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Disponibilidade testamentária plena: uma possibilidade?

É certo que é possível de ser visualizada situação de disponibilidade plena da herança por meio do testamento, desde que não haja herdeiros necessários, e que, naturalmente, o testamento preserve todos os aspectos formais para sua existência e aplicabilidade/cumprimento, na conformidade da lei.

sexta-feira, 31 de maio de 2019

Atualizado em 30 de maio de 2019 13:43

No campo do direito sucessório, diversas são as problemáticas que cercam o instituto da herança ante a necessidade de avaliação de relevantes fatores em momento preliminar à efetiva repartição do patrimônio deixado pelo(a) falecido(a), destacando-se, por exemplo, (i) a identificação (in concretu) daquelas pessoas que poderão se habilitar ao recebimento da herança, ainda que possuam o direito de renunciá-la; (ii) se haverá concorrência dos herdeiros perante o(a) cônjuge ou o(a) companheiro(a); (iii) além da prévia verificação sobre a existência de testamento(s) deixado(s) pelo de cujus, assim como os seus reflexos sobre o patrimônio a ser transmitido por sucessão post mortem.

Exatamente pela temática proposta neste estudo, caberão, unicamente, maiores avalições acerca dos reflexos do manuseio do testamento, o qual pode ser compreendido, em sucinto conceito, como o instituto jurídico pelo qual certa pessoa determina, in vida, o destino (parcial ou integral) de seu patrimônio, ou, ainda, de outras disposições não pecuniárias/patrimoniais, após a ocorrência do evento morte.

Complementando a noção relativa à definição de testamento, seguindo as lições de Silvio Venosa1, pode-se afirmar que testamento é negócio jurídico, potencialmente revogável, além de ato unilateral, personalíssimo, solene e gratuito, sendo identificado, inclusive, como ato de última vontade ou causa mortis, em função de seus efeitos se darem somente em momento posterior ao evento "morte".

No tocante à possibilidade de identificação de conteúdo não patrimonial em testamentos, o mesmo doutrinador assevera que: [...] embora a finalidade precípua do testamento seja dispor dos bens após a morte, pode o ato conter disposições sem cunho patrimonial, como o reconhecimento de filiação, a nomeação de um tutor ou curador, a atribuição de um título honorífico.2

Superada a questão conceitual, cumpre esclarecer que o enfoque do presente se dará, especialmente, na extensão da disponibilidade patrimonial em testamentos face aos demais herdeiros, sem, portanto, o ingresso em questões formais atinentes a este instituto jurídico,  ainda que se deva frisar o respeito à legislação aplicável, especialmente, o artigo 1.788, do Código Civil.

Além disso, em que pese determinação do artigo 1.787, do Código Civil, de que a legislação aplicável à sucessão é aquela vigente na abertura desta, apenas realizaremos reflexos para situações posteriores à vigência do atual Código Civil de 2002.

Preliminarmente ao início das análises, insta mencionar a disposição do Código Civil referente à ordem de vocação hereditária, a saber, o artigo 1.829, do Código Civil, in verbis:  

Art. 1.829. A sucessão legítima defere-se na ordem seguinte:

I - aos descendentes, em concorrência com o cônjuge sobrevivente, salvo se casado este com o falecido no regime da comunhão universal, ou no da separação obrigatória de bens (art. 1.640, parágrafo único); ou se, no regime da comunhão parcial, o autor da herança não houver deixado bens particulares;

II - aos ascendentes, em concorrência com o cônjuge;

III - ao cônjuge sobrevivente;

IV - aos colaterais.

Quanto ao conteúdo supracitado, deve-se observar que, no que concerne aos colaterais, somente poderão ser chamados como herdeiros aqueles até 4º (quarto) grau, ex vi o artigo 1.839, do Código Civil.

Ademais, é salutar demonstrar que, em notável decisão com o reconhecimento de repercussão geral, o Supremo Tribunal Federal, no âmbito dos Recurso Extraordinário 878.694/MG, decidiu pela inconstitucionalidade do artigo 1.790, do Código Civil, em virtude do entendimento pela equiparação de regimes sucessórios entre o(a) companheiro(a) e o(à) cônjuge, já que eventual hierarquização entre entidades familiares (leia-se, in casu, casamento e união estável) seria incompatível com a Constituição Federal.

Em respeito ao princípio da segurança jurídica, a referida decisão apenas teve aplicabilidade aos novos inventários judiciais e/ou aqueles em que ainda sem o trânsito em julgado da sentença de partilha, bem como às partilhas extrajudiciais em que ainda não houvesse tido escritura pública.

Entretanto, o mencionado julgado deixou de pormenorizar a equiparação proposta, remanescendo-se incerteza no que diz respeito à caracterização (ou não) do(a) companheiro(a) como herdeiro necessário, uma vez que o objeto da inconstitucionalidade foi o artigo 1.790, do Código Civil, ao passo que o artigo 1.845, do mesmo Diploma Legal, define como "herdeiros necessários" apenas os descendentes, os ascendentes e o cônjuge.

Ante a potencial insegurança jurídica instaurada, incumbe-nos salientar que as implicações de eventuais testamentos produzidos pelo de cujus podem afetar a sucessão do(a) companheiro(a), a depender da conclusão pela inclusão ou pela exclusão deste(a) na categoria dos herdeiros necessários.

Afinal, os herdeiros necessários não podem ser completamente excluídos da sucessão por meio de testamento(s), em função da proteção legal garantida à "legítima", compreendida como a parcela do patrimônio, correspondente à herança, reservada legalmente aos herdeiros necessários. Especificamente no direito brasileiro, os artigos 1.789 e 1.846, ambos do Código Civil, tratam do tema e delimitam a abrangência da citada proteção legal, nos seguintes termos:

Art. 1.789. Havendo herdeiros necessários, o testador só poderá dispor da metade da herança.

Art. 1.846. Pertence aos herdeiros necessários, de pleno direito, a metade dos bens da herança, constituindo a legítima.

Observa-se, portanto, que aos herdeiros necessários, exceto nas hipóteses de exclusão da sucessão (artigo 1.814 e seguintes do Código Civil),  é resguardado o direito ao recebimento de, ao menos, metade da herança do(a) falecido(a), sendo que este último somente poderá dispor gratuitamente da outra metade de seu patrimônio, seja para doação (inter vivos), seja por meio de testamento (efeitos post mortem).

Asseverando-se, preliminarmente, que inexiste obrigatoriedade legal de se deixar patrimônio aos herdeiros, já que o titular deste pode dispor onerosamente de seus bens e de seu patrimônio como melhor entender, inclusive, até mesmo, utilizando-o ou gastando-o em sua integralidade, vale frisar que a vedação de disposição plena da herança por testamento, com efeitos somente após o evento morte, limita-se tão somente à proteção garantida aos herdeiros necessários.

O próprio artigo 1.789, do Código Civil (supracitado) traduz o regramento relativo à matéria quando impõe restrição à liberdade do testador unicamente na existência de herdeiros necessários. Outrossim, visualiza-se noção semelhante no conteúdo do artigo 1.857, caput e § 1o, do Código Civil:

Art. 1.857. Toda pessoa capaz pode dispor, por testamento, da totalidade dos seus bens, ou de parte deles, para depois de sua morte.

§ 1o A legítima dos herdeiros necessários não poderá ser incluída no testamento.

Seguindo mesma linha de pensamento, o referido Diploma Legal, em seu artigo 1.850, demonstra, expressamente, a possibilidade de exclusão dos herdeiros colaterais, na hipótese do testador não os contemplar na correspondente sucessão.

Desta feita, pode-se concluir que, ainda que reste incerteza no que concerne à caracterização do(a) companheiro(a) como herdeiro necessário, nos termos trazidos em momento anterior neste estudo, é certo que é possível de ser visualizada situação de disponibilidade plena da herança por meio do testamento, desde que não haja herdeiros necessários, e que, naturalmente, o testamento preserve todos os aspectos formais para sua existência e aplicabilidade/cumprimento, na conformidade da lei.

De toda a sorte, cumpre salientar que a inexistência de herdeiros necessários não resulta em automático afastamento do direito ao recebimento da herança aos colaterais. Em verdade, frise-se tratar de uma possibilidade desde que seja do interesse do(a) falecido(a) e, assim, haja demonstração por meio de documento adequado, a saber, o testamento, cumprindo-se os requisitos legais para a produção de seus efeitos jurídicos.

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1 VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil volume VII - Direito das Sucessões. 12ª Edição, São Paulo: Editora Atlas, 2012, p. 186 a 192.

2 Ibidem, p. 185.

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*Guilherme Molina é especialista em Direito Tributário e sócio do escritório Molina & Reis Sociedade de Advogados.

*Zoé Aparecida dos Reis Molina é especialista em Direito Civil e Processual Civil, com docência para ensino superior e sócia do escritório Molina & Reis Sociedade de Advogados.

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