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Um táxi para a eternidade

O desastre em que perdemos o jornalista Ricardo Boechat, uma convivência diária e estimulante para tantos milhões de brasileiros, faz-me consagrar a ele, à sua memória agora tão difícil de assimilar como memória, estas reflexões.

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2019

Atualizado às 08:35

Preparava-me para mandar à redação de Migalhas uma primeira crônica sobre o cenário internacional do nosso tempo e sobre as relações exteriores do Brasil neste momento de transição. O desastre em que perdemos o jornalista Ricardo Boechat, uma convivência diária e estimulante para tantos milhões de brasileiros, faz-me consagrar a ele, à sua memória agora tão difícil de assimilar como memória, estas reflexões.

Para além da sensação de orfandade que a morte de Ricardo Eugênio Boechat trouxe a todos aqueles que o conheciam de perto por laços de família ou de velha amizade, que com ele trabalhavam ou conviviam a vários títulos, está o fato de que o país inteiro se cobriu de luto por ver calar-se, de repente, a voz que traduziu nestes últimos anos toda a indignação, mas também todos os propósitos e esperanças do povo brasileiro.

Mais que o apresentador seguro do noticiário televisivo, onde era comum vê-lo abrir espaço para a improvisação de seu comentário analítico, ele veio a ser sobretudo o incomparável radialista da atualidade brasileira, numa espécie de território livre em que reinava soberano com sua irreverência (haverá hoje em dia alguma coisa que mereça reverência?...), com sua busca de correção e objetividade no narrar dos fatos, e com a dureza implacável de sua crítica ___ não mais às tropelias do estado que às lambanças do setor privado.

A comoção pela partida de Boechat vem de todos os lados e de todos os estratos da sociedade. Nossos vizinhos, os professores de nossos filhos, os taxistas que não lhe perdiam a sintonia, as donas de casa, todos compartilham esse luto. Na vida pessoal ele foi seguramente um dos descrentes mais cristãos de que se tem notícia: colocou alma e coração, tanto quanto a mente brilhante, em tudo que fez, disponibilizou-se aos que o requisitavam de algum modo, aos que alguma coisa lhe pediam, aconselhou e ensinou, pela palavra e pelo exemplo, a tanta gente no domínio da comunicação de massa, verdadeira escola de jornalismo em suas variadas formas.

Há uma interrogação no ar: por quê nestes tempos difíceis da realidade brasileira, coincidentes com a fase mais destacada de sua carreira já na rede Bandeirantes ___ anos em que o país se dividiu brutalmente, em que as pessoas se estranharam mesmo no círculo familiar, e na escola, e no trabalho ___ por quê ele foi poupado de toda espécie de contestação da sua qualidade e autenticidade no jornalismo, e o foi até mesmo pelos mais virulentos personagens da nossa mídia impressa e virtual?

A resposta é simples. É que na sua linha enérgica de crítica às instituições, à sociedade, aos males que afligem o país, ele conseguiu manter uma olímpica superioridade às paixões da hora, não se empolgou com nenhuma bandeira que não a do bem comum, não cedeu a nenhuma tentação de alinhamento ou vassalagem, não foi leniente com nada, condescendente com ninguém. Da extrema direita à extrema esquerda, da função pública ao empresariado, dos ladravazes mais engalanados aos principiantes na perda de escrúpulos, do topo às bases da pirâmide social, nada que lhe parecesse vicioso escapava à austeridade e à didática de seu discurso. Nunca teve medo de se indispor com os fundamentalistas do politicamente correto. Modismos, palavras de ordem e slogans da atualidade nada lhe diziam.

Certamente por isso ele se viu blindado de tudo quanto, nesse momento da história do Brasil, atinge de modo frontal e com vigor a tanta gente nos meios de comunicação, nos grandes comandos empresariais privados, nas entidades sindicais, nas universidades, mais que tudo nas estruturas de governo. Perdemos, com a partida de Ricardo Boechat, uma extraordinária personalidade ___ que sobrevive em sua prole, em sua doce companheira, em sua legião imensurável de ouvintes e, para estes, naquelas e naqueles que o acompanhavam e com ele aprendiam no dia a dia da televisão e do rádio, e que agora o sucedem sem pretender substituí-lo. Creio que o tão amado descrente descansa agora nos braços de nosso criador, e que as sementes de verdade e de justiça por ele plantadas florescem enquanto o barco prossegue, agora sem o veterano comandante. Foi-se nossa adrenalina de todas as manhãs. Sem aviso prévio, tomou um táxi para a eternidade.

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t*Verônica Rezek é advogada militante, sócia do escritório Francisco Rezek Sociedade de Advogados e especialista em direito internacional pela Academia de Haia.

 

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