário de individualização de responsabilidade dos prestadores de serviços fiduciários.
quinta-feira, 6 de junho de 2019
Atualizado em 5 de junho de 2019 14:48
A medida provisória 881, editada em 30 de abril de 2019, conseguiu expor, de forma salutar, um movimento de reflexão no que tange à responsabilização fiduciária nas estruturas dos Fundos de Investimento, a qual vem sendo sustentada pelo mercado financeiro com afinco ao longo dos últimos anos, em busca de uma regulação mais equânime e, consequentemente, um ambiente de investimentos menos inóspito.
Com efeito, as inserções dos artigos 1368-D e 1368-E ao Código Civil de 20021 trazem a possibilidade da necessária e justa desoneração de certos prestadores de serviços na cadeia de investimentos, com a proposição de que o Regulamento do Fundo de Investimento, a partir da medida provisória 881 e posterior regulamentação pela Comissão de Valores Mobiliários, poderá estabelecer, de forma expressa, a responsabilidade limitada e não solidária dos prestadores de "serviços fiduciários, perante ao condomínio e entre si, ao cumprimento dos deveres particulares de cada um".
Até então, a regulação dos Fundos de Investimento sustenta jurisprudência e diversas disposições normativas que atribuem responsabilização descomedida e deveras abrangente aos fiduciários, como no caso do parágrafo segundo, do artigo 79 da IN CVM 555 de 20142, o qual estabelece a responsabilização solidária do administrador com o gestor da carteira do Fundo de Investimento por eventuais prejuízos causados aos cotistas, por violação à lei, aos termos do Regulamento ou às disposições da CVM. Tal entendimento traz, sem dúvidas, tarefa de supervisão hercúlea e inexequível ao administrador, que estará na maioria das vezes a mercê das decisões do gestor, realizadas de forma autônoma, com a dinâmica inerente ao setor, e, assim, sem a possibilidade de efetivo controle que esta instrução normativa tenta impor, fato este que nada mais faz do que encarecer a cadeia de investimentos.
Ademais, há que se ressaltar que o estabelecimento de solidariedade no direito, como um todo, deve ser ultima ratio, bem como imprescindível que seja precedido de pormenorizada análise econômica que deve sopesar a necessidade da ingerência estatal com a possibilidade e utilidade efetiva da disposição legal, para que assim se evite um verdadeiro paradoxo na proteção, com normas de caráter excessivamente abrangentes, que acabam por onerar o protegido, sendo, neste caso, o investidor que sofre com a deterioração das condições de investimento, tendo em vista a natural transferência do ônus do risco regulatório às taxas de administração e gestão dos Fundos de Investimento.
Além disso, é claro que a segregação de responsabilidade no mercado financeiro busca, adicionalmente, influenciar a CVM no âmbito do julgamento de processos administrativos sancionadores, os quais, de forma cada vez mais comum, acabam por conferir tratamento injusto de extensão de responsabilidade aos fiduciários, quando a análise correta e efetiva para o mercado, como um todo, deveria, sempre, ser pautada em uma interpretação justa do dever de diligência de cada prestador de serviço - com a aplicação eficiente do Business Judgement Rule - em análise individualizada da atuação destes agentes.
Dessa forma, a MP 881 empreende, a nosso ver, o raciocínio necessário ao cenário político-econômico vigente, sendo uma norma que cumpre com a análise econômica do direito ao estabelecer um mercado mais eficiente, com a proteção do investidor e promoção do desenvolvimento econômico. Bem a propósito, conforme expõe Richard Posner3, a AED deve sempre ser aplicada em toda e qualquer proposição legal, ao esclarecer que a análise econômica do direito tenta melhorar a qualidade das leis, ao apontar em normas vigentes ou em proposições legislativas, as consequências indesejáveis, seja em um espectro de eficiência econômica, distribuição de riquezas e outros valores.
Neste sentido, ainda que o setor regulado pela CVM ainda tenha diversas disposições que mereçam ser alteradas para atender um mercado mais eficiente, é de todo oportuno mencionar que a Autarquia Federal, de fato, vem exercendo este raciocínio na edição de algumas instruções normativas, mostrando-se aberta a um novo caminho mais sustentável. É o caso, por exemplo, da edição da IN 578 de 2016, que dispõe sobre a regulação dos FIPs - Fundos de Investimento em Participações, quando a CVM, após audiência pública, retirou a previsão análoga à acima mencionada, excluindo, para os efeitos desta instrução normativa, a responsabilização solidária do administrador e do gestor da carteira do Fundo de Investimento. Outro exemplo é o do caso da IN 600 de 2018, que regula o CRA - Certificado de Recebíveis do Agronegócio, que retirou a responsabilidade primária de cobrança de créditos não adimplidos por parte da Securitizadora.
Portanto, fica claro que a posição do mercado deve confluir com a da CVM e, neste caso, a medida provisória 881 vem para conferir legitimidade e estímulo a esta necessária união. É bem verdade que a MP continua, de forma acertada em termos regulatórios, referenciando a eficácia das disposições à regulamentação da CVM. Contudo, conforme mencionado, se a CVM não acompanhar o movimento do mercado e o espírito da MP, mantendo certas disposições inalteradas, acabará por tornar a inovação legislativa inócua em relação à disposição quanto aos fiduciários.
Em conclusão, a MP 881 demonstra-se como uma medida executiva positiva para o mercado, representando uma corrente que defende o aperfeiçoamento do ambiente regulatório, com a consequente desoneração da cadeia de investimento e proteção ao mercado, mas que não gozará de real eficácia se a CVM não convergir no ideário de individualização de responsabilidade dos prestadores de serviços fiduciários.
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1 Neste sentido, transcrevem-se os aludidos dispositivos legais: Art. 1.368-D. O regulamento do fundo de investimento poderá, observado o disposto no regulamento a que se refere o parágrafo único do art. 1.368-C: (Incluído pela medida provisória 881, de 2019): I - estabelecer a limitação da responsabilidade de cada condômino ao valor de suas cotas; e (Incluído pela medida provisória 881, de 2019); II - autorizar a limitação da responsabilidade dos prestadores de serviços fiduciários, perante o condomínio e entre si, ao cumprimento dos deveres particulares de cada um, sem solidariedade. (Incluído pela medida provisória nº 881, de 2019); Art. 1.368-E. A adoção da responsabilidade limitada por fundo constituído sem a limitação de responsabilidade somente abrangerá fatos ocorridos após a mudança. (Incluído pela medida provisória nº 881, de 2019) Código Civil.
2 Neste sentido, transcreve-se o aludido dispositivo legal: Art. 79. A contratação de terceiros devidamente habilitados ou autorizados para a prestação dos serviços de administração, conforme mencionado no art. 78, é faculdade do fundo, sendo obrigatória a contratação dos serviços de auditoria independente referida no art. 65 e, quando não estiver o administrador devidamente autorizado ou credenciado para a sua prestação, os serviços previstos nos incisos III, IV, V e VI do § 2º do art. 78. § 2º Os contratos firmados na forma do § 1º, referentes aos serviços prestados nos incisos I, III e V do § 2º do art. 78, devem conter cláusula que estipule a responsabilidade solidária entre o administrador do fundo e os terceiros contratados pelo fundo por eventuais prejuízos causados aos cotistas em virtude de condutas contrárias à lei, ao regulamento ou aos atos normativos expedidos pela CVM. Disponível aqui.
3 POSNER.A.R. Values and Consequences: An Introduction to Economic Analysis of Law. John M. Olin Law & Economics Working Paper No.23 (2d series). Disponível em:aqui
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*Leonardo Cotta Pereira é sócio do setor de Corporate & Finance do escritório SiqueiraCastro, mestre em Contratos pela Université Montpellier I e especializado em mercado de capitais, reestruturações societárias e operações financeiras estruturadas.