Tragédia no Ninho do Urubu e o dano ao projeto de vida
Os Tribunais Superiores já se manifestaram de modo tímido sobre a teoria dano ao projeto de vida.
quinta-feira, 14 de fevereiro de 2019
Atualizado às 08:37
Na madrugada do dia 08/2/19, recebemos a triste notícia do incêndio no alojamento do centro de treinamento do Flamengo, chamado de Ninho do Urubu. O acontecimento trágico ceifou a vida de 10 jovem jogadores de futebol e deixou 3 feridos.
As primeiras palavras das autoridades foram direcionadas para a responsabilidade civil do Flamengo e a indenização às famílias. No que tange a responsabilidade civil falaremos neste pequeno artigo sobre o dano ao projeto de vida. Uma teoria aplicada pela Corte Interamericana, com precedente no Caso Loaysa Tamayo x Peru. Esta teoria se aplicará para os três jovens feridos, caso sejam impossibilitados de seguirem a carreira profissão de jogadores de futebol almejada. A Corte Interamericana , não possui precedente no sentido de conceder tal reparação para as vitimas falecidas, mas tão somente as vítimas vivas que tiveram o seu projeto de vida interrompidos por algum evento trágico .
O dano ao projeto de vida surge como reparação autônoma pelo dano, além das reparações comuns que já conhecemos ( dano moral, dano material, lucros cessantes). Os meninos vítimas da tragédia tinham um grande projeto de vida de se tornarem grandes jogadores de futebol. Assim, pode ser reconhecido a reparação do dano ao projeto de vida , paralelamente a outros prejuízos dos quais a pessoa pode resultar vítima.
A Corte Interamericana reconheceu a importância da noção de projeto de vida como direito de toda pessoa de construir um plano de vida. Este dano não se confunde com o lucro cessante porque enquanto este se refere em forma exclusiva a perda de receitas econômicas futuras, que é possível quantificar partindo de certos indicadores mensuráveis e objetivos, o denominado projeto de vida atende a realização integral da pessoa afetada, considerando sua vocação, atitudes, circunstancia, potencialidades e aspirações que lhe permitem determinar razoavelmente certas expectativas e atingi-las.
Esta nova espécie de dano , também não se confunde a perda de uma chance. Teoria que teve como precedente no STJ sobre o jogo do show do milhão. Uma jogadora deixou de respondera ultima resposta que lhe daria o prêmio de 1 milhão de reais e optou em ficar com 500 mil . Depois processou a emissora alegando a perda de uma chance alegando que não havia resposta correta. Todas as assertivas estavam incorretas. O STJ julgou procedente o pedido com base na teoria da perda de uma chance. A emissora recorreu alegando que não havia a probabilidade de que ela seria ganhadora e sim mera possibilidade de ganhar.
Nesta teoria do dano ao projeto de vida não entra na discussão da probabilidade de vir a ser um jogador de futebol ou não . É o dano ao projeto de vida em si, um valor essencialmente existencial atendo-se a ideia de realização pessoal integral.
Em outro caso julgado pela CIDH, Hermanos Gomes Paquiyauri vs Peru, um dos juízes da Corte Interamericana declarou, em outras palavras, dizendo: o dano ao projeto de vida envolve tanto aspectos materiais como imateriais, e compreende assim não somente uma reparação indenizatória pela privação arbitrária da vida, mas também pela afetação e truncamento do livro-desenvolvimento da personalidade, a interrupção de atividades que puderam realizar ambas criança não somente no laboral (perda da receita) mas também em aspectos espirituais, a realização pessoal, familiar , de planos e metas. O reconhecimento do dano ao projeto de vida, resulta mais integral e consistente desde uma perspectiva de proteção dos direitos humanos, separando-se de correntes essencialmente patrimoniais.
No julgado acima, verificamos que o dano ao projeto de vida se distancia do dano material, e se próxima do dano moral, mas com este não se confunde. Comparando o dano ao projeto de vida com o dano moral encontramos uma diferença: as consequências do dano moral afetam os sentimentos e os afetos da pessoa, e estes por mais por profundos que possam ser, não acompanham o sujeito. As dores e sofrimentos tendem a dissipar-se , diminuindo ou atenuando-se com o passar do tempo . Já o dano ao projeto de vida, é uma lesão que, por sua magnitude , suas caracterizas e suas consequências , incide na liberdade do sujeito , impedindo-os de alcançar sua realização pessoal e cumprir as metas que dão sentido próprio a sua vida.
A CIDH reconheceu no precedente Loayasa Tamayo vs Peru a autonomia conceitual do dano ao projeto de vida, paralela ao dano material e moral sofrido pelas vitimas.
O STJ já reconheceu a possibilidade de aplicação desta mesma teoria no julgado em que reconheceu a União Estável homoafetiva (Resp1183378, rel. ministro Felipe Salomão Dje 1/2/12), afirmando que seria um dano ao projeto de vida caso não houve o reconhecimento deste direito União estável. No mesmo sentido, no julgamento da ADIn 4277 julgada pelo STF, o min. Marco Aurélio fez referência ao Caso Loaysa Tamayo vs Peru reafirmando a proteção jurídica conferida ao projeto de vida.
Por fim, os Tribunais Superiores já se manifestaram de modo tímido sobre a teoria dano ao projeto de vida. Cabe a nós , operadores do direito, fomentar a manifestação das Cortes superiores a respeito da aplicação da teoria do dano ao projeto de vida, como dano autônomo em matéria de responsabilidade civil.
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*Juliana Azevedo é advogada sócia fundadora do Escritório J. Azevedo.