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Fuga do local do acidente de trânsito

Não há e nem pode ser interpretado que o condutor do veículo, em permanecendo no local do acidente, por essa razão exclusivamente, esteja produzindo provas contra si mesmo, em evidente confronto com o direito à não autoincriminação.

domingo, 25 de novembro de 2018

Atualizado em 27 de setembro de 2019 17:36

O plenário do STF declarou a constitucionalidade do artigo 305 do Código de Trânsito Brasileiro, que traz a tipificação do crime consistente em "afastar-se o condutor do veículo do local do acidente para fugir à responsabilidade penal ou civil que lhe possa ser atribuída". A decisão foi proferida em recurso interposto pelo MP do RS do acórdão que declarou, de ofício, em caráter incidental, a inconstitucionalidade do referido dispositivo legal, com a consequente absolvição do condutor do veículo, com suporte no princípio do nemo tenetur se detegere, segundo o qual ninguém está obrigado a produzir prova contra si mesmo1.

Ao cidadão leigo fica a impressão de que quem abandona o local do crime é culpado, assim como aquele que se cala diante das perguntas feitas em seu interrogatório, prevalecendo o adágio popular de que quem cala, consente. O Direito, antes de tudo, é fruto de um sistema jurídico devidamente regulamentado e assentado em princípios e regras que vão se aperfeiçoando com o passar do tempo, sempre visando atender de forma justa e correta os reclamos sociais.

O direito ao silêncio é tutelado constitucionalmente e o acusado pode se recusar a responder às perguntas que venham incriminá-lo. Cinge-se na esfera do também preceito constitucional da ampla defesa, corolário inseparável dos direitos da personalidade, assim denominado por Pontes de Miranda. Não compreende somente a zona de intimidade do infrator, mas, também, o alargamento das fronteiras defensivas, não permitindo, desta forma, que produza provas contra si mesmo, quando for convidado a testemunhar o próprio opróbrio, como diz Tomás de Aquino.

Toda lei carrega, além da motivação social que lhe é predominante, algumas injunções de cunho altruístico e fica evidenciado, sem muito esforço, o caráter moral e de verdadeira solidariedade que norteou o legislador ao editar a regra prevista no artigo sub studio. Não há e nem pode ser interpretado que o condutor do veículo, em permanecendo no local do acidente, por essa razão exclusivamente, esteja produzindo provas contra si mesmo, em evidente confronto com o direito à não autoincriminação. Na realidade, fica mais do que explicitada a conduta humanitária daquele que procura facilitar o socorro à vítima e oferecer as informações necessárias para os agentes públicos. Pelo contrário de nenhuma forma agride ou arranha o privilege against self-incrimination, assim rotulado no Direito inglês. É interessante observar que a lei estabelece um sistema de valor ao homem criando não só a obrigação de seguir um padrão de conduta, como também dá margem para a concretização de ações subsidiárias consideradas benéficas e salutares.

No referido tipo penal, a ofensa primeira é voltada para a administração da Justiça, que se vê prejudicada pela fuga do condutor, circunstância que irá dificultar e causar grande demora na persecução penal, ao lado da vítima que se apresenta também como agente prejudicado. Conforme salienta Fukassawa, com a acuidade que lhe é peculiar: "Sujeito passivo, primeiramente, será a Administração da Justiça interessada na responsabilização penal ou civil do autor do fato. E secundariamente será a pessoa economicamente interessada na reparação civil"2.

Incumbe, desta forma, ao Estado, por meio de seus agentes persecutórios, demonstrar a prática de um ilícito pelos meios probatórios admissíveis nas regras jurídicas e não coagir o eventual infrator a consentir na realização de provas espúrias, prostrando-o diante de sua própria cidadania. É o aniquilamento de direitos obtidos com muito custo pela população brasileira. É a reserva que assegura ao cidadão o direito de não realizar provas contra si mesmo.

Tanto é verdade que, nos moldes do artigo 301 do Código de Trânsito, se o condutor dirigindo culposamente seu veículo dá causa a um acidente e de imediato presta o pronto e integral socorro à vítima, não pode ser constrangido aos rigores da prisão em flagrante delito. Quer dizer, por sua própria vontade, procura diminuir a gravidade da sua conduta, prestando a assistência necessária e colocando-se à disposição para fornecer as informações necessárias para a elucidação do acidente.

Mais do que pertinente o julgamento pela Suprema Corte. Com a antevisão perspicaz de jurista, Nogueira, bem antes, proclamava: "Cremos que a norma penal não é inconstitucional, pois não fere o direito à não autoincriminação. Uma coisa é exigir que o condutor produza ativamente prova contra si mesmo, como obrigá-lo a soprar o bafômetro ou a fornecer sangue, se ele não quiser. Outra, bem diversa, é exigir a lei que ele permaneça no local do acidente, com ou sem vítimas de lesão corporal ou morte, para sua correta identificação e também para a elucidação do fato"3.

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1 STF: Condutor que foge do local de acidente comete crime.

2 Fukassawa, Fernando. Crimes de Trânsito. São Paulo: Associação Paulista do Ministério Público, 2015, p. 252.

3 Nogueira, Fernando Célio de Brito. Crimes do Código de Trânsito. Salvador: Ed. Juspodivm, 2018, p. 141.
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*Eudes Quintino de Oliveira Júnior é promotor de justiça aposentado/SP, mestre em direito público, pós-doutorado em ciências da saúde, reitor da Unorp, advogado.

 

 

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