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Os limites dos aplicativos de transporte

Não poderiam os apps exercer o transporte coletivo, com rotas predefinidas, agrupando pessoas que não se conhecem, que não são levadas a seus destinos, mas a pontos de desembarque. Se o serviço é individual, como a Lei de mobilidade urbana repetidas vezes esclarece, a modelagem compartilhada deve ser interpretada sem descurar seu limite de atuação.

quarta-feira, 8 de maio de 2019

Atualizado às 08:40

O julgamento da ADPF 449 será retomado pelo STF no próximo dia 8. A ação envolve a discussão sobre a constitucionalidade de lei do município de Fortaleza que veda o transporte individual de passageiros, por meio de aplicativos. O foco da discussão envolve a prerrogativa de regulamentar ou não a atividade, de que cuida o art. 11-B.  Mas, eventual regulamentação deverá necessariamente considerar um aspecto que merece especial atenção: a centralidade do serviço público de transporte coletivo.

 

A qualificação de uma atividade como serviço público significa o reconhecimento de sua importância social. Implica dizer que o legislador deslocou a atividade para um cenário jurídico com regras e princípios próprios, com destaque para o princípio da continuidade. O serviço público, em homenagem aos usuários que dele dependem, não pode ser paralisado. Ameaças à sua prestação atingem a coletividade.

 

O serviço público de transporte coletivo tem sua importância reconhecida na ordem jurídica brasileira. A Constituição da República, no art. 30, V, o qualifica como serviço público essencial, característica não conferida nem mesmo aos serviços de educação e saúde. A dimensão jurídica conferida ao transporte coletivo deve conduzir a interpretação das regras infraconstitucionais que abordem a questão da mobilidade urbana.

 

O serviço púbico de transporte coletivo se caracteriza por ser aberto ao público, remunerado principalmente por meio de tarifa, que não oscila ao sabor da lei da oferta e da procura, e envolve o deslocamento entre pontos previamente determinados. Trata-se de atividade a ser oferecida não apenas quando interessa às prestadoras privadas, mas também aos domingos e feriados, em horários de menor procura, observadas as exigências leis e regulamentares sem prejuízo das cláusulas contratuais, inclusive as relativas a modelos de veículos, destino das rotas, tratamento favorecido para categorias de usuários, em que se destaca a  gratuidade para os idosos. Logo, ainda que a concessionária não se interesse por dada rota e horário, permanece inalterado o dever de disponibilizar o serviço, se assim prescrever o Poder Público. Horários de pico não autorizarão majorações tarifárias. O transporte de usuários titulares de gratuidade deverá ocorrer, ainda que isso não seja de interesse da empresa prestadora. O regime jurídico fixa balizas para a atuação das empresas privadas, porque não se trata de atividade ordinária.

 

A proteção jurídica ao transporte coletivo justifica-se porque o serviço público precisa ser protegido. Sua destruição com a substituição pela prestação privada implica destruir toda a rede protetora. Regras traçadas pelo Poder Público serão suplantadas por regras de mercado. Locais, rotas, horários menos interessantes economicamente não serão contemplados. Gratuidades e outras formas de tratamento distinto não mais existirão. Isso sem falar dos problemas relacionados ao meio ambiente, ao deslocamento nas cidades, que serão ainda mais pressionadas por veículos privados, e à indefinição sobre o montante a ser pago.           

 

Em 26 de março de 2018, o então presidente Michel Temer sancionou a lei 13.640/18 que, alterando a lei 12.587/12 (Lei de Mobilidade Urbana), conceituou o transporte remunerado privado individual de passageiros como o serviço remunerado de transporte de passageiros, não aberto ao público, para a realização de viagens individualizadas ou compartilhadas solicitadas exclusivamente por usuários previamente cadastrados em aplicativos ou plataformas de comunicação em rede. É justamente na categoria supracitada, portanto, que se enquadram os serviços prestados por meio dos apps de transporte privado.

 

O   transporte remunerado privado individual de passageiros, nome conferido pela lei, é atividade privada, não aberta ao público, de viés individual. Todos eles elementos estão evidenciados no texto legal. Logo, trata-se de atividade acessória ao serviço público de transporte coletivo, que com ele não se confunde e nem pode competir. Seria contraditório conceber que o serviço público destinado à coletividade, merecedor da qualificação de essencial, pudesse ser fragilizado por uma atividade privada.

 

Todo esse cenário interessa para a intepretação da modalidade compartilhada, mencionada no art. 4º, X, da Lei de Mobilidade Urbana O transporte remunerado privado individual de passageiros, embora possa ser compartilhado, continua sendo individual e privado.

 

Em outros dizeres, é impossível que um transporte caracterizado pelo legislador como individual seja, concomitantemente, coletivo. Os conceitos não são intercambiáveis. Não por outra razão, aliás, a própria lei 12.587/12 prevê a classificação do serviço de transporte urbano de maneira dicotômica: de um lado, o serviço de transporte coletivo (art. 3º, §2º, II, "a") e, de outro, diversamente, o serviço de transporte individual (art. 3º, §2º, II, "a"), previsão que robustece a impossibilidade de um fazer as vezes do outro.

 

Ademais, a lei 13.683/18 adicionou o inciso VIII ao art. 6º da lei de mobilidade urbana, deixando assente que a Política Nacional de Mobilidade Urbana está fundamentada na "garantia da sustentabilidade econômica das redes de transporte público coletivo de passageiros, de modo a preservar a continuidade, a universalidade e a modicidade tarifária do serviço." No mesmo sentido, no mesmo artigo, o seu inciso II estabelece a prioridade do transporte coletivo sobre o transporte individual e, na mesma toada, o inciso VI determina a "priorização de projetos de transporte público coletivo estruturadores do território e indutores do desenvolvimento urbano integrado."

 

Não bastasse, o art. 22, V, também da Lei de Mobilidade Urbana, dispõe que "estimular a eficácia e a eficiência dos serviços de transporte coletivo" é atribuição mínima dos órgãos gestores dos entes federativos incumbidos do planejamento e gestão do sistema de mobilidade urbana.

Como se vê, há, portanto, uma nítida intenção do legislador - tanto constituinte como ordinário - de conferir prioridade ao serviço público de transporte coletivo, valorização imprescindível para o desenvolvimento urbano integrado, para a potencialização da função social da cidade e, logo, para o interesse público amplamente considerado.

 

Ou seja, se de um lado a lei 12.587/12 conceituou o serviço de transporte remunerado privado individual de passageiros, de outro, estabelece que serviço compartilhado não se confunde com serviço coletivo e, ademais, reforça que o transporte público coletivo é prioritário e deve ter sua sustentabilidade econômica preservada, algo que apenas corrobora a essencialidade do serviço já prevista no art. 30, V, do texto constitucional.

 

Nesta esteira, não poderiam os apps exercer o transporte coletivo, com rotas predefinidas, agrupando pessoas que não se conhecem, que não são levadas a seus destinos, mas a pontos de desembarque.  Se o serviço é individual, como a lei de mobilidade urbana repetidas vezes esclarece, a modelagem compartilhada deve ser interpretada sem descurar seu limite de atuação. Transportar coletivamente é ultrapassar a esfera autorizada pela Lei, aniquilando gota a gota o sistema de transporte coletivo, o que não se coaduna com o ordenamento jurídico aplicável e com os ditames da Constituição da República, consoante restou desenvolvido ao longo desta oportunidade.

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*Cristiana Fortini é professora da UFMG, doutora em Direito Administrativo, diretora do Instituto Brasileiro de Direito Administrativo (IBDA) e sócia do Carvalho Pereira, Rossi Escritórios Associados.

 

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