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STJ define como crime a falta de pagamento do ICMS incidente sobre operações próprias

Em recente julgamento realizado pelo STJ, foi proferida uma decisão monocrática pelo ministro Rogério Schietti Cruz (REsp 1.598.005-SC), replicando o precedente da 3ª Seção (HC 399.109/SC, julgado em agosto deste ano), que uniformizou o entendimento de que a falta de pagamento do ICMS incidente sobre operações próprias configura crime de apropriação indébita, previsto no art. 2º, II da lei 8.137/90.

sexta-feira, 23 de novembro de 2018

Atualizado em 27 de setembro de 2019 17:27

Tributário consultivo

 

Ambos os precedentes são alertas preocupantes aos contribuintes (sócios e administradores de empresas) que, por vezes, deixam de cumprir com suas obrigações tributárias por questões financeiras internas, como déficit de caixa, débitos com fornecedores, bancos, e outros passivos que exigem desembolsos essenciais para a continuidade regular das atividades empresariais.

A decisão que deu origem à celeuma teve início em divergências de entendimentos entre a quinta e a sexta turmas da mencionada 3ª Seção, que analisavam as hipóteses de não pagamento do ICMS, nos seguintes sentidos:

(i) a sexta turma sustentava, nos casos de ICMS devido em Operações Próprias ("ICMS-OP"), que se estaria diante de uma mera situação de inadimplemento fiscal; enquanto, nos casos de ICMS Substituição Tributária ("ICMS-ST"), haveria crime de apropriação indébita;

(ii) a quinta turma, por outro lado, não fazia tal distinção, entendendo que o não repasse do ICMS devido pelo sujeito passivo do Estado, em qualquer hipótese, se enquadraria no tipo previsto no art. 2º, II da lei 8.137/90.

Foi então que, em agosto de 2018, a matéria foi levada a julgamento pela 3ª Seção, para fins de uniformização da jurisprudência. Restou consignado, por seis votos a três, que a falta de pagamento do ICMS devido pelo próprio contribuinte (ICMS-OP) também teria condão de configurar o crime de apropriação indébita.

Em suma, a controvérsia que se pretende analisar neste artigo consiste em saber se, ao assim decidir, a 3ª Seção extrapolou a interpretação e a aplicação do tipo penal aos casos de ICMS-OP, declarado e não pago, em contrapartida ao conceito de mero inadimplemento fiscal que, como veremos, também é amplamente utilizado por esta Corte Superior.

 

Interpretação da norma penal e subsunção aos conceitos de direito tributário

 

O tipo penal da "apropriação indébita tributária" está previsto no art. 2º, inciso II, da lei 8.137/90, cuja redação segue abaixo:

Art. 2° Constitui crime da mesma natureza: II - deixar de recolher, no prazo legal, valor de tributo ou de contribuição social, descontado ou cobrado, na qualidade de sujeito passivo de obrigação e que deveria recolher aos cofres públicos [...].

No que se refere à interpretação do dispositivo acima e, como bem colocado pela ministra Maria Thereza de Assis Moura ao votar no HC 399.109/ SC: "O ponto fulcral da questão reside em saber como se deve interpretar a expressão típica tributo 'descontado ou cobrado, na qualidade de sujeito passivo da obrigação'".

A fim de adequar tais premissas à falta de pagamento do ICMS-OP, é válida uma breve explicação acerca de seus aspectos gerais.

 

ICMS Operação Própria (ICMS-OP)

 

O ICMS é um tributo de competência estadual que incide sobre a circulação de mercadorias e serviços de transporte interestadual, intermunicipal e de comunicação. Na prática, esse imposto é cobrado de forma indireta, ou seja, o encargo econômico é suportado por pessoa diversa daquela que pratica a conduta típica.

No caso do ICMS calculado sobre as operações próprias da empresa, em regra, o valor do imposto é adicionado ao preço do produto comercializado ou do serviço prestado, sendo transferido ao consumidor da cadeia produtiva como parte do custo.

E não é só do custo tributário que tal preço é composto. Tantos outros gastos fixos e variáveis, diretos e indiretos são considerados pelas empresas na formação do valor.

O fato de tais custos estarem embutidos no preço da mercadoria não atribui, contudo, o caráter de contribuinte do imposto ao consumidor, como sujeito passivo da obrigação tributária em sentido técnico, porquanto ele sequer pode ser exigido em qualquer procedimento fiscalizatório que se inicie pelo fisco estadual.

O que o legislador pretendeu fazer foi aludir uma hipótese de responsabilidade tributária, sem analisar a sistemática de apuração e cobrança do ICMS como tributo indireto, em que o custo é repassado para terceiros sob o ponto de vista econômico.

Neste ponto, é importante distinguir a figura do contribuinte, titular efetivo da capacidade contributiva, da figura do responsável tributário, pessoa que, em razão de exercer uma atividade conexa com os fatos, tem poder de disposição sobre os valores - figura esta que se confunde no caso do ICMS-OP.

No caso do ICMS-OP, o contribuinte é o próprio responsável tributário. Isso porque não cabe ao empresário cobrar do consumidor o valor do tributo, mas tão-somente lhe repassar o ônus financeiro no preço da mercadoria, que, como dito, compõe tantos outros custos incorridos na cadeia produtiva.

Sendo certo que a responsabilidade pelo pagamento do tributo não é transferida para terceiro e é a própria empresa o sujeito passivo direto da obrigação tributária (à qual é atribuída a apuração, a declaração e o recolhimento do tributo), não é possível vislumbrar qualquer hipótese de desconto ou cobrança, prevista no tipo penal da apropriação indébita (art. 2º, II da lei 8.137/90).

Pelo contrário. Quando o contribuinte deixa de repassar aos cofres públicos os valores de ICMS-OP, comete um mero inadimplemento de sua obrigação tributária para com o Estado, o qual já dispõe de mecanismos para executar o débito, como a possibilidade de penhora de bens e a inscrição do devedor em cadastro de inadimplentes.

A ferramenta prevista no tipo penal (imputação da pena de detenção de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos e multa) apresenta-se medida desnecessária e abusiva.

Neste ponto, vale mencionar que o próprio STJ já decidiu, em sede de recurso repetitivo, que o mero inadimplemento de tributo não é infração à lei. A matéria foi analisada, inclusive, sob a perspectiva do art. 135 do CTN¹, em casos de desconsideração da personalidade jurídica e atribuição de responsabilidade subsidiária dos sócios (REsp 1.101.728 e Embargos de Divergência 174.532).

A fim de tornar ainda mais clara a ausência de qualquer conduta capaz de configurar a cobrança ou o desconto do ICMS-OP da empresa, imaginemos a situação em que determinado fornecedor de insumos não é pago ou sofre algum atraso em seus recebimentos. Em paralelo, o comerciante realiza a venda das mercadorias por um preço de mercado, ao qual o custo com o insumo cobrado está incorporado. O consumidor, ao comprar e pagar por aquele bem, de certa forma, também arca com ônus financeiro dos insumos devidos ao fornecedor.

O fato de o comerciante não realizar o pagamento ao fornecedor, mesmo tendo recebido o valor da venda das mercadorias, teria o condão de caracterizar uma apropriação indébita de um dinheiro que não lhe pertence ou estaria ele apenas inadimplindo um contrato de fornecimento?

Trazendo à baila a questão do ICMS-OP, frise-se que, em nenhum momento da circulação de mercadorias a sociedade cobra ou desconta o tributo devido ao estado dos consumidores finais. Pelo contrário, como o próprio nome diz, o tributo incide sobre sua operação própria e qualquer cobrança seria prerrogativa do próprio fisco ao exigir o pagamento do imposto.

O entendimento que se tem, portanto, é que o acórdão não conciliou os conceitos tributários e a sistemática de recolhimento do ICMS-OP ao tipo penal do art. 2º, inciso II da lei 8.137/90, e sua manutenção cria uma situação desproporcional para maximizar a arrecadação.

 

Conclusão

 

Tanto nos julgados que condenaram o não pagamento do ICMS-ST como nos recentes, relativos a ICMS-OP, o que se vê é uma tentativa de criminalizar a inadimplência dos contribuintes de forma até inconstitucional, como deverá ser analisado pelo STF.

Não deixa de ser curioso o fato de que tais precedentes, em especial o julgado pelo STJ no último dia 14 de setembro, tenham sido exarados (e de certa forma, exaltados) justamente em momento político e econômico tão delicado no país, o que, por si só, não justifica uma tentativa desmedida por parte dos Estados em arrecadar valores, à mercê do direito de liberdade dos contribuintes.

Isso para dizer que a segurança jurídica fica prejudicada com a discricionariedade do órgão, que não só contraria precedente do seu próprio Tribunal, proferido em sede de recurso repetitivo, como dá um ar político à decisão, que deveria preservar o cunho técnico da matéria e as garantias constitucionais.

De qualquer maneira, é importante frisar que a matéria ainda é controvertida nos Tribunais e a decisão proferida no HC 399.109/SC e replicada no REsp 1.598.005-SC não pacifica a questão, mas apenas uniformiza um entendimento ainda bastante questionável, especialmente sob a ótica do ICMS-OP.

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1 Art. 135. São pessoalmente responsáveis pelos créditos correspondentes a obrigações tributárias resultantes de atos praticados com excesso de poderes ou infração de lei, contrato social ou estatutos: I - as pessoas referidas no artigo anterior; II - os mandatários, prepostos e empregados; III - os diretores, gerentes ou representantes de pessoas jurídicas de direito privado.

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*Camila Meneghin é advogada no Leite, Tosto e Barros - Advogados Associados .

 

*Rodrigo Rigo é advogado no Leite, Tosto e Barros - Advogados Associados .

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