Produção antecipada de provas e inversão antecipada do ônus da prova - Ofensa aos princípios contratuais e processuais da boa-fé
A 2ª Seção do STJ, Corte responsável por uniformizar a interpretação da lei federal em todo o Brasil, ao aprovar o enunciado de 609 na sessão do dia 11/4/18, fixou entendimento no sentido de que "A recusa de cobertura securitária sob alegação de doença pré-existente é ilícita se não houve a exigência de exames prévios à contratação ou a demonstração de má-fé do segurado."
quinta-feira, 23 de maio de 2019
Atualizado em 22 de maio de 2019 16:03
A prova está para as partes, tanto quanto a água está para o corpo, pois sem ela, ele perece, porquanto a função precípua da prova é a apuração da verdade real dos fatos postos em juízo, e conforme o antigo brocardo latino "Allegatio et non probatio quasi non allegatio", ou seja, alegar e não provar é quase não alegar.
Isto porque, na prática processual, a instrução probatória tem por finalidade formar a convicção do juiz que é o destinatário da prova, meio pelo qual ele forma seu convencimento.
O art. 369 do Código de Processo Civil, estabelece que "As partes têm o direito de empregar todos os meios legais, bem como os moralmente legítimos, ainda que não especificados neste Código, para provar a verdade dos fatos em que se funda o pedido ou a defesa e influir eficazmente na convicção do juiz.
Além disso, nos termos do Art. 371 do mesmo diploma legal, "o juiz apreciará a prova constante dos autos, independentemente do sujeito que a tiver promovido, e indicará na decisão as razões da formação de seu convencimento".
Sendo que pela disposição legal, conforme o art. 373 do CPC, "o ônus da prova incumbe ao autor, quanto ao fato constitutivo de seu direito e ao réu quanto à existência de fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito do autor."
Pois bem. No tocante à produção antecipada de provas, o art. 381, do Código de Processo Civil, determina que esta será admitida nos casos em que, 'houver fundado receio de que venha a tornar-se impossível ou muito difícil a verificação de certos fatos na pendência da ação', também quando a 'prova a ser produzida for suscetível de viabilizar a autocomposição ou outro meio adequado de solução de conflito', ou quando 'o prévio conhecimento dos fatos possa justificar ou evitar o ajuizamento de ação'.
Portanto, segundo a referida disposição legal, a admissão pelo Poder Judiciário da produção antecipada de provas não pode ser genérica, ampla, lato e muito menos generalizada, difusa, devendo preencher no caso concreto os pressupostos autorizadores de sua admissão.
Todavia, a 2ª seção do STJ, Corte responsável por uniformizar a interpretação da lei federal em todo o Brasil, ao aprovar o enunciado de 609 na sessão do dia 11/4/18, fixou entendimento no sentido de que "A recusa de cobertura securitária sob alegação de doença pré-existente é ilícita se não houve a exigência de exames prévios à contratação ou a demonstração de má-fé do segurado."
Destarte, por meio do referido enunciado, observa-se que o STJ estabeleceu um novo requisito legal acerca da produção antecipada de provas acrescendo no rol previsto do Código de Processo Civil mais uma hipótese permissiva para sua admissão, visto que determinou taxativamente que as seguradoras que comercializam os produtos de seguros de pessoas, exijam do consumidor antes mesmo da celebração do contrato de seguro a realização de exames prévios.
Ocorre que Art. 113 do Código Civil abarcado pelo Título I, que trata acerca dos negócios jurídicos, estabelece que, "os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração".
Seguindo a mesma inteligência, verifica-se que o Art. 422 do mesmo texto legal, que "os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé".
E não menos importante, o Art. 765 do referido diploma legal prescreve expressamente que "o segurado e o segurador são obrigados a guardar na conclusão e na execução do contrato, a mais estrita boa-fé e veracidade, tanto a respeito do objeto como das circunstâncias e declarações a ele concernentes."
Esse princípio que norteia os negócios jurídicos e, por conseguinte as relações contratuais securitárias impõe uma conduta correta, proba, leal, de confiança entre as partes que se relacionam.
Portanto, trata-se a boa-fé objetiva de um princípio fundamental a garantir a validade e a legalidade do contrato de seguro, considerando como sobredito, que a formação deste espécime de contrato funda-se na confiança das partes.
Nesse sentido, é essencial que segurado e segurador procedam com lealdade, sinceridade, clareza, transparência, sem vantagens excessivas para uma das partes, abstendo-se de tudo quanto possa alterar a verdade dos fatos ao ponto de prejudicar a outra parte, possibilitando uma relação jurídica saudável harmoniosa e equilibrada.
Desse modo, observa-se que as diretrizes fixadas no enunciado de 609 do Superior Tribunal de Justiça vai de encontro aos princípios contratuais e processuais da boa-fé garantidos pelo ordenamento jurídico, ao inverter o ônus da prova conforme Art. 6º do Código de Defesa do Consumidor antes mesmo de haver uma lide formada, em clara ofensa aos direitos e garantias fundamentais da jurisdição, do devido processo legal, do direito de defesa e do contraditório, previstos no Art. 5º da Constituição Federal pois impôs à todo o mercado segurador brasileiro a produção antecipada de provas a despeito da ausência dos requisitos legais contidos no Art. 381 do Código de Processo Civil, ou seja, da inexistência dos pressupostos ensejadores para sua admissão.
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*Lucimer Coelho de Freitas é advogada e sócia da Jacó Coelho Advogados.