Se bastassem as leis, não haveria necessidade dos juízes
Assim é que o juízo tem o poder de, pela sentença, integrar a lei, se o juiz for imparcial. A imparcialidade do juiz é essencial para a afirmação do próprio poder do juízo.
terça-feira, 9 de outubro de 2018
Atualizado em 25 de setembro de 2019 15:14
Para Carnelutti, juízes são construtores do Direito.
Francesco Carnelutti (1879-1965), no livro "Como nasce o Direito", escreveu isto:
"Se bastassem as leis, não haveria necessidade dos juízes, não é verdade? Também os juízes, pois, são construtores do Direito." 1
Em um momento, nesta obra, ele escreve que o legislador, em geral, não tem formação jurídica. E, assim, o juiz deve completar ou melhorar a lei. Literalmente, o que ele escreveu foi que:
".quando sai do gabinete legislativo, o direito não é mais um produto acabado; pelo contrário, para poder ser consumido, deve ser submetido a uma elaboração ulterior." (Grifei)
Nesta percepção, o leitor chegará à conclusão de que Carnelutti está a defender que os juízes podem ir além do que o legislador conseguir criar, ou, do que o legislador conseguiu, agora na expressão dele, ao "formar o Direito".
Em outro momento da mesma obra, porém, Carnelutti dirá que:
". o juiz só intervém, para finalizar o produto semielaborado, quando os cidadãos não conseguem fazê-lo sozinhos."
É que Carnelutti considera que os cidadãos são, também eles próprios, aplicadores da lei.
Ele dá este exemplo:
"(.) Aplicar uma lei quer dizer confrontá-la com uma situação fática a fim de saber o que se pode e o que não se pode fazer. Se, ao passar diante de uma frutaria, tenho vontade de comer uma maçã e me vem a tentação de esticar a mão e pegá-la, mas, em troca, pago o preço e a compro, realizo, sem me dar conta disto, o mesmo raciocínio que teria o juiz, caso, tendo cedido à tentação, me declarasse culpado do furto."
E, imediatamente após isto, ele escreve:
"Ah! Se, para aplicar as leis, os juízes tivessem de intervir em todos os casos!... A verdade é que também os cidadãos as aplicam, quando, com base nelas, regulam sua própria conduta, o que quer dizer que também eles, como o Burguês gentilhombre se expressava em prosa, fazem o direito sem saber que assim procedem."2
Então, a frase, "Se bastassem as leis, não haveria necessidade dos juízes", pode ser lida de dois modos.
No primeiro modo, as leis, por serem formadas por pessoas sem preparo jurídico adequado para tanto (os legisladores), são incompletas, e podem ter sua elaboração finalizada por juízes.
No segundo modo, a interpretação, para a sua famosa frase, será a de que, se as leis bastassem como autoridade, ou seja, se fossem respeitadas por todos, os juízes nada teriam que decidir.
Observe bem o leitor que, pelas suas próprias incompletudes, as leis jamais bastariam, como autoridade, para serem respeitadas por todos. Isto porque, por suas incompletudes, surgem as divergências interpretativas, que vão à apreciação de um juiz, a partir dos argumentos apresentados pelas partes em litígio, exatamente para que o juiz decida, no caso concreto, completando o ordenamento jurídico, fazendo a "elaboração ulterior" do Direito, a que se refere Carnelutti.
Quando digo "incompletude" da lei", ou quando afirmo "completando o ordenamento jurídico", não estou apenas me referindo a "lacunas", no sentido técnico, mas ao sentido amplo que a palavra "incompletude" possa trazer, como de fato traz, consigo. Isto porque não me pareceu que o mestre italiano tenha especificado ou limitado as situações da "elaboração ulterior" da lei, pelo juiz, de modo que não me sinto autorizado a fazê-lo, dado que estou apenas analisando esta sua obra.
Ou seja, as duas interpretações, da famosa frase do mestre italiano, são, a meu ver, logicamente corretas, mas a primeira interpretação, onde juízes são "construtores do direito", necessariamente engole a segunda interpretação.
O autor desenvolve este tema, adiante, no capítulo VII desta obra. Tal capítulo é intitulado "O Juízo". A palavra "juízo" é preferida, por Carnelutti, em comparação a "processo". A sua afirmação é a de que:
". antes do carcereiro ou do oficial judiciário, entra em jogo outra figura: o juiz, que é verdadeiramente uma figura de primeiro plano. Assim, ao lado da lei, coloca-se o juízo como um dos institutos fundamentais do direito. Em vez de juízo, a ciência moderna prefere falar de processo. Sem me deter na comparação entre essas duas palavras e em seus respectivos conceitos, para a exposição elementar que estou fazendo é razoável atribuir a uma e outra o mesmo significado."
A partir daí, Carnelutti explica diferenças básicas entre "processo de conhecimento" e "processo de execução". Mas, o que se destaca neste capítulo é a figura do juiz. Verbis:
"É evidente que o juízo sugere a figura do juiz, em quem a ciência do direito reconhece, cada vez mais, o órgão elementar do direito. Antigamente não se pensava assim. Durante muito tempo, o juízo foi desvalorizado, em comparação com a lei, e o juiz aparecia como um elemento de segundo plano, em comparação com o legislador. Não obstante, a verdade é que, sem o juízo, a lei nem poderia surgir nem poderia servir aos fins do direito. Em termos históricos, o juízo é anterior à lei: antes de criador de leis, o chefe se afirma como juiz; a formação primitiva das leis é o costume, e este supõe uma sequela de juízos." (Grifei)
Em Carnelutti, o juiz é "figura de primeiro plano"; o juiz é "órgão elementar do direito"; o juízo, historicamente, é "anterior à lei"; o juízo é analisado como pré-condição para o surgimento da lei. É inegável discurso de legitimação da emancipação judicial.
Agora, para que o juízo goze desta respeitabilidade, será sempre necessário o cumprimento do seu dever ético de imparcialidade.
Ele escreve:
". nem sempre as leis são fáceis de serem interpretadas nem os fatos fáceis de serem comprovados. Uma lei, pois, nunca funciona sem ser integrada a um juízo das partes. Por sua vez, esse juízo não é suficiente, na medida em que as partes são impulsionadas por seus respectivos interesses e, assim, não têm a serenidade necessária para julgar."
Assim é que o juízo tem o poder de, pela sentença, integrar a lei, se o juiz for imparcial. A imparcialidade do juiz é essencial para a afirmação do próprio poder do juízo. E isto é interessante de saber-se, inclusive como estudo de história do direito, pois temos aqui uma obra da década de 1950 (quando da publicação original em italiano), afirmando o juízo e o juiz, em comparação ao legislador. Um tema atual, no Brasil e no mundo.
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1 CARNELUTTI, Francesco. Como nasce o Direito. São Paulo: Editora Pillares, 2015. Trad.: Roger Vinícius da Silva Costa. Título original: Come nasce il diritto. Grifei.
2 Le Bourgeois gentilhomme é uma comédia-ballet de 1670 de Jean-Baptiste Poquelin (Molière).
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*Thiago Cássio D'Ávila Araújo é professor de Direito em Brasília/DF.