A extensão do "Não é Não"
No Carnaval desde ano vários grupos de mulheres se mobilizaram e aderiram ao projeto "Não é Não", com o uso de tatuagens temporárias pelo corpo, que tem por finalidade explicitar, de forma inequívoca, que qualquer abraço, beijo ou carinho só serão recebidos se contar com a concordância feminina. Do contrário, é importunação sexual.
domingo, 3 de março de 2019
Atualizado em 28 de fevereiro de 2019 09:15
Os costumes mudam rapidamente, desde a época de Cícero, que proclamava O tempora, O mores, no sentido de que quanto mais os tempos passam, com eles os costumes vão se modificando. Daí que a legislação, na mesma velocidade, como farol de observação comportamental, deve entender e atender os reclamos da população, dentre eles os novos delitos contidos no capítulo da dignidade sexual. O Código Penal brasileiro, editado em 1940, a duras penas, vem cumprindo sua função, porém, para tanto, vale-se de reformas pontuais relacionadas principalmente com os crimes contra a liberdade sexual.
Basta ver que, antes da reforma, alguns tipos penais mais abrangentes abrigavam situações que não correspondiam à realidade da conduta do agente. Fazia-se uma interpretação por extensão ou até mesmo, equivocadamente, por equiparação. Era o caso do crime de estupro que incidia na conduta do agente que ejaculou em uma passageira, no interior de um ônibus de transporte público no município de São Paulo. Após ter sido preso por estupro, o acusado foi posto em liberdade, por ter o magistrado entendido, in casu, tratar-se da prática, em tese, da contravenção penal de importunação ofensiva ao pudor (artigo 61 da lei das Contravenções Penais), fato que obstava sua prisão.
O vácuo legislativo não permitia, em matéria penal, que o juiz aplicasse a chamada analogia in malam partem, que carrega sérios e danosos prejuízos ao acusado. A premissa estabelecida pelo princípio da anterioridade da lei é no sentido de que o fato considerado criminoso somente poderá ser perquirido judicialmente se contar com a previsão legal correspondente. Quer dizer, deve existir um tipo penal de forma autônoma e independente, contendo a descrição do fato ilícito com todos os elementos definidores para que haja a subsunção legal.
Foi o estopim para que o legislador elaborasse a novatio legis contida no artigo 215-A do Código Penal, que tipificou e criminalizou a conduta com o nomen juris de importunação sexual, in verbis: "praticar contra alguém e sem a sua anuência ato libidinoso com o objetivo de satisfazer a própria lascívia ou a de terceiro", cominando, como sanção, uma pena privativa de liberdade que varia de um a cinco anos de reclusão, "se o ato não constitui crime mais grave" (princípio da subsidiariedade), observando que podem figurar como vítimas do agravo tanto o homem como a mulher.
Com o novo tipo penal o legislador conseguiu dar uma dosagem equilibrada às ações humanas voltadas contra a liberdade sexual, atribuindo a elas a proporcionalidade condizente com a volição do agente. Assim, o que antes seria em tese crime de estupro, em razão da delimitação da ação, passa a configurar importunação sexual. Desta forma, se o agente, de forma intencional e maliciosa, proferir cantadas invasivas, inconvenientes e inoportunas a uma mulher durante o carnaval ou não, mesmo que queira desculpar-se alegando ser brincadeira, mas se for revestida da picardia exigida para a conduta, se tocar as nádegas ou o seio da mulher ou ainda dela roubar um beijo, tudo sem sua anuência, pratica sim a conduta descrita no novo tipo penal.
Atos libidinosos, de acordo com a conceituação do legislador, são todos aqueles praticados de forma isolada ou até mesmo com relação a outra pessoa. Assim, como descreve Teles, o "abraçar, lamber ou simplesmente tocar partes do corpo humano podem ser atos libidinosos. Desnudar ou despir alguém também."1
No Carnaval desde ano vários grupos de mulheres se mobilizaram e aderiram ao projeto "Não é Não", com o uso de tatuagens temporárias pelo corpo, que tem por finalidade explicitar, de forma inequívoca, que qualquer abraço, beijo ou carinho só serão recebidos se contar com a concordância feminina. Do contrário, é importunação sexual.
O corpo humano, este patrimônio individualizado, carrega em si mesmo a essência da pessoa. My body is my temple, expressão tão utilizada pelos americanos, vem a significar que o corpo humano é a dimensão e a projeção da própria pessoa, não no sentido de ocupar um espaço de auto-adoração, mas sim de que, seja lá onde estiver, durante os festejos de Momo ou fora dele, como um símbolo da própria humanidade, deve ser respeitado. Qualquer ato de violência ou ameaça indicativo de coerção é abominável não só pela sua inconveniência como, também, pela impertinente invasão da intimidade privada da pessoa.
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1 Teles, Ney Moura. Direito Penal: parte especial: arts.213 a 359, volume 3. São Paulo: Atlas, 2004, p. 69.
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*Eudes Quintino de Oliveira Júnior é promotor de justiça aposentado/SP, mestre em direito público, pós-doutorado em ciências da saúde, reitor da Unorp, advogado.