A tributação de bens digitais: conflito de competência entre o Estado e o município
Enquanto não houver clara alteração legislativa nesse sentido, por meio de emenda à CF, caberá ao contribuinte lesado recorrer ao Poder Judiciário, visando reaver o imposto pago indevidamente.
segunda-feira, 7 de janeiro de 2019
Atualizado em 7 de outubro de 2019 17:50
O mundo atual, imerso em inúmeras tecnologias, desafia os conceitos previstos nas legislações que versam sobre o direito tributário. Isso porque não há como negar que a norma prevê uma situação específica, capaz de gerar (atrair) a incidência do tributo, o que chamamos de "fato gerador".
É nesse contexto que a evolução tecnológica, à qual o contribuinte e também o fisco estão submetidos, altera substancialmente a noção de produto/serviços e as hipóteses no mundo fenomênico (regra matriz) que determinam o nascimento da obrigação tributária.
Dentre essas alterações, a tributação dos bens considerados digitais é tema relevante, pois faz parte da atualidade e impõe ao contribuinte, por vezes, ônus excessivo, decorrente da disputa entre os entes federados (estados x municípios).
Nesse aspecto, ao analisarmos a competência tributária instituída pela CF (artigo 155, II e artigo 156, III), temos que sobre os bens considerados digitais podem incidir dois tributos: ou o ICMS (de competência dos estados) ou o ISSQN (de competência dos municípios).
No entanto, esses tributos não podem incidir, cumulativamente, posto que uma vez definida a incidência do ICMS, não caberá a incidência do ISSQN, sob pena de ocorrer o chamado "bis in idem", ou em outras palavras, a dupla penalidade, vez que seriam cobrados dois tributos diferentes decorrentes do mesmo fato gerador.
Neste contexto, é considerado bem digital todo e qualquer objeto que seja conceituado como um software ou que utilize o meio digital (é armazenado na forma de bytes): livros, vídeos, fotos etc. Estes podem ser acessados por meio das diversas ferramentas existentes: computadores, celulares e tablets.
Por software entende-se o "conjunto de programas ou aplicativos, instruções e regras que permitem o equipamento funcionar"1. Assim, é possível existir um software que seja considerado como um bem digital, tanto quanto é possível a existência de softwares que se enquadrem melhor no conceito de serviços.
Ocorre que nem sempre é clara a distinção de um software e a sua classificação como produto (mercadoria) ou como um serviço. O que fez emergir disputa entre os estados e os municípios sobre a tributação das diversas ferramentas digitais, por serem tributos excludentes entre si.
As cortes brasileiras já foram provocadas a se manifestar quanto ao tema em questão, bem como existem diversas alterações normativas que visam melhor atender aos desafios trazidos pelos conflitos tributários surgidos com as novas tecnologias. Dentre as decisões de destaque tem-se o RE 176626/SP; a título de exemplo de novas legislações tem-se o recente convênio ICMS 106/17 e as alterações providas pela LC 157/16, que versa sobre a lista de serviços do ISS.
A 1ª turma do STF, no RE 176626/SP, entendeu que os softwares que são produzidos em cópias e exemplares em série seriam considerados como mercadoria, enquanto os que são produzidos especificamente para um determinado cliente (softwares sob encomenda), estariam classificados como serviço.
No convênio ICMS 106/17 restou consignado que incide o ICMS em softwares, programas, jogos eletrônicos, aplicativos, arquivos eletrônicos, entre outros, desde que sejam padronizados ou que possam ser adaptados, comercializados por meio de download.2
Já a LC 157/163, no item 1.09, definiu que a "disponibilização, sem cessão definitiva, de conteúdos de áudio, vídeo, imagem e texto por meio de internet, respeitada a imunidade de livros, jornais e periódicos" é considerada como serviço passível de incidência do ISS.
Em termos práticos, ainda não há solução definitiva para os conflitos surgidos entre os estados e municípios, no que diz respeito à tributação dos bens considerados como digitais. No entanto, a solução adotada pela doutrina e jurisprudência é a de classificar os bens digitais distinguindo-os com base na descrição legal prevista. Ou seja, caso se aproximem do conceito do fato gerador do ICMS, as decisões tendem a ser favoráveis no sentido de que este será o imposto devido, ao passo que o mesmo procedimento se aplica em relação ao ISSQN.
Assim, os exemplos citados demonstram que a solução jurisprudencial, doutrinária e normativa é de subsunção (enquadramento) dos bens digitais às normas existentes, embora não seja mais possível classificar os recursos digitais entre mercadorias e serviços, pois não se encaixam ao conceito descrito na norma.
Pois bem, há quem entenda que o conflito não terá solução enquanto não for aprovada a tão esperada reforma tributária, pois a solução mais adequada seria a unificação dos tributos, a exemplo do que ocorre na União Europeia, a qual instituiu o "IVA", tributo que incide sobre operações com bens e serviços de qualquer natureza, diminuindo, assim, a insegurança jurídica que envolve o tema em questão.
No entanto, enquanto não houver clara alteração legislativa nesse sentido, por meio de emenda à CF, caberá ao contribuinte lesado recorrer ao Poder Judiciário, visando reaver o imposto pago indevidamente, seja ele o ICMS ou o ISSQN, por meio de ação de repetição de indébito; ou mesmo, provocar o Judiciário preventivamente, evitando danos maiores como inscrição em dívida ativa e consequente execução fiscal.
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2 Cláusula Primeira do Convênio ICMS 106, de 29 de setembro de 2017.
3 Incluiu a lista anexa à LC 116/03.
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CAPARROZ, Roberto. Direito Tributário. São Paulo: Saraiva, 2017 (coleção esquematizado).
CARNEIRO, Claudio. Processo Tributário: administrativo e judicial. 5ª edição. São Paulo: Saraiva Educação, 2018.
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*Larissa Figueirêdo Belo é advogada com atuação em Direito Tributário no Chenut Oliveira Santiago Advogados.