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Judiciário, fake news e hate speech

Em suma, o que propomos é que o combate às fake news e ao hate speech por parte do Poder Judiciário seja feito através de ações inteligentes de comunicação social, e nunca através do poder de polícia com atos coercitivos, preventivos ou a posteriori.

quinta-feira, 9 de maio de 2019

Atualizado em 8 de maio de 2019 17:58

O inquérito aberto por ordem do presidente do Supremo Tribunal Federal para o combate às fake news e ao discurso de ódio de que a instituição e seus membros foram suposta ou comprovadamente vítimas mostrou-se viciado de inconstitucionalidades unanimemente reconhecidas. A mesma mácula de ofensa à Constituição e demais arbitrariedades legais recaiu sobre à famigerada censura à matéria da revista virtual Crusoé. Não é, pois, objetivo deste artigo discutir a constitucionalidade e legalidade daqueles dois atos canhestros de nossa Suprema Corte, mas sim alertar para a ineficácia de atos coercitivos à liberdade de expressão num tempo em que a internet e as redes sociais se tornaram os principais veículos de difusão da opinião pública, além de propor uma alternativa de resposta constitucionalmente válida e mais eficiente do ponto de vista estratégico.

Veja-se o exemplo concreto da censura à matéria da Crusoé: talvez a ela do passasse relativamente desapercebida, dissolvendo-se nos oceanos de informações políticas da rede mundial de computadores, mas, com a censura pelo Corte Suprema do pais, a própria notícia censurada foi noticiada no noticiário de televisão de maior audiência do páis, o Jornal Nacional, da TV Globo, o que só fez dar maior amplitude de visibilidade a ela.  Com a repercussão nacional, até nos mais profundos rincões do país a pessoa mais modesta passou a saber que o Ministro Toffoli recebeu o epíteto de  "amigo do amigo" do pai de Marcelo Odebrecht - o ex-presidente Lula - alegação que punha o presidente do STF na condição de suspeito de tratativas ilícitas comprometedoras da imparcialidade do Judiciário.

Censurar notícias na internet pelas vias judiciais e administrativas é como querer segurar água com as mãos ou abater um enxame de gafanhotos matando um por um. Uma vez que uma notícia de impacto venha à luz na web, se disseminará de forma irreversível. A obstrução do site, blog ou perfil fonte da notícia é, portanto, ineficaz. Milhares de outros agentes de publicação virtual já a terão reproduzido e continuarão a reproduzir, com todas as formas de distorções, mal-entendidos e envisamentos interesseiros imagináveis.

Notícias falsas contra não apenas contra os membros do STF, mas em desfavor de inúmeros membros de tribunais e magistrados de primeira instância, sem dúvida, ocorrem aos borbotões, mas a censura, além de inconstitucional, é inócua. Sempre vale lembrar a lição de Stuart Mill: a verdade precisa ser desafiada publicamente pela mentira para que mostre seus fundamentos e brilhe mais. Logo, a atitude que o Poder Judiciário deveria utilizar, a fim de preservar sua imagem, de um ponto de vista estratégico, e constitucionalmente válido, deveria ser a de denunciar, ou de contra-atacar, pelos mesmos meios, a notícia falsa, imprecisa, difamante, caluniosa ou injuriante. A via coercitiva além de inconstitucional, nos tempos atuais é inócua.

Todo tribunal conta com assessorias e secretarias de imprensa ou de comunicação social. Em épocas de crises de disseminação de notícias caluniosas, difamatórias ou injuriosas, estes órgãos internos deveriam ser chamados a agir de forma rápida e eficaz, na mesma velocidade e com semelhante impacto de alcance e visibilidade. Mas, na prática, estes órgãos têm sido quase inoperantes. Os tribunais superiores contam com acesso à TV aberta, sites próprios, e perfis nas principais redes sociais: youtube, facebook, twitter, whatsaap. Contudo, a audiência e o acesso a estas mídias, tradicionais ou não, é baixíssimo. Esse quadro deveria mudar. Profissionais de comunicação e publicidade deveriam ser contratados ou mesmo agências da iniciativa privada, como as mídias de fact chacking. Nessa nova era, em que o campo de batalha dos debates públicos passa a ser a redes mundial de computadores, é de se prever que o Judiciário e seus membros sofrerão ondas de ataques virtuais de notícias inverídicas ou eivadas de ódio, que ganharão caixa de ressonância na imprensa tradicional ou nos parlatórios públicos dos Poderes Legislativos dos três âmbitos federativos frequentemente. Os órgãos de comunicação do Judiciário não estão preparados para enfrentá-las. É mister aprimorar, portanto, os aparelhos institucionais de comunicação dos tribunais. A contratação de pessoal e serviços neste sentido me parece inevitável, e exige uma flexibilização das normas pertinentes de contratos administrativos. Trata-se de alternativa menos onerosa não apenas para os direitos fundamentais relacionados à livre manifestação do pensamento, como talvez para os cofres públicos provavelmente. A estratégia também daria tranquilidade aos magistrados para se dedicarem àquilo que lhes incumbe precipuamente: julgar com serenidade.

O procedimento constitucionalmente adequado e estrategicamente eficaz de combate às fake news, portanto, me parece ser o de denunciar a falsidade publicada, de forma responsável, demonstrando que são falsas, e, sobretudo, demonstrando porque são falsas, distorcidas ou imprecisas as notícias tidas como fake news, valendo-se de uma retórica respeitosa mas acessível e adaptada ao modus loquendi das redes sociais. Contrapor um discurso a outro discurso, jamais submeter um discurso, por mais inverídico e odiento que seja, parece-nos não só a única via constitucionalmente aceitável, como a mais eficaz.

Esta também me parece ser a única via lícita e estrategicamente inteligente de enfrentamento do outro problema do abuso discursivo nas redes sociais: o hate speech. O discurso odiento, em princípio, também está resguardado pela cláusula constitucional da liberdade de expressão. Ao menos no que diz respeito à censura prévia. Para recorrer a uma autoridade respeitável no constitucionalismo contemporâneo, podemos citar Ronald Dworkin, que compartilha dessa visão. Censurar o discurso odiento, escarnecedor ou virulento, na web, também é uma medida inócua. Mesmo obstruída a fonte original do discurso (um site específico ou um perfil de rede social, por exemplo), ele reaparecerá em outros sites, perfis ou páginas de internet, bem como nas mídias tradicionais. O que fazer então? Propomos uma estratégia contrária à censura: projetar os holofotes sobre esse discurso odiento. A atenção das pessoas sensatas se voltará para ele com um olhar de recriminação que, creio, terá um efeito de prevenção geral e especial mais eficiente que a coerção estatal.

Alguns casos divulgados pela televisão demonstram isso. Quando a TV aberta exibe alguém fazendo um discurso racista, contra, por exemplo, "a macaca da filha do ator tal", o autor, ou autora, do discurso acaba sendo exposto à recriminação coletiva - a cujo risco aceitou ser exposto - e é devidamente intimidado. Em muitos casos, o autor do discurso odiento acabará alegando que fora motivado por descontrole emocional e pedirá desculpas públicas. Em muitos casos terminará recorrendo a um tratamento médico. Sendo personalidade pública o emissor do discurso, perderá patrocínios, contratos de trabalho. Outros não se intimidarão: insistirão, ganharão seguidores, caixas de ressonância, mas aí o combate pode ser redobrado. Sempre pelos mesmos meios, a princípio.

Há, contudo, evidentemente, um ponto em que o discurso de ódio pode estar ameaçando ir além da linha vermelha. É quando entra em cena o que a jurisprudência constitucional norte-americana atual, resultante do julgamento do caso Brandenburg vs Ohio (1969), denomina iminente lawless action (perigo de iminente ação ilegal). A jurisprudência norte-americana somente aceita o cerceamento à livre expressão nessa única espécie, como é sabido. Ressalte-se que o perigo em questão deve ser iminente, estar em vias de acontecer a qualquer momento, ser flagrante, na linguagem do Direito Penal. E deve se consubstanciar num ato concreto de à segurança, incolumidade ou ordem pública. Exemplifiquemos: há uma grande diferença entre alguém que lança uma diatribe no twitter ao estilo "vamos invadir o STF e tocar fogo lá", ou "um jipe, um cabo, um soldado" e um chamamento a um grupo razoável de pessoas, na internet ou na mídia tradicional, para se encontrarem em data, local e hora definidos, com adesões confirmadas, a fim de marcharem com coquetéis molotov até um prédio público para vandalizá-lo. Neste caso, a liberdade de expressão já revela um perigo iminente de ação ilegal ou uma iminente ameaça à ordem, segurança e incolumidade públicas. Perfeitamente cabível aí a atuação estatal coercitiva.

Obviamente, a doutrina da iminente lawless action refere-se a danos coletivos potenciais e só a eles deveria ser invocada como condição para medidas coercitivas da liberdade de expressão. Há casos em que a simples expressão pensamento, em si mesma, fere direitos fundamentais, nos casos os direitos da personalidade como a honra, a imagem, a privacidade, a intimidade. Danos a indivíduos concretos merecem, obviamente, a tutela judiciária, pois nesse caso o que se tutela são atributos subjetivos da pessoa humana. No caso dos ministros do STF, julgamos que seria mais apropriado que buscassem, enquanto cidadãos, e não como autoridades, a reparação dos supostos danos a suas honras contra atos concretos de indivíduos também concretos. Jamais deveriam apelar à adoção de um procedimento administrativo de amplíssimo e vagos objetos.

Em suma, o que propomos é que o combate às fake news e ao hate speech por parte do Poder Judiciário seja feito através de ações inteligentes de comunicação social, e nunca através do poder de polícia com atos coercitivos, preventivos ou a posteriori. Além de ser a estratégia mais eficiente, é a única via constitucional e lícita, repita-se, e não traz prejuízo para a reivindicação de alguma reparação cível ou responsabilização na esfera criminal por ofensa relevante à dignidade e honra de indivíduos concretos pertencentes aos quadros do Poder Judiciário, pelas vias processuais clássicas das representações penais por injúria, calúnia e difamação, ou através das devidas ações cíveis por danos a direitos da personalidade: honra, imagem, privacidade, intimidade.

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CAVALCANTI FILHO, João Trindade. O Discurso de ódio na jurisprudência alemã, americana e brasileira. 1a. ed. São Paulo: Saraiva, 2018.

DWORKIN, Ronald. O direito da liberdade: A leitura moral da constituição norte-americana. Trad. Marcelo Brandão Cipola. São Paulo: Martins Fontes, 2006.

ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA. Supreme Court of The United States. Brandenburg v. Ohio Case, 1969. Disponível em . Acesso em 26/04/2019.

SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo: Malheiros, 2005.

 

STUART MILL, John. Sobre a Liberdade. Trad. Denise Bottman. Porto Alegre: L&PM, 2015.

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*Vinícius de Oliveira é analista judiciário do TRE-MG e especialista em Direito Público pela PUC MINAS.

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