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Das coisas achadas

A honestidade do inventor, assim chamado pelo Código Penal aquele que encontra coisa alheia perdida, está contida na essência da ética, como sendo um dos braços de sua atuação.

domingo, 26 de maio de 2019

Atualizado em 22 de maio de 2019 13:34

É muito comum alguém relatar ter encontrado, na rua ou em qualquer lugar público, uma carteira ou bolsa contendo documentos ou até mesmo dinheiro e não saber o que fazer para localizar o proprietário com o intuito de realizar a devolução. De um lado tem-se o desespero e a aflição da pessoa que perdeu e do outro a ansiedade daquele que encontrou. Muitas vezes, quando se perde algo em local público, com a presença de muitas pessoas, faz-se a comunicação pelo serviço de som disponível. Nem sempre, no entanto, é a conduta adequada.

O insuperável Machado de Assis, no conto "A carteira", relata as angústias psicológicas do personagem Honório após achar uma carteira na rua, contendo uma considerável importância em dinheiro, suficiente para quitar uma dívida prestes a vencer. Suficiente também para dar início ao seu dilema de entregar ou não a carteira, cujo dono desconhecia até então. Acabou descobrindo que pertencia ao seu dileto amigo Gustavo que, por coincidência, encontrava-se em sua casa, conversando com sua esposa, D. Amélia. O amigo recebeu a carteira e com olhar desconfiado, como que duvidando de sua posse, não foi direto na repartição apropriada para o dinheiro e sim na vizinha, naquela que trazia os cartões, anotações e bilhetes.

Exemplos retirados da ocorrência popular, relatando uma conduta exemplar, cria uma imagem consistente e digna de imitação, pela simples capacidade de distinguir o certo do errado. É até comum a imprensa estampar a notícia de um taxista que procurou com muita insistência o passageiro que esqueceu no carro uma pasta contendo em seu interior uma considerável importância em dinheiro. A conduta é elogiada e reconhecida por todos, embora haja ainda aqueles que ousam contrariar a regra e bradar que se trata de coisa perdida, não furtada e nem roubada.

Assim, se a coisa for realmente perdida, de modo que se encontra distante de seu dono, fora de sua esfera de proteção, o sujeito que se apropria do bem incide no delito do art. 169, parágrafo único, II, do CP, que é a apropriação de coisa achada. Pelo artigo citado, constitui crime "quem acha coisa alheia perdida e dela se apropria, total ou parcialmente, deixando de restituí-la ao dono ou legítimo possuidor ou de entregá-la à autoridade competente, dentro no prazo de quinze dias." Se a pessoa que encontrou o objeto perdido não logrou êxito em localizar o proprietário, o correto é fazer a comunicação à autoridade policial para que registre a ocorrência e providencie as diligências necessárias para localizá-lo. Mandamento idêntico é encontrado no artigo 1.233 do Código Civil, in verbis: "Quem quer que ache coisa alheia perdida há de restituí-la ao dono ou legítimo proprietário", sendo que a mesma determinação vinha contida no anterior código já revogado, de 1.916. É de se observar que a referência legal é somente com relação à coisa perdida ou res desperdita e não tem qualquer incidência quando se tratar de coisa abandonada, isto é, aquela em que o dono não tem mais interesse em sua propriedade e a despreza, deixando-a disponível para quem tiver interesse. É a chamada res derelicta

Daí, que a sociedade trilha ou o caminho da excelência ou da própria estupidez humana, dependendo de seus valores e de suas virtudes morais. Não acredito que a lei, somente a lei, seja o caminho mais credenciado para levar o homem a ter uma vida inteligente, regrada pela honestidade e sabedoria. A lei é cogente e os princípios éticos coletivos apresentam-se como a melhor opção. Realizam-se espontaneamente, sem qualquer reserva ou restrição, com aplicação imediata e eficaz.

A honestidade do inventor, assim chamado pelo Código Penal aquele que encontra coisa alheia perdida, está contida na essência da ética, como sendo um dos braços de sua atuação. Assim, a ética, na sua análise estrutural, nada mais é do que o costume, a tradição, ambos voltados para a vontade de praticar a conduta correta consistente no neminem laedere. Seria, num linguajar mais liberal, a regularização correta da conduta humana, passada de geração em geração, sempre procurando atingir os pontos harmônicos da convivência humana, facilitando a realização espontânea dos bons valores que permanecem como ideal de compartilhamento. A ética não é acabada, é um pensamento em constante evolução que, com o passar do tempo, vai se aperfeiçoando. Não é, por outro lado, o resultado de condutas codificadas, não se revoga, nem é derrogada. É resultado do próprio pensamento evolutivo do homem. É a busca da perfeição e de tudo que a reveste como bem supremo abrangente, de acordo com o pensamento aristotélico.

Agora voltando ao conto do mestre que prima pela ironia. Quer saber por que Gustavo desconfiou quando Honório lhe entregou a carteira com o dinheiro? Justamente porque continha em seu interior bilhetes de amor que havia escrito para Da. Amélia, com quem tinha um caso...

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*Eudes Quintino de Oliveira Júnior é promotor de Justiça aposentado/SP, mestre em direito público, pós-doutorado em ciências da saúde, reitor da Unorp, advogado.

 

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