Processo transgenitalizador: estado civil, necessidade de anuência e dever de informação da condição de transgênero
Não há dúvidas de que o direito à vida da pessoa, sua dignidade, integridade e higidez devem prevalecer quando contrapostos com a proteção a um conceito clássico de família e com a boa-fé que há de incidir nessa seara.
quarta-feira, 5 de dezembro de 2018
Atualizado em 2 de outubro de 2019 17:53
A discussão acerca da identidade de gênero no Brasil vem com o passar do tempo evoluindo, sendo possível se afirmar que, ao menos em termos de posicionamento judicial, a questão começa a revelar uma consolidação que não encontra correlato na esfera legislativa.
É possível se asseverar que os transgêneros, em território nacional, fizeram progressos e conquistaram algum respeito a direitos nucleares, com base nas recentes decisões proferidas pelo STJ (REsp. 1.626.739, 4ª Turma, relatoria do min. Luis Felipe Saloma~o), pelo STF (ADIn 4.275, a qual deu origem ao provimento 73 do Conselho Nacional de Justiça, e RE 670.422), bem como a resposta dada pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (CorteIDH) a` Opinia~o Consultiva 24/17 encaminhada pela Costa Rica.
Tendo por base esse arcabouço jurisdicional afirma-se que o transgênero, lastreado em sua concepção de pertencimento que emana de sua autodeterminação, pode requerer a alteração de nome e gênero em seus documentos de identificação pessoal, mediante a formulação de requerimento de natureza meramente administrativa, direcionado ao ofício de Registro Civil, independentemente da apresentação de qualquer documento médico ou realização de intervenção cirúrgica prévia.
Todavia alguns elementos que orbitam a presente questão ainda padecem de uma apreciação mais acurada a fim de garantir de maneira adequada a concessão de guaridas consubstanciadas no texto constitucional, como o respeito à igualdade e à dignidade da pessoa humana.
Ponto de partida elementar para qualquer análise sobre a identidade de gênero no Brasil, nos termos já explanados, é a inexistência de legislação atinente ao tema, exigindo que toda a apreciação acerca da identidade de gênero se lastreie nos preceitos legais genéricos que possam ter incidência sobre os fatos que exijam a atenção do direito.
Ressalta-se, também, como argumento de sustentação, que é de suma importância se fazer uma distinção entre as questões atinentes aos interesses de fundo civil do transgênero (mudança de nome e gênero nos documentos de identificação) e aqueles de natureza cirúrgico-hormonal, sendo certo que nessa hipótese há de se ter em mente aspectos relativos à ciência médica a respaldar as discussões.
É exatamente em relação a essa segunda nuance que nos deitaremos no presente texto. Já é reconhecida a natureza terapêutica do processo transgenitalizador1, o qual tem o escopo de conferir uma melhor condição de vida e saúde à pessoa, com previsão na portaria 2.803/13 do Ministério da Saúde, que determina que os procedimentos pertinentes poderão ser realizados gratuitamente pelo Sistema Único de Saúde (SUS). O Conselho Federal de Medicina (CFM), por meio da resolução 1.995/10, apresenta regramento de natureza deontológica destinado aos médicos no que concerne ao processo transexualizador.
Inserto nesse contexto é possível se levantar um primeiro questionamento atrelado ao direito de família, qual seja, se é necessário se perquirir quanto ao estado civil de quem realiza o processo transgenitalizador?
Ainda na esteira da arguição supra é pertinente se arguir, caso casado o indivíduo, se haveria a necessidade de autorização do outro cônjuge ou companheiro em sendo o interessado casado ou vivendo em união estável.
Haveria ainda um aspecto final a ser avaliado, que seria a necessidade de se informar ao seu futuro cônjuge ou companheiro que é uma pessoa trans e que se submeteu ao processo transexualizador.
Estabelecidas as inquietações que norteiam o presente texto, passaremos a tecer algumas breves considerações acerca dos pontos suscitados.
1. Do estado civil do transexual
Não se questiona a amplitude dos reflexos da realização do processo transexualizador, tanto na esfera particular do indivíduo quanto nas relações sociais que ele estabelece, mormente no âmbito familiar. Todavia nos parece que questionar o estado civil do transgênero para viabilizar a realização das intervenções e tratamentos necessários é imposição sem respaldo legal e desprovida de sentido técnico.
A vinculação de que o interessado em submeter-se ao tratamento referido seja solteiro, divorciado ou viúvo, que alguns sustentam necessária, emerge de uma concepção de que seria vital a proteção da família, vedando a possibilidade do tratamento aos casados.
Preponderante se reiterar que o pouco que há para fundamentar o interesse do transexual que busca o processo transexualizador em território pátrio passa ao largo do tema, não se vislumbrando em nenhum momento a presença de qualquer elemento que possa indicar que o estado civil do indivíduo seja relevante.
Contudo a questão pode ganhar algum holofote quanto se considera que legislações alienígenas, mormente em território europeu2, consideram o estado civil do indivíduo como requisito para o acesso a direitos relativos à identidade de gênero, sendo certo que algumas nações até mesmo impõem que a pessoa seja esterilizada. Ressalta-se que a Corte Europeia de Direitos Humanos já se manifestou quanto a impropriedade de tais exigências, requerendo que os países membros erradiquem tal requisito de seus ordenamentos.
Atualmente a Europa a Corte Europeia de Direitos Humanos, apo's a apreciação de três processos movidos em face da França, exarou entendimento de que a esterilização prévia ou a infertilidade como requisito para os pleitos dos transge^neros encerraria uma ofensa ao art. 8º da Convenção Europeia de Direitos Humanos que versa sobre o direito ao respeito a` vida privada (A.P. vs França), sendo certo que tambe'm na~o se faria pertinente a imposição da realizac¸a~o de exames me'dicos pre'vios (E. Garc¸on vs Franc¸a), vedada ainda a exige^ncia de diagno'stico de sau'de mental (Nicot vs Franc¸a)3
Não se vislumbra qualquer sorte de discussão sobre a manutenção do casamento ou respaldo à família nas hipóteses em que o sujeito necessita realizar a amputação de uma perna em decorrência de diabetes ou quando faz um implante de silicone nas mamas após uma mastectomia decorrente de um câncer, pois são intervenções que tem por objetivo garantir a higidez física e psicológica daquela pessoa.
Não há, portanto, que se atrelar o acesso aos direitos decorrentes da identidade de gênero do transexual ao seu estado civil, por não se tratar de um aspecto relevante para uma situação que se reveste de fundo terapêutico, sendo certo que nenhum questionamento dessa natureza é aventado quando da realização de outras intervenções da mesma lavra. E ainda que pudesse se pensar em qualquer sorte de contraposição de direitos e interesse no presente caso é cristalino que a dignidade da pessoa humana do transgênero há de ser vista e entendida como soberana.
2. Da necessidade de autorização do cônjuge/companheiro
Na hipótese de o transexual ser casado ou viver em união estável haveria a necessidade de autorização ou anuência do cônjuge/companheiro para que ele venha a realizar o processo transexualizador? Estar-se-ia diante de uma ofensa aos direitos da personalidade do outro cônjuge ao se submeter a intervenções dessa natureza? Seria uma ofensa aos elementos de cunho moral do consorte? Sua outorga ou anuência configurariam requisito indispensável para que a intervenção cirúrgica pudesse ser realizada?
Todas essas questões podem ser levantadas quando da discussão da questão da identidade de gênero, sendo, de outro lado, incontroverso que caso ocorra o processo transexualizador sem se dar voz ao outro cônjuge a ele caberá a possibilidade de dissolver o vínculo matrimonial, sem a necessidade de muita celeuma, mormente ante a redação atual do Código Civil que não mais traz a possibilidade de dissolução do casamento vinculada a numeros clausus quanto a fundamentação. Nem mesmo se olvida a possibilidade de pleito de anulação do casamento sob o argumento de erro essencial quanto a pessoa do outro cônjuge, uma vez atendidos os critérios temporais previstos na lei, sob a alegação de que a transexualidade precedia à união e fora ocultada.
Contudo, nesse segundo bloco de inquietações trazidos à lume, é preponderante se pontuar de forma clara e inconteste que não se requer a concordância ou anuência do cônjuge/companheiro para nenhuma outra modalidade de intervenção terapêutica, não sendo, portanto, pertinente qualquer exigência dessa modalidade no caso do transexual, nos mesmos termos trazidos anteriormente quanto a discussão acerca do estado civil do transexual.
Consigna-se que quando o legislador pátrio se arvorou em exigir que o cônjuge se manifestasse quanto à prática de atos de seu consorte, no art. 1.647 do Código Civil, restringiu-se a questões de natureza patrimonial, não havendo entre as exigências legais de outorga uxória a sua imposição para a realização de tratamento médico, ainda mais quando revestido de finalidade terapêutica.
E mesmo na hipotética possibilidade de se sustentar a necessidade de tal autorização é patente que qualquer objeção, proveniente de onde quer que seja, haveria de ser entendida como atentatória ao direito à vida do transexual, por se estar privando o indivíduo do acesso à saúde plena.
Evidencia-se, assim, que o transexual prescinde da autorização ou anuência de seu cônjuge/companheiro para a realização do processo transexualizador, ante a inexistência de qualquer exigência legal nesse sentido.
3. Dever de informar e responsabilidade civil
Perspectiva que pode vir a se tornar nebulosa reside no questionamento quanto ao dever de informar ao cônjuge/companheiro sobre a realização prévia à união do processo transexualizador, bem como da incidência de responsabilidade civil por parte do transexual em caso de ocultação de tal informação.
Ao se deter sobre a análise do tema Maria Helena Diniz aduz a possibilidade de um possível pleito de responsabilidade civil com base na ocorrência de injúria grave, argumentando que a intervenção poderia gerar traumas e constrangimentos ao cônjuge4, enquanto Luiz Alberto David Araújo posiciona-se no sentido de que os direitos dos transexuais não seriam absolutos, havendo de prevalecer o direito de família quando do conflito entre eles4.
Tendo por base os parâmetros vigentes e a aplicação dos princípios constitucionais na seara do direito civil, ousamos discordar nessa feita do que é trazido por tais ícones do direito pátrio, vez que nos filiamos a um entendimento de que os direitos humanos, os direitos e garantias fundamentais e os direitos da personalidade de cada indivíduo precedem a uma pretensa proteção da família.
A natureza terapêutica do processo transexualizador por si só já haveria de ser o suficiente a afastar qualquer alegação de responsabilidade civil de quem quer que seja por tê-lo realizado, mormente ao se considerar o fito de garantir a saúde e a vida do transexual.
Não se olvida, todavia, a existência de entendimento como o apresentado por Flávio Tartuce e José Fernando Simão que asseveram que, caso haja a ocultação da condição de transgênero do cônjuge, antes da realização do casamento, tal conduta ofenderia o dever de informar que emanaria da boa-fé objetiva vigente nas relações de direito de família, considerando-se, ainda, como se deu a descoberta do fato e o trauma dele decorrente6.
Ainda que se tenha por certo a incidência da boa-fé como elemento a permear as relações de família, não podemos comungar com a tese de que tal preceito se sobreponha a aspectos vinculados aos parâmetros mais elementares do ser humano, razão pela qual, indubitavelmente, há de prevalecer o direito à intimidade do indivíduo, na sua acepção mais nuclear.
Patente o direito do indivíduo de resguardar para si alguns fatos e dados de sua vida, especialmente aqueles circunscritos a questões de natureza personalíssima que o sujeito não deseja que sejam de conhecimento de ninguém, vez que o casamento/união estável não geram o desaparecimento do direito à intimidade inerente a qualquer pessoa. A esse preceito há de se agregar o direito ao esquecimento que deve conferir guarida ao transexual, garantindo que aquela realidade com o qual ele não mais se vincula mantenha-se no seu devido lugar, qual seja, no seu passado.
Não seria coerente se impor uma indenização ao cônjuge/companheiro apenas por ter ocultado que antes do matrimônio ele teve uma relação sexual com pessoa do mesmo sexo, ou por já ter professado uma outra fé, ou por ter tido uma orientação política diversa da atual, de forma que o mesmo raciocínio há de incidir na hipótese do transexual que não revelou a sua condição anterior ao casamento7.
Se mostra discriminatória a imposição de tal sorte de atuação apenas ao transexual, numa conduta reprovável e que apenas aprofundará a segregação que já se impõe a essa minoria sexual. Inadmissível a prevalência de uma visão segundo a qual a dignidade da pessoa humana, a proteção da intimidade, o direito ao esquecimento e a busca da felicidade estariam numa posição hierarquicamente inferior à boa-fé que há de existir entre os nubentes, cônjuges e conviventes.
Ainda mais descabida é a perspectiva de se determinar um dever de indenizar ante a não informação de um fato vinculado ao âmbito mais interno da intimidade da pessoa, ainda mais quando se trata de algo que não encontra mais qualquer relação com quem a pessoa é no momento.
Não há dúvidas de que o direito à vida da pessoa, sua dignidade, integridade e higidez devem prevalecer quando contrapostos com a proteção a um conceito clássico de família e com a boa-fé que há de incidir nessa seara.
Patente, portanto, que se faz absolutamente vedada toda e qualquer hipótese de responsabilização do transexual por não informar ou revelar situações de seu passado que lhe são caras e que estão inseridas no espectro mais nuclear de seu direito à intimidade, ressaltando-se, ainda, que qualquer posicionamento contrário se mostraria "amplamente marginalizante, majorando o estigma social imposto aos transgêneros"8.
Assim não se pode entender plausível qualquer sorte de argumento que venha a suscitar a possibilidade de se impor um dever de indenizar ao transexual ante a não informação ao seu nubente ou cônjuge/companheiro da sua transexualidade.
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1 Leandro Reinaldo da Cunha. Identidade de gênero e a licitude dos atos redesignatórios, Revista do curso de direito da Universidade Metodista de São Paulo - v. 11. São Bernardo do Campo: Metodista. 2013, p. 197.
2 Áustria, Bélgica, Dinamarca, Estônia, Finlândia, França, Geórgia, Alemanha, Islândia, Irlanda, Luxemburgo, Malta, Holanda, Noruega, Portugal, Eslovênia, Espanha, Suécia, Suíça, Ucrânia e Reino Unido não exigem divórcio prévio do interessado para o pleito, segundo TGEU's Trans Rights Europe Map & Index 2018. Acesso em: 08 jul. 2018.
3 Leandro Reinaldo da Cunha. Identidade e redesignação de gênero: aspectos da personalidade, família e responsabilidade civil. 2 ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018, p. 136.
4 Maria Helena Diniz. O estado atual do biodireito, Sa~o Paulo: Saraiva, 2011, p. 337.
5 Luiz Alberto David Arau'jo. A protec¸a~o constitucional do transexual. Sa~o Paulo: Saraiva, 2000, p. 143-145.
6 Fla'vio Tartuce; Jose' Fernando Sima~o. Direito Civil, 5: Direito de família. 8 ed. Sa~o Paulo: Me'todo, 2013, p. 67
7 Leandro Reinaldo da Cunha. Identidade e redesignação de gênero: aspectos da personalidade, família e responsabilidade civil. 2 ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018, p. 283.
8 Leandro Reinaldo da Cunha. Identidade e redesignação de gênero: aspectos da personalidade, família e responsabilidade civil. 2 ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018, p. 285.
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*Leandro Reinaldo da Cunha é professor titular-livre de Direito Civil da Universidade Federal da Bahia.