ANTT e sua política de tabelamento do frete
A participação ativa dos agentes interessados tende a resultar na produção de normas mais aderentes, na medida em que não confeccionadas com distanciamento dos impactados pela regulação.
sexta-feira, 24 de maio de 2019
Atualizado às 08:43
Encontra-se em fase de consulta pública, na ANTT, proposta de normatização do piso mínimo do frete rodoviário. Para fins de contextualização, vale lembrar que a política de preços mínimos do frete foi introduzida pelo governo federal por meio da MP 832/18, em resposta às exigências dos transportadores autônomos com o objetivo de encerrar a greve que afetou gravemente a circulação de mercadorias no país, causando desabastecimentos e incalculáveis prejuízos ao setor produtivo brasileiro.
Com a conversão da MP 832/18 na lei 13.703/18, estipulou-se que o processo de fixação dos pisos mínimos seria técnico, amplamente divulgado, e contaria com a participação dos representantes dos diversos setores envolvidos.
Iniciando tal processo regulatório, a ANTT contratou, em 27.12.18, a Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz, Departamento de Economia, Administração e Sociologia ("ESALQ-LOG") para revisar os valores do piso mínimo de frete. A fim de obter a maior quantidade possível de variáveis para o modelo matemático de precificação do preço mínimo, a entidade realizou reuniões com os três principais setores impactados (os embarcadores, os transportadores e os autônomos). Durante essa etapa preliminar à fase atual de consulta pública, estima-se que foram ouvidos aproximadamente 400 representantes desses setores.
Em que pese o notório e louvável esforço dialógico da ANTT, não há como resistir ao registro de que qualquer política de tabelamento de preços (que não seja meramente referencial) mostra-se, por si só, indevida e maléfica ao livre mercado e à lei da oferta e procura, podendo acarretar distorções e prejuízos aos próprios motoristas autônomos. Com efeito, a depender de como o piso do frete venha a ser definido ao longo do tempo, servirá apenas para incentivar que as empresas passem a investir em frotas próprias. Não por outra razão, diversas entidades, como a ABOL - Associação Brasileira dos Operados Logísticos, vêm se posicionando de forma incisiva contra essa política de tabelamento.
A constitucionalidade da Política Nacional de Pisos Mínimos do Transporte Rodoviário de Cargas ("PNPM - TRC"), vale lembrar, é objeto de questionamento no STF por meio da ADIns 5.956, 5.959 e 5.964. Nas referidas ações, o Min. Luiz Fux determinou a suspensão de todos os processos que envolvam a inconstitucionalidade ou suspensão de eficácia da MP 832/18 ou da resolução 5820/18, da ANTT.
Sendo assim, enquanto o STF não apreciar definitivamente a matéria, a observância dessa política de tabelamento se impõe. Diante desse quadro, deve-se reconhecer que a atualização da PNPM - TRC, realizada pela ESALQ-LOG, corrige alguns equívocos e distorções constantes da regulamentação atualmente vigente (resolução 5.820/18). Como bom exemplo, cite-se a regra do frete-retorno que, felizmente, foi excluída da minuta de resolução submetida à audiência pública, bem como a questão das frotas fidelizadas ou dedicadas, que foram excluídos do cálculo do piso mínimo.
Além disso, os parâmetros propostos pela ESALQ-LOG para a composição do piso mínimo foram concebidos por um modelo baseado na estrutura de custo dos serviços de transporte, considerando dois aspectos básicos: o custo fixo e o custo variável. Os custos fixos são aqueles que não variam com a distância percorrida e continuam existindo mesmo com o veículo parado. Neste ponto, a proposta atual aprimora a regra vigente ao incorporar os (i) custos relacionados ao risco de acidente e roubo da composição veicular e o (ii) custo adicional de cargas perigosas - tornando a nova "tabela" um pouco mais aderente à realidade do setor de transporte de cargas.
Também passam a ser considerados os custos variáveis, compreendidos como aqueles que dependem da distância percorrida na operação de transporte, ou seja, são diretamente proporcionais à distância e nulos quando a composição veicular não estiver operando (custos de combustível, arla, pneus, manutenção, lubrificantes, lavagens e graxas).
No mais, as cargas e fretes considerados no novo piso mínimo foram desdobrados em onze categorias, conforme a respectiva especificidade (e.g. carga geral, carga geral perigosa, carga líquida a granel, carga frigorificada, carga conteinerizada etc.), adequando-se, ao menos em alguma medida, à realidade que envolve as particularidades do transporte de cada uma dessas cargas.
No entanto, o piso mínimo proposto também possui inconsistências que, espera-se, sejam corrigidas a partir da análise das contribuições realizadas nesta fase de consulta pública. A título de exemplo, é notável a ausência de uma definição ou regra acerca do pagamento de agregados quando o implemento (carreta) for do transportador. Outro aspecto que chama atenção refere-se à própria sistemática de cálculo dos pisos mínimos de frete. O valor do piso, conforme já se expôs, leva em conta os coeficientes de custo fixo e de custo variável das composições veiculares de referência, definidas para cada tipo de carga. Considera, ainda, o número de eixos. No entanto, há veículos com a mesma quantidade de eixos, mas com capacidade de carga absolutamente distintas, realidade esta não observada na fórmula de cálculo do piso mínimo.
Outra questão é que, ao se considerar os eixos suspensos no cálculo do frete mínimo, a minuta de resolução contraria a lógica adotada na lei 13.711/18, que estabeleceu a exclusão dos eixos suspensos para fins de pagamento de cobrança da tarifa de pedágio.
Vale também destacar que que a minuta de resolução deixou de enfrentar o problema das contratações complexas de logística, nas quais a parcela do TRC não é usualmente segregada. Afinal, para o contratante de soluções logísticas, o TRC é apenas uma das etapas de uma solução muito mais ampla contratada, a qual pode envolver transporte multimodal (nem sempre com definição prévia dos modais envolvidos), armazenamento e gestão de estoques, dentre outros possíveis.
Por fim e, sem a pretensão de exaurir as inconsistências presentes na resolução, criou-se a discutível exceção à aplicação da PNPM - TRC para as contratações com dispensa ou inexigibilidade de licitação previstas na lei 8.666/93. A exceção, além de não estar prevista na lei 13.703/18 e de contrariar a lógica da PNPM - TRC de fixar a "adequada retribuição ao serviço prestado", cria preocupante incentivo para atuação de empresas públicas em setores hoje atendidos pela iniciativa privada em regime de competição.
Com efeito, a discussão sobre este ponto ganha maior relevo diante da perspectiva da ECT - Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos atuar com dispensa de licitação em atividades não abrangidas pelo monopólio postal (como é o caso dos serviços logísticos), a depender do resultado da discussão em andamento no STF no âmbito do mandado de segurança 34.939/DF. O afastamento da aplicação da PNPM - TRC nas contratações da ECT com o poder público certamente mereceria uma reflexão ponderada, com a adequada análise do seu impacto regulatório.
Mostra-se fundamental, portanto, que as entidades representativas, juntamente com as empresas do setor de transportes, reavaliem a metodologia de cálculo proposta pela ANTT. A participação ativa dos agentes interessados tende a resultar na produção de normas mais aderentes, na medida em que não confeccionadas com distanciamento dos impactados pela regulação. De igual modo, não bastam as críticas e contribuições dos interessados, mas o efetivo exame e consideração por parte do agente regulador. É o que determina o art. 29 da LINDB e o que se exige da ANTT para uma melhor qualidade da sua política regulatória.
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*Diogo Albaneze Gomes Ribeiro é advogado no escritório Giamundo Neto Advogados.
*Giuseppe Giamundo Neto é advogado no escritório Giamundo Neto Advogados.
*Luiz Felipe Pinto Lima Graziano é advogado no escritório Giamundo Neto Advogados.