O Ministério Público e as instituições brasileiras
Sua independência operacional, juntamente com a enorme pressão popular contra a impunidade, têm gerado a flexibilização do princípio de uma atuação isenta1, colocando em xeque a ideia de um Ministério Público dotado de imparcialidade.
segunda-feira, 25 de março de 2019
Atualizado em 20 de março de 2019 13:57
Desde a promulgação da Carta Magna de 1988 e, de modo geral, a organização das instituições brasileiras sempre seguiu o modelo tripartite, no qual se observam os Poderes Legislativo, Judiciário e Executivo. Neste panorama, a posição do Ministério Público foi alvo de controvérsias, sendo por vezes considerado um órgão acoplado a um dos Poderes, outras vezes uma entidade sui generis e, ainda, um quarto Poder.
Para além de tal questão e diante de sua autonomia funcional (CF. Art. 127, § 1º), o Ministério Público tem se agigantado, buscando exercer a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis (lei 8.625/1993. Art. 1º).
No entanto, sua independência operacional, juntamente com a enorme pressão popular contra a impunidade, têm gerado a flexibilização do princípio de uma atuação isenta1, colocando em xeque a ideia de um Ministério Público dotado de imparcialidade.
Parcialidade?
A parcialidade ministerial é palco de inúmeros debates doutrinários, nos quais se apresentam dois polos opostos: (i) a defesa de um processo dialético, com partes manifestamente tendenciosas; (ii) e a tutela de uma posição absolutamente imparcial e neutra do referido órgão, por meio da alegada inexistência de interesse material extraprocessual que se contraponha aos interesses do réu2.
Como já afirmado, observa-se um crescente clamor popular de vertente punitivista, utilizado como justificativa para a exacerbação do subjetivismo do parquet. Contudo, o sistema processual brasileiro, em especial aquele com consequências de aspecto penal, não pode se pautar pelas pressões sociais ou midiáticas, mas, ao contrário, deve regular-se de acordo com as previsões legais existentes, sob pena de concretizar arbitrariedades.
Em breve síntese, defende-se aqui a postura impessoal do Ministério Público, fato que prevê um distanciamento das singularidades personalíssimas do parquet, no intuito de uma operação fundada na objetividade, a qual pressupõe serenidade de ânimo e ausência de simpatias ou discordâncias. Ademais, a impessoalidade engloba a diretriz de tratamento isonômico, sem que haja diferenciação funcional pautada pelo sujeito destinatário da operação ministerial.
É através do atributo da impessoalidade do Ministério Público que o órgão se percebe emancipado para cumprir seu papel de acusador público no exercício da pretensão processual, materializando o contraditório inerente a uma relação dialética e dual, sem afastar sua obrigação para com a juridicidade. Resta também preservada a imperativa liberdade de convicção do membro do MP.
Incumbências do Ministério Público: impessoalidade como princípio
O art. 127, caput, da Carta Maior incumbe ao MP a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis.
Uma vez escolhido defensor de estruturas fundamentais da sociedade brasileira, evidente que o Ministério Público também se sujeita aos preceitos que tutela, possuindo total vinculação à ordem jurídica vigente, a qual deve obediência.
Ora, o princípio da impessoalidade tem assento normativo máximo, mediante o art. 37 da Carta Magna, que se encontra no capítulo que dispõe sobre a Administração Pública. Contudo, a interpretação consciente, democrática, sistêmica, integrativa e principiológica do texto constitucional evidencia o imperativo de que toda e qualquer atividade estatal seja regida pelo atributo da impessoalidade, de forma a garantir uma atuação objetiva e um tratamento isonômico.
Deste modo, percebe-se que a caracterização funcional do Ministério Público através do vocábulo impessoalidade se mostra como o cenário ideal, uma vez que concilia o duplo encargo do parquet, qual seja, ser parte acusadora de parcialidade mitigada; e atuar com objetividade e sob estrita legalidade. Ainda, a atuação impessoal do Ministério Público ostenta coerência e harmonia com a sistemática jurídica brasileira, dispondo de base constitucional integrativa.
Impessoalidade na prática
Cumpre apontar simples direções teóricas que permitem a impessoalidade ministerial na prática jurídica cotidiana.
1. Tem-se como essencial a estrita observância das normas legais em vigor, visando à real materialização do princípio da legalidade, sem engessamento ou joguetes sombrios. Para isso, faz-se indispensável a preservação e o robustecimento dos órgãos de controle e fiscalização da própria atividade ministerial3, quais sejam, a Corregedoria-Geral do Ministério Público4 e o Conselho Nacional do Ministério Público5, sem que isso se confunda com o amordaçamento da instituição.
2. Deve-se buscar a internalização do cânone de que a pressão popular punitivista não pode ditar a operação dos órgãos estatais, sob pena de retorno ao sistema processual inquisitório absoluto e tirânico. Também se faz necessária a imunização à influência midiática, evitando endeusamentos pessoais. Em sentido oposto, o Ministério Público deverá exercer suas atividades de forma racional, por meio de uma atuação plácida e impessoal.
Em conclusão, vê-se que apenas uma atuação impessoal do Ministério Público possibilita a superação de tais barreiras, conjugando parcialidade acusatória com objetividade legalista; paixão e isenção; combatividade e serenidade. Somente deste modo, a execução do propósito constitucional se torna cada vez mais próxima e verossímil, em busca do já aclamado processo democrático.
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1 Cf. Art. 128, § 5º, II da Constituição Federal de 1988; e Arts. 112 e 258 do DECRETO-LEI Nº 3.689, DE 3 DE OUTUBRO DE 1941.
2 MAZZILLI, Hugo Nigro. Manual do Promotor de Justiça. 2. Ed. São Paulo: Saraiva, 1991. p. 183.
3 MAZZILLI, Hugo Nigro. Regime jurídico do Ministério Público : análise do Ministério Público na Constituição, na Lei Orgânica Nacional do Ministério Público, na Lei Orgânica do Ministério Público da União e na Lei Orgânica do Ministério Público paulista. 6. ed. rev, ampl. e atual. São Paulo: Saraiva, 2007, pp. 385-388.
4 Cf. Art. 17 da LEI Nº 8.625, DE 12 DE FEVEREIRO DE 1993.
5 Cf. https://www.cnmp.mp.br/portal/
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*Nina Nobrega Martins Rodrigues é sócia do escritório Manesco, Ramires, Perez, Azevedo Marques Sociedade de Advogados.