A propriedade intelectual nos 30 anos de STJ
Há ainda muito a ser percorrido e melhorado quando falamos em propriedade intelectual no Brasil, porém reconheço que a atuação do STJ, nas pessoas da ministra Nancy Andrighi e ministro Sidney Beneti, ao lado de importantes causídicos como Denis Borges Barbosa e Pedro Marcos Nunes Barbosa, me inspira a acreditar que os avanços intelectuais da área estão em boas mãos.
segunda-feira, 20 de maio de 2019
Atualizado em 17 de maio de 2019 10:15
O Superior Tribunal de Justiça irá comemorar, em 7 de abril de 2019, 30 anos de sua criação e, neste período, seu protagonismo no campo de propriedade intelectual é notável. Tive o prazer de participar desta trajetória ao lado de juristas ilustres que, de maneira brilhante, definiram os marcos legais da propriedade intelectual no Brasil. Atuar com figuras como a ministra Nancy Andrighi e o jurista Denis Borges Barbosa, personagens essenciais para a harmonização da legislação patentária, é um privilégio e uma grande felicidade.
Iniciei minha atuação no campo de patentes em casos agroquímicos e, com o passar do tempo, me envolvi no setor farmacêutico, especificamente na área de genéricos, o que me trouxe a oportunidade de vivenciar, de perto, a construção do arcabouço jurídico da área de propriedade intelectual.
O Brasil conta com legislação específica sobre propriedade intelectual desde o século XIX. À época, inventores poderiam, junto à Real Junta do Comércio, requerer a garantia de direitos de exclusividade de invenções, um primeiro esboço no caminho a ser percorrido na temática. Ainda assim, foi somente após a adesão do país à Convenção de Paris, em 1883, que o tema ganhou mais relevância.
O STJ tem a função de zelar pela interpretação e uniformização das leis federais por meio de REsp.
Em 1971, foi promulgado o código de propriedade industrial, o qual regulava os temas gerais pertinentes à propriedade intelectual, invenções, modelos de utilidade, desenhos e patentes, publicados no Brasil e no exterior. Esta legislação vigorou até 1996, quando, em face da adesão do Brasil ao Agreement on Trade-Related Aspects of Intellectual Property Rights (Acordo Trips), tornou-se necessário o ajuste de prazos e demais procedimentos para concessão de direitos para que o Brasil estivesse parametrizado com a Organização Mundial de Propriedade Intelectual (Ompi).
Após a adesão do Brasil ao acordo Trips por meio do decreto 1.355/94, foram levantados muitos pontos polêmicos que levaram ao judiciário diversas causas requerendo concessões, extensões de prazos e interpretação da legislação que, não fosse a atuação do STJ em julgamentos de recursos especiais, permaneceriam desconexas.
1 Criação do STJ e o recurso especial
Criado a partir da promulgação da Constituição Federal de 1988 (CF/88), o STJ foi oficialmente instalado em 7 de abril de 1989. Ante a chamada "crise do Supremo" na década de 1960, foram diversas as tentativas de diminuir o volume de processos STF, tanto pela criação de novos órgãos, como o extinto Tribunal Federal de Recursos (TFR) e o STJ, como pela adequação dos procedimentos recursais.
Inicialmente, o STJ foi instalado na antiga sede do extinto TFR, mudando para construção própria, idealizada por Oscar Niemeyer, em 1995. Sua composição inicial se deu por meio do deslocamento dos ministros que compunham o TFR, o qual, após a promulgação da CF/88, deu lugar aos Tribunais Regionais Federais. O próprio TFR foi o responsável por encaminhar ao Congresso Nacional anteprojeto de reforma do judiciário no qual, dentre outras determinações, previa a criação de um tribunal superior que tivesse atribuições para julgar, em sede extraordinária, os recursos que envolvessem questões de legislação federal, e, após extensas comissões e acompanha- mento da nova Constituinte, acatou-se a estrutura judiciária conhecida atualmente.
Com o advento da Constituição de 1988, o STJ tem, dentre outras competências previstas nos arts. 104 e 105 da Carta Magna, a função primordial de zelar pela interpretação e uniformização das leis federais por meio de recurso especial (REsp).
O primeiro recurso especial (REsp 1-SP)1 foi autuado em 22 de maio de 1989 e julgado em 12 de setembro de 1989, sob a relatoria do ministro, e então presidente do Superior Tribunal, Gueiros Leite, e debatia a autonomia de deliberações das assembleias societárias nos termos do art. 171 da lei 6.404/76. Desde então, o Tribunal da Cidadania já julgou mais de 4 milhões de processos, sobre as mais diversas temáticas.
2 Propriedade intelectual no Superior Tribunal de Justiça
Dentre a vasta gama de temáticas uniformizadas pelo STJ por meio de recurso especial, enfatizo as questões relativas à patente, que merecem destaque no presente artigo, tema marcante para o direito no campo de propriedade intelectual.
Das mudanças trazidas pela adesão ao Trips e pela lei 9.279/96, o STJ teve papel fundamental em duas questões relevantes das quais pude participar ativamente: o início da aplicabilidade do acordo Trips e o termo do prazo das patentes pipeline, casos que foram considerados leading cases perante o ordenamento jurídico brasileiro.
3 Vigência do Trips
Uma das maiores questões levadas ao STJ foi o início da aplicabilidade do acordo no país. Foram diversos os casos que chegaram à instância superior requerendo prorrogação do prazo de exclusividade de patente de 15 anos, conforme o antigo Código de Propriedade Intelectual, para 20 anos, em concordância com as previsões do Trips, mesmo para concessões realizadas antes do ingresso do Brasil no acordo.
Contudo, não era claro, à época, se as determinações do acordo seriam automaticamente incidentes a partir de sua ratificação ou se haveria prazo de vacância de cinco anos para seu início. Isso porque, nos termos do art. 65 do Acordo Trips, os países-membros que necessitassem de prazo de transição, ou seja, que estivessem em desenvolvimento ou passando por processo de mudanças econômicas, poderiam se beneficiar de um prazo de até cinco anos para implementar as regras previstas no instrumento. Em tese, esta seria a posição do Brasil e, como consequência, os efeitos do acordo só entrariam em vigor em janeiro de 2000.
A fixação do início da vigência do acordo teve grande importância para a aplicação da propriedade intelectual no ordenamento jurídico pátrio, na medida em que o instrumento determina o prazo de concessão de patentes em 20 anos em vez de 15, conforme a lei 5.772/71, anterior à adesão do Brasil ao acordo. Esta alteração ensejou a interposição de diversos recursos requerendo a ampliação de cinco anos por parte de empresas, ainda que os registros das patentes fossem anteriores à legislação pós-Trips.
A primeira manifestação do STJ acerca do tema (REsp 661.536-RJ2), contudo, definiu que a prorrogação da vigência do acordo seria, tão somente, uma prerrogativa dos países signatários, pela qual estes poderiam optar ou não. O Brasil, por não ter se manifestado neste sentido, estaria, portanto, vinculado aos termos do acordo a partir de sua assinatura, ou seja, a partir de 1995. Ocorre que, em posterior análise (REsp 806.147-RJ3), o Superior Tribunal determinou que a inexistência de manifestação expressa do Brasil quanto ao prazo de prorrogação não consistiu em renúncia do direito previsto, mantendo-se o prazo de prorrogação.
Atuei no caso em que a ministra Nancy Andrighi proferiu notável julgamento de recurso especial acerca da matéria (REsp 960.728-RJ4). No processo em questão, a empresa estrangeira, recorrendo-se do prazo mais benéfico previsto pelo art. 33 do acordo, requereu ao Inpi que prorrogasse seu prazo de exclusividade por mais cinco anos, fundamentando seu pedido na imediata aplicabilidade do Trips.
Contudo, em seu julgamento, a ministra Nancy Andrighi apontou que o art. 65 do acordo possui dualidade quanto à forma de aplicação de vigência, estipulando, assim, que, enquanto o art.
65.2 do Trips estabelece um direito expresso de prorrogação, o art. 65.4 consiste em mera faculdade do país-membro, no qual, apenas na segunda hipótese, ou seja, nos casos em que o país-membro esteja em desenvolvimento, a extensão da proteção patentária de produtos de setores tecnológicos poderia ser adiada por um prazo de cinco anos.
O voto proferido nos autos do REsp pela ministra remodelou a jurisprudência nacional e passou a ser o paradigma de decisões que persistem até nos julgados mais recentes, mantendo-se o posicionamento de que não é possível a prorrogação de cinco anos às patentes depositadas em data anterior a 1º de janeiro de 2000. Este entendimento permitiu que diversas empresas, especialmente no ramo farmacêutico, pudessem desenvolver atividades competitivas e ampliar seu mercado de forma segura, sem correr o risco de retroatividade da lei e insegurança jurídica acerca dos marcos iniciais das proteções patentárias.
4 Patentes pipeline
Outro ponto clarificado pelo STJ foi o prazo de proteção de patentes estrangeiras, denominadas patentes pipeline, estabelecidas no art. 230, combinado com o art. 40, da lei 9.279/96. Também conhecida como patente de importação, a pipeline visa vincular a patente concedida no exterior a uma fornecida no Brasil, de forma a permitir que ambas tenham a mesma validade e demais características nos dois países.
Em um primeiro momento, a jurisprudência do STJ apontou que a proteção às patentes estrangeiras deveria vigorar pelo prazo remanescente de proteção no país onde foi depositado o primeiro pedido, limitado ao período máximo de 20 anos a contar da data do depósito do pedido no Brasil (REsp 445.712-RJ5), posição esta contrária à da ministra Nancy Andrighi e do ministro Antônio de Pádua Ribeiro, votos vencidos no caso. Após a reapreciação da matéria, mudou-se o posiciona- mento do STJ para acatar a posição exarada pela ministra, entendimento este que também permanece até hoje.
Neste âmbito, minha atuação ao lado de meu amigo e parceiro Denis Borges Barbosa, jurista memorável que contribuiu para o direito e propriedade intelectual com relevância incomensurável, foi próxima. Pessoa de afável trato, Denis é lembrado até hoje por sua generosidade. Todo o conteúdo criado por ele sobre propriedade intelectual era disponibilizado na internet, em português, francês e inglês, de forma gratuita, tornando-o uma pessoa de fácil aproximação, seja por juristas consagrados ou jovens ingressantes na área. Este relacionamento abrangente criou uma relação de troca de textos, experiências e conheci- mento acessível e de qualidade.
Atuamos lado a lado em defesa de um cliente no ramo farmacêutico, que se encontrava impossibilitado de continuar a atuar com um produto de grande relevância para sua atividade em função do entendimento primário acerca do prazo remanescente de proteção de patente estrangeira.
Atualmente, seu legado é conduzido por seu filho, Pedro Marcos Nunes Barbosa, que possui respeitável credibilidade na academia ante sua fidelidade intelectual e capacidade de sustentação oral nos mais diversos casos do campo de propriedade intelectual.
Há ainda muito a ser percorrido e melhorado quando falamos em propriedade intelectual no Brasil, porém reconheço que a atuação do STJ, nas pessoas da ministra Nancy Andrighi e ministro Sidney Beneti, ao lado de importantes causídicos como Denis Borges Barbosa e Pedro Marcos Nunes Barbosa, me inspira a acreditar que os avanços intelectuais da área estão em boas mãos.6
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1 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial 1-SP. Rel. Min. Gueiros Leite. DOU de 12/9/1989.
2 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial 661.536-RJ. Rel. Min. Carlos Alberto Menezes Direito. DJe de 30/5/2005.
3 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial 806.147-RJ. Rel. Min. Sidnei Beneti. DJe de 18/12/2009.
4 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial 960.728-RJ. Rel. Min. Nancy Andrighi. DJe de 15/4/2009.
5 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial 445.712-RJ. Rel. Min. Castro Filho. DJe de 28/6/2004.
6 O autor agradece a valiosa colaboração da advogada Fernanda de Matos Marques.
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O artigo foi publicado na Revista do Advogado, da AASP, ano XXXIX, nº 141, de maio de 2019.
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*Pierre Moreau é professor e advogado. Sócio fundador e membro do Conselho Diretor da Casa do Saber-SP. Professor do Insper-SP. Mestre e professor doutor em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Professor visitante na St. Gallen University, na Suíça. Cursou Harvard Law School e Harvard Business School.