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Um caso (in)controverso na Paulistânia goiana

Manoel Martins Parreira Neto

O caso presente levanta, dentre diversos questionamentos, o de que: até que ponto o Judiciário e o ordenamento jurídico estão dispostos a levar adiante a proteção da cláusula da boa-fé objetiva e seu consectário lógico, a proteção da confiança legítima distribuída entre as partes, em face de arranjos jurídicos que mascaram propósitos desvirtuados?

quinta-feira, 7 de fevereiro de 2019

Atualizado em 15 de outubro de 2019 18:34

"Sertão é o penal, criminal. Sertão é onde homem tem de ter a dura nuca e mão quadrada"1, dizia Guimarães Rosa na obra-prima do romance existencialista brasileiro, Grande Sertão: Veredas. O espaço amplo, de largos horizontes, o sertão, se contrapõe à realidade individual e concreta de cada homem, representado pelo que seriam as veredas, na melhor análise do professor da FFLCH/USP Stefan Wilhelm Bolle.

Grande Sertão apresenta o sertanejo (no romance, o jagunço) como um protótipo do homem em sua feição universal, questionador que é dos grandes dilemas que a existência o lança, buscando tangenciar os mistérios da natureza e da alma, de modo a encontrar seu caminho no mundo.

Antônio Cândido, um dos fundadores da USP, em sua obra "Os parceiros do Rio Bonito"2, em que realiza um profundo estudo sobre o caipira paulista da região de Piracicaba e Botucatu, toma, como áreas em que um tipo peculiar de brasileiro afeito à uma cultura própria do meio rural ocorreria, as regiões do Oeste de São Paulo, Sul de Minas Gerais, e, em especial, Goiás. Toda essa região seria a denominada "Paulistânia".

Este artigo visa relatar e analisar um caso em especial, ocorrido na Paulistânia goiana.

Ainda na adolescência, pude assistir o fechamento da BR em minha cidade natal, aqui em Goiás, em maio de 2006, há mais de doze anos. A insatisfação de produtores rurais da região se condensou no que ficou conhecido como "tratoraço", sendo a iniciativa dos produtores da cidade apenas uma das diversas tomadas em todo território nacional, alcançando atos até mesmo na Esplanada dos Ministérios em Brasília.

Na fatídica terça-feira de 2006, o vice-presidente da Associação Goiana dos Produtores de Algodão (Agopa), Ronaldo Macêdo Lamberte, dizia aos veículos de comunicação: [...] o governo precisa compreender que não temos como plantar a próxima safra e nem como pagar as nossas dívidas".

Muitos produtores rurais da cidade, principalmente, os cultivadores do algodão, se valiam de financiamento direto junto das empresas destinatárias da produção, as quais lhes outorgavam crédito para custeio e investimento em suas atividades. Relações de confiança mútua foram construídas entre fornecedores da commodity e essas empresas, os quais tinham vastos negócios há mais de uma década.

A quebra da safra do algodão, em 2004/2005, ocasionada por uma combinação de uma nova praga junto à uma queda no preço, levou à um profundo desequilíbrio no fluxo financeiro que mantinha a saúde dos financiamentos para a produção, ocasionando a insatisfação popular que levou à paralisação no trecho da BR que corta o município.

Novas negociações entre as empresas compradoras do algodão produzido na região e os produtores rurais foram realizadas, de maneira que fossem sanadas as agudezas da crise.

Em esclarecimento, sobre uma dessas negociações entabuladas nos idos de 2009, como reflexo direto da crise de 2004/2005, os advogados de defesa dos produtores ressaltaram que "[...] a conduta inicial da empresa, por seu presidente, obedecendo ao clima de confiança que reinava entre as partes desde o início da parceria, foi propor a solução da pendência existente mediante uma estrutura jurídica que fosse (supostamente) boa para ambos os lados.  Por isso o negócio jurídico da confissão de dívida com dação em pagamento das terras, com arrendamento das mesmas e cláusula de recompra, que daria solução razoável ao caso". 

Desse modo, caso cumprido o acordado, estariam garantidos dois princípios: o da preservação da empresa e o da segurança jurídica nos negócios que mantêm a economia da região.

A negociação, realizada em grande medida em razão do clima de confiança que permeava as relações entre produtores e a empresa compradora/financiadora, no entanto, visou, em essência, oferecer apenas garantia às operações de financiamento já realizadas, para o que o instituto da dação em pagamento foi eleito como o "apertadamente" adequado, juntamente com o arrendamento das áreas e o direito de recompra ao final do período. Nesse quadro, não se tratava de uma venda das propriedades.

Em 30/4/09, mediante ofício à empresa, na pessoa de seu presidente, esta foi comunicada formalmente de que os produtores rurais estariam dispostos a realizar a dação em pagamento de áreas que perfazem 2.688 hectares, gerando um excedente de 288 hectares, os quais seriam pagos, em espécie, a credores preferenciais.

Ficou expressamente consignado na negociação de que trata o ofício assinado em 2009 pelo denominado "grupo" que "[...] os atuais proprietários permanecerão de posse como arrendantes (sic) das propriedades, ao preço praticado na região, com carência de um ano, e terão direito de recompra das mesmas áreas ao final de 10 anos".

Como tem demonstrado a instrução em processos em curso nas comarcas da região, vários e-mails do período de negociação das escrituras foram trocados entre os produtores e a empresa. Do mesmo modo, obteve-se uma confissão de que toda a negociação feita se tratava de outorga de garantia do pagamento de dívidas e não uma simples compra e venda de imóveis rurais.

Os produtores rurais da cidade aguardam até o presente dia os contratos de arrendamento pelo prazo de 10 anos com o devido direito de recompra no final do período.

Na espécie, cabe consignar que, em 2014, ocorre uma reviravolta de grande magnitude nas negociações, quando entram em cena pessoas jurídicas distintas da empresa que anteriormente negociava com os produtores: as denominadas empresas A e B. Tais empresas ingressam, então, com ações reivindicatórias, sustentando propriedade, e visando obter a posse dos imóveis objeto das escrituras de dação em pagamento celebradas no ano de 2009.

Como noticiado pela defesa dos produtores, em síntese, "[...] no dia 04 de novembro de 2013, empresa A, detentora de 99% do capital social da empresa B e a C, detentora de mero 1%, decidem aumentar o capital social da empresa C X mediante o aporte de diversos imóveis, dentre os quais, o dos agravados (produtores rurais)."

A origem e as relações de controle e integralização de capital social por meio de imóveis rurais de propriedade dos produtores rurais encontra-se delineada a partir deste fato.

Ato contínuo, os produtores rurais buscam logo a via judicial se valendo de ações anulatórias das escrituras públicas que revelam indícios de simulação em negócio jurídico.

É da lavra do MM. Juiz da  Vara Cível da comarca, nos autos de ação anulatória, decisão em que há deferimento de liminar a favor dos produtores, dizendo haver "[...] indícios de possível ato simulado a merecer especial atenção a ser dirimida durante a instrução, em momento processual adequado", culminando com a declaração de "[...] indisponibilidade e impenhorabilidade do imóvel objeto do litígio, com a devida averbação da presente decisão na matrícula do imóvel junto ao CRI competente".

Em decisão liminar, o relator, desembargador do TJ/GO, de maneira cautelosa, negou efeito suspensivo ao recurso interposto por uma das empresas em face da decisão supracitada, sustentando que "[...] o feito encontra-se em fase probatória, com diversos levantamentos feitos por ambas as partes e ainda não analisados e/ou solucionados na instância singela, em especial sobre a legalidade da dação em pagamento e a posse exercida pelos ora agravados".

A acórdão de uma das câmaras cíveis do TJ/GO, em que culminou o agravo interno interposto posteriormente, encontra-se assim ementado:

EMENTA: AGRAVO INTERNO NO AGRAVO DE INSTRUMENTO. DECISÃO LIMINAR QUE INDEFERIU O PEDIDO DE EFEITO SUSPENSIVO. PEDIDO DE RECONSIDERAÇÃO/REFORMA. AUSÊNCIA DE REQUISITOS APTOS À MODIFICAÇÃO DA DECISÃO RECORRIDA. RECURSO DESPROVIDO. Inexistindo razões que ensejam a alteração da decisão liminar, sobretudo por guardar consonância com os precedentes vazados deste Sodalício, o desprovimento do Agravo Interno é medida que se impõe. RECURSO CONHECIDO E DESPROVIDO3.

Ademais, cabe salientar que noticia-se nos autos eletrônicos parecer de renomado jurista, o qual conclui pela franca violação da cláusula geral de boa-fé, como matéria de ordem pública (arts. 422 e 2.035, parágrafo único, do CC), na espécie, o que desonera o magistrado do atendimento do princípio da congruência, o qual "[...] só se aplica às questões dispositivas, isto é, que dependem de pedido da parte para serem apreciadas".

A defesa, diante de todo esse quadro, trabalha, dentre outras, com as seguintes teses: i) a empresa, por intermédio de seu presidente, convence os produtores rurais a outorgarem várias escrituras públicas de confissão de dívida e dação em pagamento como forma de garantia do pagamento da dívida; ii) a nulidade absoluta das escrituras de dação em pagamento por simulação; iii) simulação por conterem declaração não verdadeira as escrituras públicas de dação em pagamento; e iv) a manipulação da personalidade jurídica das empresas A, B e C, promovida por pessoas ligadas à empresa que financiava os produtores.

Yet I find myself wanting at this point to explore some further reflections of a legal nature.

O parecer do professor é esclarecedor. Respondendo aos quesitos que lhe são apresentados, o professor paulista ratifica o entendimento do MM. Juízo a quo, que entendeu pela violação à clausula geral de boa-fé objetiva no caso concreto, reconhecendo que o negócio não é lícito. Entretanto, há a ressalva de que "[...], a partir da premissa que haveria um terceiro de boa-fé, foi dada solução jurídica inadequada para o caso, massima venia concessa".

Fundamentando-se na doutrina clássica alemã, na voz de Paul Ernst  Wilhelm Oertmann (Geschäftsgrundlage), desenvolvida por Karl Larenz, no contexto do BürgerlichesGesetzbuch - BGB, CC alemão, o jurista traz a lume a teoria da base objetiva do negócio jurídico, que se fundamenta na cláusula geral de boa-fé, para asseverar que o contrato é sempre celebrado sobre o que seria uma base negocial, na qual "[...] se compreendem todas as circunstâncias fáticas e jurídicas que levaram os contratantes a celebrar o negócio o negócio e na qual se encerram aspectos objetivos e subjetivos".

Na esteira das considerações do professor, há de ser compreendido que as circunstâncias fáticas e jurídicas as quais nortearam a dação em pagamento à época de sua celebração (2009) acabaram por ser completa e bruscamente alteradas pela não efetivação da promessa de arrendamento com cláusula de recompra, o que acarretaria "situação extraordinária" e não esperada pelos produtores rurais, haja vista a relação pautada na confiança mútua preexistente.

O caso presente levanta, dentre diversos questionamentos, o de que: até que ponto o Judiciário e o ordenamento jurídico estão dispostos a levar adiante a proteção da cláusula da boa-fé objetiva e seu consectário lógico, a proteção da confiança legítima distribuída entre as partes, em face de arranjos jurídicos que mascaram propósitos desvirtuados?

Ronald Dworkin, em "Uma questão de princípio"4, ao tomar, na parte II, o direito como interpretação, e respondendo ao questionamento "não existe mesmo nenhuma resposta certa em casos controversos?", se propõe a demonstrar qual o significado da tese de nenhuma resposta certa e por que as ocasiões em que uma questão não tem nenhuma resposta correta em nosso sistema jurídico podem ser muito mais raras do que geralmente se supõe.

À guisa de conclusão, questiona-se: o caso abordado é realmente uma questão controvertida, ou seria mais "Um caso (in)controverso na Paulistânia goiana"?

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1 ROSA, João Guimarães. Grande Sertão:  Veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001.

2 CÂNDIDO, Antônio. Os parceiros do Rio Bonito: estudo sobre o caipira paulista e a transformação de seus meios de vida. São Paulo: Livraria Duas Cidades, 2001.

3 As informações referentes ao processo no âmbito do tribunal foram propositadamente suprimidas.

4 DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípio. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

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*Manoel Martins Parreira Neto é advogado, graduado em Direito pela Faculdade de Direito de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FDRP-USP), atuante na área de Direito do Agronegócio, associado ao Leite Pereira Advogados.

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