Direito e tecnologia: a diferença oceânica existente entre os avanços tecnológicos e a regulamentação jurídica
Parece-nos que a classe de jurisperitos vem oferecendo menos resistência aos avanços tecnológicos, principalmente no que se refere ao Direito Digital, haja vista a grande adesão desses profissionais em cursos, fóruns, palestras e outros eventos que têm a função de discutir e debater sobre direito e tecnologia.
sexta-feira, 9 de novembro de 2018
Atualizado em 26 de setembro de 2019 13:03
A sociedade está em constante transformação. A todo momento, por meio da tecnologia, surgem novas pesquisas, experimentos e inovações. Nota-se, no entanto, que o direito não consegue acompanhar todas essas mudanças. Na verdade, sempre haverá uma lacuna entre os avanços ocorridos na sociedade - sejam eles no âmbito social ou tecnológico - e a criação das normas legais. Sendo assim, é fundamental que as normas legais não se apeguem a qualquer tipo de dogma, e que as demais fontes do direito - princípios gerais do direito, jurisprudência, a doutrina, os usos e costumes -, dialoguem entre si, haja vista que possuem um papel importante no momento da tomada de qualquer decisão.
Contudo, não é razoável que as decisões tenham como base somente as leis e as fontes formais do direito. É preciso uma análise mais aprofundada dos motivos que originam os conflitos, para, assim, se chegar a uma decisão mais justa e pacífica. Para tanto, é necessário que, além das fontes formais, o juízo também considere e utilize as fontes materiais (ou fontes no sentido sociológico), isto é, os motivos axiológicos, sociais, éticos, filosóficos e econômicos, para que o juízo possa compreender porque o caso encontra-se sob judice.
Certamente, uma das áreas em que o direito tem menor alcance ou dificuldade de abrangência e, consequentemente, necessita ainda mais das demais fontes do direito para a sua evolução é o da tecnologia. Essa afirmação decorre da grande rapidez em que a tecnologia avança; a todo momento são criadas novas soluções tecnológicas: aplicativos, redes sociais, dispositivos utilizando internet das coisas. E ainda, o mais recente uso de inteligência artificial e big data aplicados e utilizados em diversos segmentos, como, por exemplo, a captura de mais dados para serem analisados e aprendidos, pelos algoritmos de Machine Learning, servindo como base para a tomada de decisão em todos os setores da sociedade. Além disso, vale lembrar que até pouco tempo, a maior parte dos conflitos que envolvem as áreas de inovação e tecnológicas não possuíam dispositivos/normas legais próprios para promover a sua pacificação.
Para se ter uma ideia do espaço que há entre a evolução tecnológica e o direito, o Marco Civil da Internet, principal lei que regula o uso da internet no Brasil, foi criado somente em 2014 - Lei 12.965/14 -, após a ocorrência de vários crimes cometidos (na esfera cível e criminal), por pessoas que utilizaram a internet, por meio de rede pública, privada e doméstica. Esses crimes vão desde cyberbullying, intimidação, assédio, extorsão e plágios, até pornografia infantil.
Vale lembrar que essa lei só foi discutida no Congresso e, posteriormente criada, após uma atriz global ter, em 2012, os seus dados pessoais e sua privacidade violados. Antes disso, dificilmente as pessoas eram julgadas e condenadas pelos crimes que cometiam por meio da internet.
Com a criação dessa lei, foi possível definir com mais clareza os princípios relativos ao uso da internet. Dentre eles, destacam-se o da proteção da privacidade, dos dados pessoais, da garantia de liberdade de expressão e manifestação de pensamentos, nos termos da Constituição Federal.1
O Marco Civil da Internet (como é conhecida a lei 12.965/14) também estabeleceu formas mais eficazes para identificação e responsabilização daqueles que cometem crimes pela internet, seja ele cível ou criminal. Sendo assim, aquele que se sentir lesado e quiser pleitear a reparação pelos danos materiais e morais que, porventura, vier suportar, poderá requerer ao juízo que determine ao responsável pela guarda de registros de conexão ou de registros de acesso, com o propósito de formar conjunto probatório em posterior processo judicial, todo o material ilícito produzido pelo infrator. Para tanto, deverá comprovar os seguintes requisitos: (i) indícios da ocorrência do ato ilícito; (ii) justifique a utilidade da disponibilização dos registros e (iii) o período de sua ocorrência2.
Outra medida bastante utilizada por escritórios e advogados diligentes, para se chegar ao responsável do ato ilícito, é o pedido para que o juízo que determine que a empresa - proprietária da plataforma digital (ex. o Facebook), utilizada para a prática do ato ilícito - sob pena de multa pecuniária em caso de descumprimento -, bloqueie o perfil e forneça os dados pessoais e residenciais do usuário, que servirão como elementos de sua qualificação e localização, na propositura de demanda.
Destaca-se, também, que nesse ano (2018) foi sancionada a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais brasileira - LGPD, com previsão para entrar em vigor em menos de 18 meses. A nova lei chega para regulamentar o tratamento dos dados pessoais, que compõe o uso, a proteção, a transferência e outras aplicações das informações, e também tem o objetivo de dar uma maior eficácia ao texto legal do artigo 3° do Marco Civil da Internet, principalmente no que tange a proteção de dados pessoais.
Não obstante o grande avanço que tivemos nos últimos anos, no que tange a criação de leis voltadas para as áreas tecnológicas, cumpre destacar que os juristas ainda enfrentam um gigantesco desafio. Para se ter uma ideia desse desafio, podemos citar as dificuldades que a justiça eleitoral está tendo para impedir e/ou retirar (por solicitação do ofendido), a grande quantidade de propagandas negativas e, também, aquelas que divulgam conteúdos inverídicos em relação a partidos, candidatos ou coligações. Isso ocorre em virtude da dificuldade que se tem para praticar um controle efetivo dos conteúdos publicados na internet, haja vista a multiplicação instantânea dos conteúdos que são postados nas redes sociais. Assim, hoje, podemos afirmar que o TSE e as empresas responsáveis pelo controle e retirada de conteúdos publicados de forma ilícita exercem, na maioria das vezes, um controle reativo e não proativo.
Entende-se, portanto, que o direito conservador dos séculos passados não pertence ao jurista pós-moderno. Não obstante a criação de leis voltadas para às inovações, acredita-se que é inviável a criação demasiada de leis como forma de solução dos conflitos. Nesse sentido, espera-se que o jurista do século XXI atue de maneira técnica; remodelando velhos conceitos acadêmicos, esteja atualizado como o que ocorre na sociedade a sua volta, aplique em seus casos não só a jurisprudência, mas todas as fontes materiais e formais do direito, e o principal, desmistifique o culto do texto legal.
Destarte, parece-nos que a classe de jurisperitos vem oferecendo menos resistência aos avanços tecnológicos, principalmente no que se refere ao Direito Digital, haja vista a grande adesão desses profissionais em cursos, fóruns, palestras e outros eventos que têm a função de discutir e debater sobre direito e tecnologia. Dessa forma, aliando a tecnologia ao direito, o operador do direito, certamente, conseguirá diminuir o oceano existente entre o direito e a tecnologia e poderá oferecer soluções mais rápidas e inteligentes para os seus clientes.
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1 Art. 3° A disciplina do uso da internet no Brasil tem os seguintes princípios:
I - garantia da liberdade de expressão, comunicação e manifestação de pensamento, nos termos da Constituição Federal;
II - proteção da privacidade;
III - proteção dos dados pessoais, na forma da lei;
IV - preservação e garantia da neutralidade de rede;
V - preservação da estabilidade, segurança e funcionalidade da rede, por meio de medidas técnicas compatíveis com os padrões internacionais e pelo estímulo ao uso de boas práticas;
VI - responsabilização dos agentes de acordo com suas atividades, nos termos da lei;
VII - preservação da natureza participativa da rede;
VIII - liberdade dos modelos de negócios promovidos na internet, desde que não conflitem com os demais princípios estabelecidos nesta Lei.
Parágrafo único. Os princípios expressos nesta Lei não excluem outros previstos no ordenamento jurídico pátrio relacionados à matéria ou nos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.
2 Art. 22. A parte interessada poderá, com o propósito de formar conjunto probatório em processo judicial cível ou penal, em caráter incidental ou autônomo, requerer ao juiz que ordene ao responsável pela guarda o fornecimento de registros de conexão ou de registros de acesso a aplicações de internet.
Parágrafo único. Sem prejuízo dos demais requisitos legais, o requerimento deverá conter, sob pena de inadmissibilidade:
I - fundados indícios da ocorrência do ilícito;
II - justificativa motivada da utilidade dos registros solicitados para fins de investigação ou instrução probatória; e
III - período ao qual se referem os registros.
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FARIAS, Cristiano Chaves de e ROSENVALD, Nelson. Curso de Direito Civil. Ed. 13ª, Juspodivm, 2017, p. 118 a 119.
A evolução do direito privado e o atraso da técnica jurídica (1955).
Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.
Caso Carolina Dieckmann e os crimes na internet.
Controle de conteúdo das propagandas eleitorais pela Justiça Eleitoral será tema de palestra.
Projeto de lei geral de proteção de dados pessoais é aprovado no Senado.
BRASIL. Lei 12.965, de 23 de abril de 2014.
Seminário eleições e liberdade de expressão.
Trabalha com apps, banco de dados ou Inteligência Artificial? Fique atento à nova Lei Geral de Proteção de Dados - LGPD.
BRASIL. Resolução 23.551. Superior Tribunal Eleitoral.
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*Tiago Roberto Bertazo é advogado especialista em direito civil e processo civil.