Inconstitucionalidade manifesta do § 1º do artigo 603 do Código de Processo Civil
É sabido que um dos pilares da sistemática trazida pelo atual Código de Processo Civil é a autocomposição, sendo esse o espírito da norma em estudo.
segunda-feira, 29 de abril de 2019
Atualizado em 30 de setembro de 2019 15:23
Código de Processo Civil - CPC em vigor, ao isentar as partes do pagamento de honorários advocatícios no caso de expressa concordância quanto à dissolução de sociedade, nos termos do § 1º do artigo 603, está em desacordo com diversos preceitos constitucionais.
Além disso, afronta o artigo 22 do Estatuto da Advocacia (lei nº 8.906, de 4 de julho de 1994), o qual assegura, em absoluto, honorários ao advogado que prestou serviço.
O dispositivo em comento é materialmente incompatível com a legislação e com a Carta Magna de 1988, veja sua redação (CPC):
Art. 603. Havendo manifestação expressa e unânime pela concordância da dissolução, o juiz a decretará, passando-se imediatamente à fase de liquidação.
§ 1º Na hipótese prevista no caput, não haverá condenação em honorários advocatícios de nenhuma das partes, e as custas serão rateadas segundo a participação das partes no capital social.
É sabido que um dos pilares da sistemática trazida pelo atual Código de Processo Civil é a autocomposição, sendo esse o espírito da norma em estudo, entretanto é expresso no mesmo diploma legal que "O processo civil será ordenado, disciplinado e interpretado conforme os valores e as normas fundamentais estabelecidos na Constituição da República Federativa do Brasil..."1, logo o que deve prevalecer, em termos materiais, é a observância dos preceitos constitucionais pertinentes a livre iniciativa e ao trabalho em detrimento da possibilidade de realização de autocomposição.
O que deve se observar é o trabalha do procurador, único com capacidade postulatória, sendo elencado na Constituição Federal de 1988 como "... indispensável à administração da justiça..."2.
De fato, há uma antinomia entre o §1º do artigo 603 do Código de Processo Civil e o princípio da sucumbência. Observa-se a mesma realidade em relação a situações análogas constantes da mesma norma (reconhecimento do pedido e execução não resistida).
O princípio apontado encontra-se expresso no Código de Processo Civil3, afirmando que a "sentença condenará o vencido a pagar honorários ao advogado do vencedor" descrevendo ainda que "são devidos honorários advocatícios na reconvenção, no cumprimento de sentença, provisório ou definitivo, na execução, resistida ou não, e nos recursos interpostos, cumulativamente".
Na execução não resistida observa-se o trabalho do advogado, o qual postulou em juízo e adotou todas as medidas necessárias ao recebimento da exordial, bem como realizou os atos para efetivação da citação do executado e demais, que resultaram no pagamento do montante devido, sem oposição quanto a pretensão inicial.
Situação análoga a apontada no parágrafo anterior é observada na ocorrência de reconhecimento do pedido, sendo esse o ato no qual o demandado acata as alegações do demandante, reconhecendo como lícita e devida a pretensão inicial.
No caso em apreço descreve o Código de Processo Civil que "proferida sentença com fundamento em desistência, em renúncia ou em reconhecimento do pedido, as despesas e os honorários serão pagos pela parte que desistiu, renunciou ou reconheceu"4.
A situação tratada no §1º do artigo 603 do Código de Processo Civil5 descreve claramente o reconhecimento do pedido, assim como o previsto no artigo 90 do mesmo diploma legal, contudo, sem qualquer justificativa plausível, isente quem o reconheceu do pagamento de honorários advocatícios, ou seja, a ilegalidade e a inconstitucionalidade são latentes.
Infere-se uma antinomia de normas que não se sustenta diante de uma interpretação sistêmica (interpretação sistemática) do Código de Processo Civil, ou seja, uma norma ou outra deve prevalecer para que se mantenha a harmonia da lei como um todo e viabilize sua aplicação com isonomia, equidade.
A prestação do serviço jurídico na situação descrita no §1º do artigo 603 do Código de Processo Civil é evidente, assim como se observa na execução não resistida e no reconhecimento do pedido, apresentados acima; logo constata-se o direito de ter uma contraprestação pelo trabalho realizado, o que é tolhido pelo dispositivo em análise.
Desse modo, ante a tal realidade, o advogado que representa os interesses do autor da ação de dissolução da sociedade deve ser premiado com os honorários sucumbenciais, sob pena de infringir o disposto no estatuto da advocacia6, o qual determina que a "prestação de serviço profissional assegura aos inscritos na OAB o direito aos honorários...".
A não fixação de honorários na situação em apreço representa também ofensa a proteção ao direito alimentar que assiste ao procurador7, sendo esse assegurado pelo próprio Código de Processo Civil, o que representa mais uma ilegalidade e antinomia de normas.
Observada a legislação infraconstitucional faz-se necessário evidenciar que o disposto no §1º do artigo 603 do Código de Processo Civil afronta expressamente dispositivos constitucionais, sendo esses os seguintes:
Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:
(...)
III - a dignidade da pessoa humana;
IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa;
Art. 5º
(...)
XIII - é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer;
Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 90, de 2015)
Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:
(...)
VIII - busca do pleno emprego;
(...)
Parágrafo único. É assegurado a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei.
Art. 133. O advogado é indispensável à administração da justiça, sendo inviolável por seus atos e manifestações no exercício da profissão, nos limites da lei.
No caso em comento, pertinente ao exercício do direito de ação e ausência de fixação de honorários, nos termos do preconizado no §1º do artigo 603 do Código de Processo Civil, a presença do advogado é indispensável; sem o procurador devidamente inscrito na Ordem dos Advogados do Brasil não há como a demanda sequer ter início.
O trabalho realizado pelo advogado, assim como de qualquer cidadão, é tratado constitucionalmente como um dos princípios fundamentais da República Federativa do Brasil (art. 1º, inciso IV da CF/88), bem como um direito individual previsto no título Dos Direitos e Garantidas Fundamentais da Constituição Federal (art. 5º, inciso XIII da CF/88).
Além disso a atividade desenvolvida pelo procurador inscrito junto a Ordem dos Advogados do Brasil é descrito pela Carta Magna como um dos direitos sociais atribuídos aos trabalhadores (art. 6º da CF/88), assim como um princípio geral da atividade econômica (art. 170, inciso VIII e parágrafo único da CF/88), tratando-se de trabalho indispensável a administração da justiça (art. 133 da CF/88).
Assim, o trabalho realizado pelo advogado, dotado de proteção constitucional, requer uma contraprestação pela atividade desenvolvida, logo, nesses termos, diante da ausência de remuneração (fixação de honorários pelo juízo) e da atividade efetivamente realizada pelo procurador (exercício do direito de ação), constata-se afronta direta ao texto constitucional, nos termos descritos nos parágrafo pretéritos (art. 1º, inciso IV da CF/88) (art. 5º, inciso XIII da CF/88) (art. 6º da CF/88) (art. 170, inciso VIII e parágrafo único da CF/88) (art. 133 da CF/88) quando se efetiva o comando legislativo previsto no §1º do artigo 603 do Código de Processo Civil.
Desse modo, a inconstitucionalidade do §1º do artigo 603 do Código de Processo Civil, é evidente, devendo a mesma ser reconhecida, prestigiando dessa forma o trabalhado exercido pelo advogado, digno de contraprestação pecuniária, assim como qualquer outro.
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1 Lei 13.105 de 2015 - Código de Processo Civil, artigo 1º.
2 Constituição Federal de 1988, artigo 133.
3 Lei 13.105 de 2015 - Código de Processo Civil, artigo 85.
4 Lei 13.105 de 2015 - Código de Processo Civil, artigo 90.
5 Art. 603. Havendo manifestação expressa e unânime pela concordância da dissolução, o juiz a decretará, passando-se imediatamente à fase de liquidação. § 1o Na hipótese prevista no caput, não haverá condenação em honorários advocatícios de nenhuma das partes, e as custas serão rateadas segundo a participação das partes no capital social.
6 Lei nº 8.906, de 04 de julho de 1994, artigo 22.
7 Lei 13.105 de 2015 - Código de Processo Civil, artigo 85, §14º.
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*Clodoaldo Moreira dos Santos Júnior, pós-doutor em Direito Constitucional na Itália, advogado e professor universitário. Sócio fundador Escritório SME Advocacia, Conselheiro da OABGO; Presidente da Comissão Especial de Direito Civil da OABGO, Membro Consultor da Comissão de Estudos Direito Constitucional da OAB NACIONAL, Arbitro da Cames do Brasil.