CNJ avança sinal e atropela a lei
Deu no Migalhas nº 1.487, de 30 de agosto p. passado, de 2006, que o CNJ aprovou regulamentação de execução penal provisória. Ofereceu o prestimoso informativo, na íntegra, o texto da Resolução 19 do Conselho Nacional de Justiça, aprovada em sessão plenária no dia anterior (29/8), dispondo sobre a matéria. O texto estabelece que a guia de recolhimento provisório será expedida "quando da prolação da sentença ou acórdão condenatórios, ainda sujeitos a recurso sem efeito suspensivo, devendo ser prontamente remetida ao Juízo da Execução Criminal".
terça-feira, 5 de setembro de 2006
Atualizado em 4 de setembro de 2006 12:03
CNJ avança sinal e atropela a lei
José Barcelos de Souza*
Deu no Migalhas nº 1.487, de 30 de agosto p. passado, de 2006 (clique aqui), que o CNJ aprovou regulamentação de execução penal provisória. Ofereceu o prestimoso informativo, na íntegra, o texto da Resolução 19 do Conselho Nacional de Justiça, aprovada em sessão plenária no dia anterior (29/8), dispondo sobre a matéria.
O texto estabelece que a guia de recolhimento provisório será expedida "quando da prolação da sentença ou acórdão condenatórios, ainda sujeitos a recurso sem efeito suspensivo, devendo ser prontamente remetida ao Juízo da Execução Criminal".
A resolução determina, ainda, que "deverá ser anotada na guia de recolhimento expedida nestas condições a expressão "PROVISÓRIA", em seqüência da expressão guia de recolhimento". Esta guia deve também ser certificada nos autos do processo criminal.
Não se trata, é bem de ver, de regulamentação da prisão provisória, simples carcer ad custodiam, medida cautelar semelhante a outras bem conhecidas, como a prisão em flagrante e a prisão preventiva.
Trata-se de regulamentação da inexistente figura da execução provisória da pena, certo que nossa legislação não contempla a execução da pena, o carcer ad poenam, senão depois de sentença condenatória transitada em julgado.
Execução provisória não se coaduna com o direito criminal. Vou dar um exemplo extremo, porque exemplo desse tipo esclarece melhor. Imagine-se, pois, a execução provisória de uma pena de morte. Levada a efeito, não teria essa provisória execução ficado irremediavelmente definitiva? Do mesmo modo, seria desastroso executar provisoriamente uma pena corporal. Executar uma pena privativa da liberdade, que ainda não está definitivamente imposta ante a possibilidade de ser a sentença reformada por força do recurso cabível, é o que de mais incivilizado pode haver. Muitas vezes disso resultaria uma injustiça irreparável. Nem mesmo no cível, área em que não estará em jogo a liberdade individual, a execução provisória, ali admitida, não chega a extremos.
Razão assistiu ao Min. Marco Aurélio ao proclamar, votando vencido em julgamento de habeas corpus, a impossibilidade de se ter a execução do título judicial antes do trânsito
Até mesmo nas execuções fiscais, em que a Fazenda goza de privilégios, não permitiu a lei que se entregasse o ouro ao fisco antes de transitar em julgado a decisão que tiver rejeitado os embargos do executado, como expusemos
Dir-se-á que a Resolução se aplica, como ela mesma ressalva, aos processos em que o recurso não tiver efeito suspensivo.
Efeito suspensivo? Que efeito suspensivo?
O que importa saber, no caso, não é se o recurso terá ou não esse ou aquele efeito, mas se a sentença ou acórdão pode produzir um determinado efeito, ou seja, o efeito de sujeitar o condenado a um antecipado início do cumprimento de pena corporal. Semelhante efeito, porém, nenhuma decisão condenatória poderá ter, uma vez que a lei não permite a execução provisória da pena, ou seja, a execução da pena imposta em decisão ainda não passada em julgado.
Objetar-se-á que o art. 393, inc. I., do Código de Processo Penal dispõe que um dos efeitos da sentença recorrível é o de sujeitar o condenado à prisão, quando não se livrar solto ou prestar cabível fiança. O dispositivo, porém - hoje varrido do Código, tacitamente ab-rogado que ficou por incompatibilidade com a nova Constituição - , não se estava referindo ao carcer ad poenam, mas cuidando de uma prisão de caráter processual, suposta mas não propriamente uma prisão cautelar, visto que adotada sem justificação do periculum in mora. Contudo, a se entender que de prisão cautelar se trata, com presunção legal do periculum in mora, só por isso ela já deixará de prevalecer em nossa legislação, uma vez que agora de modo geral já não basta, para a prisão, a existência de ordem escrita de autoridade judiciária competente, sendo necessário, também, que a ordem escrita seja fundamentada, por força do que dispõe o inc. LXI do art. 5º da Constituição.
Em verdade, a prisão decorrente de sentença condenatória recorrível, tal como a consagrou o Código, impondo-a compulsória e automaticamente como efeito da sentença, sem de modo algum qualificá-la como cautelar, importava uma presunção de culpa do condenado a justificar uma prisão processual até que não fosse a decisão modificada. Tanto assim que mandou fosse o nome do réu logo lançado no livro rol dos culpados, também pelo só efeito da sentença. A Constituição atual seguiu o caminho contrário, com a regra da presunção da inocência, ou da não culpabilidade, enquanto não transitada em julgado a sentença. Nestas condições, fere o princípio de ser o réu considerado inocente enquanto não transitar em julgado sentença condenatória, prendê-lo só porque foi dada a sentença, sem necessidade de cogitar-se da conveniência, em cada caso, de uma prisão cautelar.
É aceitável, entretanto, diante da regra, que foi abraçada pelo Código, da já agora inadmissível prisão automática, a qual com essa característica não pode subsistir, que ela sobreviva, acomodada à Constituição, como permissão para que, naqueles casos em que a prisão caberia como efeito da sentença, também na oportunidade desta o juiz fundamentadamente decrete, se for caso, isto é, se houver real necessidade da cautela, uma prisão de cunho preventivo.
Desse modo, ao mesmo tempo em que não se tolhe a prisão de quem realmente deva, por justificada cautela, ser levado ao cárcere, evita-se misturar o joio com o trigo, impede-se levar logo para a prisão o cidadão de bem que ainda se defende e que pode estar sendo vítima de sentença injusta.
Por isso mesmo, ficaria bem melhor instruísse o Eg. Conselho nesse sentido, ajustando a antiga regra do Código á Constituição.
Mas voltando ao conteúdo da Resolução, engraçado é o que ficou dito no seu art. 2°: "Sobrevindo decisão absolutória, o respectivo órgão prolator comunicará imediatamente o fato ao juízo competente para a execução, para anotação do cancelamento da guia de recolhimento". Ora, já que não mais será possível aliviar o cidadão da prisão já sofrida, que por isso mesmo não tem jeito de ser cancelada, não se poderia cogitar de uma indenizaçãozinha para a vítima da punição judicial que veio a ser reconhecida contrária à lei? Ou de uma punição para o juiz que operou a condenação injusta ou ilegal?
A Resolução do Conselho Nacional de Justiça, além de usurpar competência legislativa do Congresso Nacional, feriu ainda a Constituição da República ao contrariar o princípio da presunção da inocência, ou da não-culpabilidade, por ela adotado, que não admite a execução da pena enquanto não transitada em julgado a sentença condenatória. E isso é muito importante porque o número de decisões condenatórias juridicamente inexistentes, nulas, erradas ou injustas é muito mais elevado do que seria razoável supor, principalmente nos tempos atuais, quando assessores, sem pelo menos um concurso na base de prova de títulos, e até estagiários proferem sentenças que vão assinadas por juízes. O Conselho, aliás, prestará um grande serviço se contribuir para uma melhor segurança das decisões judiciais.
Além disso, a Resolução atropelou a lei ordinária, ou seja, a Lei de Execução Penal, que dispõe no art. 105: "Transitando em julgado a sentença que aplicar pena privativa de liberdade, se o réu estiver ou vier a ser preso, o juiz ordenará a expedição de guia de recolhimento para a execução". Está muito claro: É depois do trânsito em julgado da sentença que se expede a guia de recolhimento.
E mais: da guia deverá constar que a sentença transitou em julgado (art. 106, III da mesma lei). Entretanto, de mandar fazer constar da guia que a condenação transitou em julgado não cuidou a Resolução, certamente pela simples razão de que está mandando expedi-la sem que haja sentença condenatória passada em julgado.
Já dispunha o art. 675 do Código de Processo Penal no sentido de que, se tiver havido recurso, no caso de ainda não ter sido expedido mandado de prisão por tratar-se de infração penal em que o réu se livra solto ou por estar afiançado, logo que transite em julgado a sentença condenatória, o juiz, ou o presidente da câmara ou Tribunal, fará expedir o mandado de prisão. Quer dizer, só depois de transitar em julgado a sentença é que seria de expedir-se o mando de prisão para a captura do réu condenado que estivesse solto. Trata-se de prisão para o fim de cumprimento da pena, uma espécie de prisão processual para a qual não têm atentado a doutrina e as obras didáticas, que nenhuma referência fazem a ela, talvez por ser prisão de prazo muito curto, especificamente para o fim de execução de pena. Realiza-se, por isso mesmo, após o trânsito em julgado da sentença. É a prisão preparatória para a execução da pena, como a tenho apontado e denominado.
No fundo, a Resolução do CNJ traduz um desejo legítimo, que é de todos nós, de justiça rápida e de uma rápida resposta à sociedade. Mas para tanto não é legítimo o meio adotado. O que também poderá fazer o Conselho para ajudar a conseguir-se uma justiça mais efetiva é fazer com que a justiça trabalhe mais e com rapidez, de modo a evitar pelo menos a impunidade decorrente de prescrição.
Pode ser que tenha tido o Conselho a boa intenção de proporcionar ao condenado adiantar a contagem de tempo para a progressão do regime de prisão. Mas seria esquisito adiantar o tempo de uma prisão que pode vir a não ter existência legal, se provido o recurso da parte. E para o réu seria um presente de grego prendê-lo só para antecipar o cumprimento de uma pena que poderá vir a ser cancelada. Depois, e sem necessidade do artifício de uma ilegal execução provisória, ainda por cima infligida indiscriminadamente a bandidos e a pessoas sem antecedentes criminais, poder-se-ia adotar a opção, acima referida, da decretação de uma prisão cautelar, já que esta já seria de ser computada no cumprimento da pena, de acordo com o instituto da detração, previsto no Código Penal.
O pior é que, num País em que não há muito a cultura do respeito à Constituição - mais vale uma resolução, uma portaria, um aviso de um chefete qualquer com poder de punir -, corre-se o risco de implantar, via costumes, a figura da "decisão do Conselho", a qual todos deverão prestar cega obediência.
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*Diretor do Departamento de Direito Processual Penal do IAMG - Instituto dos Advogados de Minas Gerais
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