Direitos Humanos: o que fizemos dessa bandeira?
É calamitosa a ideia de que quando se trata de proteger direitos humanos não há direitos humanos.
quarta-feira, 29 de maio de 2019
Atualizado às 08:56
A fronteira que separa os direitos humanos daquilo que não poderia receber essa chancela é tênue e difusa. Os mais restritivos veem como direito humano somente o óbvio - não sofrer tortura, não ser preso sem julgamento, não ter seus bens confiscados - porém é nebuloso o caminho que separa aquilo que é do que não é básico. Observa-se na atualidade, muitas vezes, a proteção de direitos humanos que nada têm de elementares. Não têm a ver com o direito à vida, à liberdade, à integridade física, mas se referem à propriedade, ao direito autoral, à concorrência desleal em razão de regras de comércio internacional.
A conclusão, após alguma reflexão sobre o tema, é de que todos os direitos, individuais e coletivos, são direitos humanos, contudo sujeitos a uma hierarquia no que se refere ao teor de humanidade que cada um deles possui. Uns são mais essenciais do que outros. Não ser torturado é algo mais fundamental do que não ser tributado de forma muito árdua.
Há contradições que merecem destaque. Por exemplo, o discurso dos direitos humanos foi usado para tentar justificar o que se fez de mais cruel e de mais hostil contra os verdadeiros direitos humanos, quando alguns governos ocidentais suspeitaram que o Iraque possuísse armas de destruição em massa e, como legítima defesa preventiva, com isso justificaram uma guerra, uma carnificina, um massacre no território iraquiano. Ali o discurso foi utilizado para violar-se, em muito maior escala, uma pauta mínima de direitos humanos, a pretexto de protegê-los.
Em nome do exercício da jurisdição penal montou-se no país, nos últimos anos, um sistema de espionagem invejável. Entretanto, na medida em que esse sistema de espionagem atinja de algum modo pessoas grandes ou sirva para investigação penal no caso de réus particularmente visados por conta de sua potestade econômica, e consequentemente se suponha, então, que as forças policiais do Estado estão agindo contra isso, há uma tendência muito grande a tolerar que o Estado adote o princípio do vale tudo. O resultado disso é desastroso e é lamentável ver que a grande maioria da população aprova e aplaude os sistemas policialescos ilegítimos que alguns órgãos do Estado adotaram. O cidadão comum, sem nenhuma espécie de formação jurídica ou humanística, não acredita que as forças que ele desencadeia por aplaudir esse tipo de conduta do Estado podem voltar-se, e voltar-se-ão seguramente, contra ele a qualquer momento. É calamitosa a ideia de que quando se trata de proteger direitos humanos não há direitos humanos. Ou seja, para resguardar os direitos humanos que são a prioridade do momento aniquila-se todos os direitos humanos que poderiam ter as pessoas acusadas de terem ferido direitos humanos alheios. É uma equação perversa e antijurídica. Os direitos humanos são universais e não podemos defender alguns e violar sistematicamente outros.
Daqui a algum tempo nos lembraremos do que aconteceu e não acreditaremos que vimos pela televisão, a cada noite, alguns governos ocidentais destruírem o oriente médio ao mesmo tempo em que legitimavam Guantánamo ___ que é uma zona de não-direito assumida por toda uma sociedade ___ e nos omitimos de dizer às crianças, que também se habituaram a banalizar aquelas cenas, que aquilo não pode, que aquilo é ilícito, que aquilo é a negação do direito. Teremos dificuldade em acreditar que sob os nossos olhos aconteceram barbáries contra os direitos humanos e nada fizemos a respeito. Uma oportuna frase do filme Blood Diamond encerra esta reflexão: "Sometimes I wonder... will God ever forgive us for what we've done to each other?".
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*Verônica Rezek é advogada militante, sócia do escritório Francisco Rezek Sociedade de Advogados e especialista em direito internacional pela Academia de Haia.