O Judiciário e a tecnologia
O que garante o seguro tratamento das informações contidas nos processos judiciais são apenas os recursos de informática adotados no armazenamento. Se esses recursos não forem seguros o suficiente, não será a nacionalidade brasileira do armazenador que poderá nos dar qualquer garantia.
sexta-feira, 22 de março de 2019
Atualizado em 20 de março de 2019 16:27
A assimilação pelo Poder Judiciário brasileiro de novas tecnologias tem sido dificultada por desmedido e desnecessário conservadorismo. A história fornece alguns exemplos que, vistos à distância, mostram o desacerto dos temores inicialmente nutridos com a introdução de novas tecnologias no cotidiano da prestação jurisdicional.
Em 1929, o Tribunal da Relação de Minas Gerais anulou uma sentença criminal porque ela tinha sido datilografada, por considerar que o uso da máquina de escrever podia antecipar a sua publicidade. Nos anos 1980, foi indeferida a petição inicial de um mandado de segurança, porque não tinha sido observado o vernáculo. Na verdade, os primeiros editores automatizados de texto não conheciam os signos do português inexistentes no inglês, como o cedilha e o acento circunflexo. Nos anos 1990, anularam se sentenças judiciais elaboradas com utilização do microcomputador, por receio de que a reprodutibilidade do texto impedia o estudo acurado do processo a que devem se dedicar os juízes.
Lembro dessas oportunidades em que o Judiciário resistiu de início a inovações tecnológicas que posteriormente incorporou (com inegável ganho aos jurisdicionados) a propósito da notícia da liminar, concedida pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que suspendeu os efeitos de contrato celebrado entre o Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ/SP) e a Microsoft. O contrato visa a criação de uma nova Plataforma da Justiça Digital, em substituição ao obsoleto sistema atual (SAJ), que tem mais de quinze anos. Com o armazenamento dos processos da justiça paulista em nuvens, no contexto de uma muito benvinda inovação tecnológica, o Tribunal não só terá uma significativa economia de custos (da ordem de 40%) como proporcionará uma notável ampliação da acessibilidade e operacionalidade do sistema informatizado dos processos judiciais. A inovação poderá ser posteriormente expandida aos demais tribunais do país.
A maior preocupação do CNJ diz respeito à segurança no tratamento dos dados. Teme-se que os dados dos processos passarão a ser guardados por uma "empresa estrangeira, com sede no exterior", o que chegaria a pôr em risco interesses nacionais.
Desde logo, convém destacar que as duas empresas da Microsoft contratadas pelo TJ/SP são juridicamente brasileiras, na forma da lei (Código Civil, art. 1.126). Há quase um quarto de século, desde a EC 6/95, foi abolida do nosso direito a distinção das empresas em razão da nacionalidade do capital ou dos sócios.
Mas, o receio de risco aos interesses nacionais continuaria a ser infundado, mesmo que o TJ/SP tivesse contratado uma empresa estrangeira. O que garante o seguro tratamento das informações contidas nos processos judiciais são apenas os recursos de informática adotados no armazenamento. Se esses recursos não forem seguros o suficiente, não será a nacionalidade brasileira do armazenador que poderá nos dar qualquer garantia. A propósito, se compararmos com o contrato atual, o celebrado com a Microsoft oferece mais garantias contra o uso inapropriado das informações armazenadas no sistema. Hoje, o código fonte do sistema não é da propriedade do TJ/SP, enquanto o contrato com a Microsoft prevê a copropriedade.
O interesse nacional consiste em podermos ter acesso a bens ou serviços de melhor qualidade e mais baratos, fornecidos por empresas de qualquer nacionalidade, num regime de ampla competição econômica. Quando o nacionalismo é usado para defender qualquer forma de reserva de mercado para brasileiros, ele não é verdadeiro, porque não atende ao interesse da nação, mas apenas ao dos poucos empresários refratários à concorrência que serão agraciados com o mercado cativo. Lembro do enorme atraso que casou a reserva de mercado da informática (1984-1991). Não podíamos usar os mais avançados softwares e hardwares (falávamos assim, naquele tempo), porque a indústria nacional se dedicou à engenharia reversa ou à prática da mais despudorada pirataria, ao invés de desenvolver algo como uma "tecnologia brasileira da informação".
Tampouco deve preocupar a localização dos servidores fora do território nacional, posto que a titularidade das informações armazenadas continua a ser do TJ/SP. A Microsoft só pode ter acesso aos dados com a autorização do Tribunal e exclusivamente para fins de manutenção do sistema. Novamente, serão os recursos de informática e não a localização física de equipamentos que poderão dar segurança ao tratamento dos dados. Atentem: se os servidores fossem instalados no Brasil, mas desprovidos dos recursos apropriados, não haveria garantia de segurança no armazenamento.
Aliás, é exatamente isso que está acontecendo hoje: temos servidores fisicamente localizados nas próprias instalações do Tribunal, mas cujos recursos de informática não são os mais avançados. O data center e o back up que o TJ/SP tem que manter para o processamento dos dados do SAJ são obviamente mais vulneráveis aos hackers que as nuvens da Microsoft. Esta empresa fez e continua fazendo investimentos extraordinários na segurança de seus serviços de armazenamento, até mesmo em razão de sua política de reposicionamento no mercado. Para blindar seus servidores da tecnologia de segurança mais avançada, o TJ/SP deveria fazer investimentos equivalentes ao da Microsoft, o que seria um completo despropósito e evidente desperdício de recursos públicos.
A probabilidade de um conflito com os Estados Unidos, em que o acesso deste país estrangeiro aos dados dos processos judiciais tenha alguma relevância, e em razão do qual a Microsoft irracionalmente opte por descumprir o contrato com o TJ/SP, comprometendo sua imagem institucional e todo o esforço de reposicionamento no mercado de armazenagem, é ínfima. É infinitamente menor que a chance de um descontente com o andamento de certa demanda judicial resolver raquear o sistema atual.
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*Fábio Ulhoa Coelho é jurista e professor da PUC-SP.