(IR) Racionalidade da prisão temporária. Legal para quem?
É preciso que a doutrina, atualmente calada (em boa parte), cumpra seu papel de questionamento das coisas que constrangem os direitos e garantias fundamentais; afinal de contas, são quase 30 anos de existência de uma lei ruinosa que, a pretexto de otimizar as investigações do inquérito, subjuga o indivíduo.
segunda-feira, 29 de outubro de 2018
Atualizado em 26 de outubro de 2018 17:08
O Ato Institucional 5 ocasionou o agravamento do regime político atingindo as liberdades individuais. O golpe deu início a um período obscuro, com escalonada eliminação do direito de manifestação de pensamento, de posicionamento político e até mesmo, de ir e vir. Nesse contexto, o habeas corpus ficou suspenso, conforme determinava o art. 10º do Ato.1
Por outro lado, a resistência se fez presente na política, na classe operária, na cultura, além de outros setores. Assim, parlamentares, trabalhadores, sindicalistas, artistas, professores, jornalistas, advogados, juízes, promotores de justiça, etc., enfrentaram os ditames do poder autoritário e muitos sofreram consequências graves por isso.
Nesse estado de coisas, foi instrumento eficaz de realização das práticas ditatoriais a famigerada prisão para averiguação. O "suspeito" era abordado e preso pela polícia, sem receber qualquer explicação razoável que justificasse a medida constritiva da liberdade. A autoridade não se identificava e não revelava o motivo da prisão.
Nenhum juiz era informado da prisão. A família e o advogado também não. Tomavam o cidadão de "assalto", tornando-o verdadeiro objeto de investigação, sendo a tortura o modus operandi natural de apuração. Prendiam o cidadão para então identificar se era ou não um criminoso.
De lá para cá muitas coisas aconteceram. O regime chegou ao fim, havendo, então, a redemocratização da república, com a promulgação da Constituição Federal de 1988.
Entretanto, quanto à prisão para averiguação, não há o que comemorar. Isso, porque há no sistema legal vigente um resquício claro dessa forma de prisão denominada "prisão temporária", sendo sua criação atribuída à pressão do setor policial, que alegava estar enfraquecido, nas atividades investigativas, com o fim da prisão anterior.
Assim, regulada pela lei 7.960/89, a prisão temporária deu novo fôlego de vida àquilo que deveria ter sido sepultado pelo regime democrático, em que pese a alegação da polícia, conforme se pretende demonstrar a seguir.
Em primeiro lugar, parte da doutrina questiona a própria validade da lei. Nesse sentido, Paulo Rangel, citado por Aury Lopes Junior, explica que a prisão temporária "possui um defeito genético: foi criada pela Medida Provisória 111, de 24 de novembro de 1989. O Poder Executivo, violando o disposto no art. 22, I, da Constituição, legislou sobre matéria processual e penal (pois criou um novo tipo penal na lei 4.898) através de medida provisória, o que é manifestamente inconstitucional. A posterior conversão da medida em lei não sana o vício de origem"2
Ou seja, com o advento da Constituição Federal de 1988, norma de natureza penal e processual penal, deve obedecer a parâmetro constitucional para entrar em vigor, fato não observado pela lei da prisão temporária.
Nesse sentido, Alberto Silva Franco assinalou que "Deixar por conta do Poder Executivo criar, regular ou alterar mecanismos de coerção pessoal no processo penal, além de constituir clara infração aos princípios constitucionais da legalidade e da divisão de poderes, enseja manifestações autoritárias, ou mesmo arbitrárias, a dano do Estado Democrático de Direito."3
Ademais, "A prisão temporária é, sem nenhuma margem de dúvida, um desses mecanismos de coerção pessoal que, de modo direto e imediato, atinge o direito de liberdade do cidadão. Trata-se, portanto, de matéria em que tem aplicação o princípio da reserva absoluta de lei, isto é, só a lei em sentido estrito, ou melhor, a lei que segue, com rigor, o procedimento legiferante estabelecido pela Constituição Federal, poderá dar margem a qualquer restrição à liberdade da pessoa física."4
Pois bem, em segundo lugar, existe um alerta muito sério: de que a prisão temporária não se justifica frente ao princípio do nemo tenetur se detegere.
Explicando melhor, é sabido que a prisão temporária desponta como instrumento voltado a contribuir para as investigações policiais, conforme estabelece o artigo 1º, inciso I, senão vejamos: "Caberá prisão temporária: Quando imprescindível para as investigações do inquérito policial", devendo existir fundadas razões de autoria e participação nos crimes arrolados no artigo.
Logo, o que se verifica é a "expectativa" de que, com o investigado de corpo presente e à disposição da autoridade policial, haverá contribuição para investigação no inquérito; porém, a considerar que, em nosso país, ninguém é obrigado a produzir prova contra si,5 a pergunta que surge é: qual é, verdadeiramente, a razão de ser da prisão temporária? Qual o sentido de se colocar o sujeito de corpo presente à disposição do delegado de polícia, sabendo-se que ele não está obrigado a contribuir de qualquer forma para as investigações?
Ou seja, o que se pode produzir legalmente com a prisão temporária, considerando que o sujeito preso pode alegar que não pretende contribuir?
Prende-se para qual finalidade? Para que o sujeito possa ser interrogado acerca do fato investigado, afinal, é possível que ele queira falar. Mas então bastaria proceder à sua intimação, não? Ou então o que de verdade se pretende é produzir o mesmo efeito da prisão para averiguação, isto é, "tomar o sujeito de assalto"?
Mas, qual é o nível de integridade de uma medida jurídica que atinge o cidadão dessa forma?
Dias e mais dias na carceragem de um distrito de polícia, longe dos familiares e de advogado (pelo menos na maior parte do tempo) o sujeito permanece à disposição dos policiais, podendo ser alvo de todo tipo de pressão para confessar, delatar, etc... tudo sem qualquer controle externo efetivo.
Em verdade, as indagações acima não são novidades para ninguém, até porque, no ano de 2008, o então ministro Eros Roberto Grau, ao relatar o HC 95.009, fez as mesmas advertências declarando que "em sede de prisão temporária, o controle difuso da constitucionalidade da prisão temporária deverá ser desenvolvido perquirindo-se necessidade e indispensabilidade da medida. A primeira indagação a ser feita no curso desse controle há de ser a seguinte: em que e no que o corpo do suspeito é necessário à investigação? Exclua-se desde logo a afirmação de que se prende para ouvir o detido. Pois a Constituição garante a qualquer um o direito de permanecer calado (art. 5º, LXIII), o que faz com que a resposta à inquirição investigatória consubstancie uma faculdade. Ora, não se prende alguém para que exerça uma faculdade. Sendo a privação da liberdade a mais grave das constrições que a alguém se pode impor, é imperioso que o paciente dessa coação tenha a sua disposição alternativa de evitá-la. Se a investigação reclama a oitiva do suspeito, que a tanto se o intime e lhe sejam feitas perguntas, respondendo-as o suspeito se quiser, sem necessidade de prisão. Ordem concedida".6
Parece mesmo evidente que não há lógica na finalidade da prisão temporária, visto que não é lícito confundi-la com os propósitos da prisão preventiva, conforme alertam juízes no recém publicado Manual Prático de Decisões Penais, elaborado pela ENFAN.7
No item "4" do Manual, ficou estabelecido que é devido "ter em conta a especificidade dessa modalidade de prisão cautelar, não sendo cabível para proteger meios (instrução criminal) ou, fins (aplicação da pena) do processo ou, para garantir a ordem pública - hipóteses que autorizam outra cautela, a prisão preventiva;"8
Nota-se que a orientação é acertada, uma vez que "assegurar a coleta da prova" evitando alteração do cenário de um crime; "impedir a intimidação da vítima, ou de testemunha"'; ou, ainda "garantir a aplicação da lei penal evitando fuga", são funções próprias da prisão preventiva, conforme dispõe o art. 312, do Código de Processo Penal e não da prisão temporária.
Não obstante, não é difícil encontrar situações na contramão da própria orientação presente no "Manual de Prático de Decisões Judiciais".
Como primeiro exemplo, menciona-se a recente decisão do Juízo da 13ª Vara Criminal Estadual do Paraná que decretou a prisão temporária do ex-governador Carlos Roberto Richa, além de outras pessoas, sob o fundamento de que "que a segregação cautelar neste momento se mostra imprescindível para garantir a isenção dos testemunhos colhidos, impedindo ou minorando a influência dos investigados sobre as testemunhas, que serão ouvidas."
Registre-se, também, o fundamento segundo o qual a prisão temporária seria necessária, "evitando que os investigados se desfaçam dos possíveis elementos de provas de que tenham posse, durante a deflagração da operação investigatória."
Ora, os fundamentos apontados pelo Juízo como autorizadores da prisão temporária, são, em verdade, aqueles típicos da decretação da prisão preventiva. Qualquer manual de processo penal, até mesmo os simplificados, resumidos e esquematizados, ensinam isso. Nem seria necessária a orientação do Manual Prático de Decisões Judiciais. De modo que, respeitosamente, impressiona uma decisão judicial com vício tão grave.
Como se não bastasse, tem-se ainda o fato de que, a imputação que recai sobre o ex-governador é de lavagem de dinheiro e organização criminosa; vale lembrar crimes não previstos no rol que autoriza prisão temporária (art. 1º, inciso III) assim, a decisão viola o próprio princípio da legalidade, revelando, por de trás da caneta judicial uma indesejável atitude ativista, militante, engajada, proativa, solipsista, etc.9
Outro caso grave de inadvertida decretação de prisão temporária ocorreu na chamada Operação Skala da PF, em São Paulo, dentro do inquérito policial que apura o suposto pagamento de propina por empresas do setor portuário, com objetivo de serem favorecidas com um decreto do presidente Michel Temer.
Com os mandados executados no dia 29 de março deste ano (2018), uma quinta feira, vários investigados foram presos e soltos no dia 31, sábado, após serem interrogados.
A Procuradora Geral de Justiça, Rachel Dodge, ao ser informada da realização dos interrogatórios, no próprio sábado, requereu ao ministro Luis Roberto Barroso a soltura dos presos, alegando que o objetivo das prisões, de instruir as investigações, fora atingido. Ou seja, prendeu-se temporariamente para interrogar.
Porém, por qual razão não se realizou a intimação daquelas pessoas? Talvez porque a "jogada" de "tomar o sujeito de assalto" seja mais eficaz, na medida em que, encarcerado o indivíduo tende a ficar em uma situação (psicológica e física) de vulnerabilidade e, nessas condições, torna-se alvo fácil das investidas persecutórias. Insiste-se! Qual é o nível de integridade dessa atuação estatal (Polícia, MP e Judiciário)?
Mais um exemplo: do dia 10 a 18 de maio, também deste ano, em São Paulo, esteve preso temporariamente um empresário do ramo de fabricação de refrigerantes. A medida estava ligada a uma investigação policial, que apura um suposto esquema criado para fraudar o pagamento ao INSS. Houve, inclusive, prorrogação do prazo de duração da prisão e, em meio a isto, busca e apreensão de alguns bens do empresário.
A questão que sobrevive é: qual é a justificativa idônea para decretar-se a prisão temporária de um indivíduo, que tem identidade e endereço conhecidos? Porque surpreendê-lo em casa, junto aos familiares, às 6 horas da manhã (possivelmente) e mantê-lo preso por 8 dias? Qual é a razão disso? Não bastaria simplesmente intimá-lo?
Ora, no "Manual Prático de Decisões Judiciais" encontra-se, ainda, a recomendação aos magistrados no sentido de: "Se possível, indicar as diligências que dependem da prisão temporária e alertar a autoridade policial, que deverá se esforçar para realizá-las o quanto antes (...)".10
Uma vez mais, insiste-se na ideia de que, diligências que dependam da colaboração do investigado, podem ser realizadas via intimação e comparecimento pessoal ao distrito policial. Prender para realizar diligência significa submeter o indivíduo, isto é, tratá-lo como objeto de investigação e não como sujeito de direitos.
O fato é que: os casos acima revelam aquilo que Lenio Streck denunciou como um "agir estratégico" de juízes e membros do Ministério Público, argumentando que estes não podem usar o Direito com desvio de finalidade.
Segundo Streck: "advogados podem e devem fazer agir estratégico. É de sua função. Já juízes e membros do MP devem agir por princípios (o Direito é o fórum do princípio, diz Dworkin), porque são agentes políticos do Estado. Têm responsabilidade política. E devem acountabillity. Possuem garantias das mais variadas (sem similar no mundo) exatamente para que possam agir por princípios e não por políticas. Sim, porque se promotores podem agir como advogados, abrindo mão da imparcialidade, e os juízes podem se engajar nas causas (veja-se o perigo do ativismo), já não haverá agentes políticos estatais. Teremos uma privatização das relações processuais, enfim, uma babelização do processo. Eis a tempestade perfeita para o arbítrio."11
Por tudo isso, é preciso que a doutrina, atualmente calada (em boa parte), cumpra seu papel de questionamento das coisas que constrangem os direitos e garantias fundamentais; afinal de contas, são quase 30 anos de existência de uma lei ruinosa que, a pretexto de otimizar as investigações do inquérito, subjuga o indivíduo.
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1 Art. 10 - Fica suspensa a garantia de habeas corpus, nos casos de crimes políticos, contra a segurança nacional, a ordem econômica e social e a economia popular.
2 LOPES JUNIOR, Aury. Direito processual penal. 10º edição. Saraiva: São Paulo, 2013, p. 885.
3 FRANCO, Alberto Silva. Crimes hediondos: anotações sistemáticas à lei 8.072/90. 4ª ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2000. p. 356.
4 idem.
5 Artigo 5º, inciso LXIII, da Constituição Federal e artigo 8º, n. 2, alínea, "g", do Pacto de San Jose Costa Rica.
6 HC 95.009, STF.
7 Disponível em clique aqui
8 Idem.
9 A decisão do juízo da 13ª Vara foi revogada pelo Ministro Gilmar Mendes, que assim se referiu: "Portanto, ainda que o Juízo considere o crime do art. 2º da lei 12.850/13 mais grave, não há autorização legal específica para a prisão temporária para esse delito, sendo importante destacar que o princípio da legalidade estrita ou cerrada é corolário da proteção dos direitos fundamentais dos investigados, que deveriam ficar livres das considerações de ordem subjetiva, pessoal ou arbitrária sobre a gravidade em abstrato de crimes que podem acarretar ou não em ordens de prisão. ADPF 44".
10 Manual prático de decisões judiciais.
11 STF alerta sobre o uso estratégico do Direito por juízes e promotores.
12 KAUFFMANN, Carlos. Prisão temporária. Quartier Latin: São Paulo. 2006
13 OLIVEIRA, Edmundo. Prisão Temporária. In: JUNIOR, João Marcello de Araújo. Ciência e Política Criminal em honra de Heleno Fragoso. Rio de Janeiro: FORENSE, 1992.
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*Rogério Neres é advogado criminal e professor de direito penal; Mestre em direito penal pela PUC-SP; Cursou a Escola Alemã de Ciências Criminais da Universität Göttingen, na Alemanha; Pós-graduado em direito penal econômico pela Universidade de Coimbra/Ibccrim.