Dar a cada um a vida que lhe é devida
"Que o Supremo continue sendo supremo em fazer valer a Constituição", cumprindo assim seu papel primordial, ao garantir a tão almejada segurança jurídica - e consequente , no caso, o direito à vida - a todos os brasileiros.
terça-feira, 11 de setembro de 2018
Atualizado em 24 de setembro de 2019 15:28
Tive a oportunidade de participar da audiência pública que teve lugar no STF a propósito da ADPF 422 que peticionou a favor da descriminalização do aborto. Nesse âmbito, quis defender a vida, não sob uma respectiva religiosa - ainda que o verdadeiro pluralismo preconizado pelo preambulo de nossa constituição abra espaço para que todos possam expor suas posições sem preconceitos - mas como professora de filosofia do Direito, advogada, antropóloga, mulher, enfim , como ser humano, com a clara convicção de que acolher o pedido seria um aborto jurídico que esquartejaria os membros da completude sistêmica de nosso ordenamento, acertando o núcleo - a alma - dos valores constitucionais que instituíram no Brasil um estado democrático de direito.
Nesse sentido, em primeiro lugar ressaltei que não cabe a um partido buscar de forma paternalista e politicamente imatura a proteção do STF, deixando de discutir a questão entre seus iguais; deslocando o debate de forma oportunista e o estendendo, para obter uma aprovação fundamentada no emotivismo, e sem a devida representatividade.
Não acredito que a vida seja um bem sujeito a debate, devendo ser simplesmente protegida como fundamento de todos os direitos. Porém, caso desejássemos condicionar ou abreviar esse direito, o judiciário não é o espaço democrático para determinação de questão de tamanha relevância pública. Na semana anterior à audiência, dois grandes jornais conhecidos por suas posturas - a Folha e o Estado de São Paulo - afirmaram em seus editoriais que esse tema deveria passar pelo exame do congresso e por consulta popular.
Diante da marcante presença estrangeira admitida também para participar da referida audiência, pareceu-me oportuno evocar alguns posicionamentos de origem anglo-saxã, já que para apoiar a descriminalização do aborto, é constante o recurso ao exemplo que deram os "países desenvolvidos" ...
Comecei por citar um comentário do Juiz Kavanaugh, "pro-life" - recém nomeado pelo presidente Trump para integrar a Suprema Corte Americana -, a respeito do tema, em que afirmava que o que está em pauta não é o que se refere à legalização do aborto, mas se o judiciário pode criar direitos. No tocante à ADPF em questão, bem comentou a ministra relatora Rosa Weber, declarando que se o supremo é provocado deve se manifestar. De fato, e muito bem conduziu a audiência pública em escuta ativa. Porém, de acordo com nossa carta magna, caso houvesse omissão em matéria legislativa - o que não ocorre, pois vários projetos encontram-se tramitando no congresso - o supremo deve somente notificar o poder competente para que tome as devidas providências, sem suplantar sua respectiva função, garantindo dessa forma a separação, independência e harmonia entre os poderes, precisamente pelo respeito pelo papel próprio que lhes foi atribuído constitucionalmente.
Chama ainda a atenção que se alegue descumprimento de preceito fundamental quando o sistema é coerente e consistente em torno à inviolabilidade da vida humana, entre constituição federal, código civil, código penal, tratados assinados e jurisprudência, no tempo. Por outro lado, o aborto foi debatido pelos constituintes e rejeitado. Como bem lembrou a Advocacia Geral da União, não existe um suposto direito constitucional ao aborto.
O professor Robert P. George, de Princeton, afirma que para interpretar corretamente o direito, deve-se ater, em primeiro lugar, ao propósito do dispositivo bem como ao capítulo em que se encontra, que é decisivo para compreender a qualidade hierárquica do direito em questão. A boa hermenêutica completa-se com a plenitude sistêmica iluminada também pelos valores e história da nação. Nesse sentido, a inviolabilidade da vida humana - de fácil interpretação pela terminologia que tende ao absoluto - está inserida no "caput" do capítulo que define entre os direitos e grrantias fundamentais (título II), os direitos individuais e coletivos (artigo 5º da constituição).
Para ilustrar graficamente, veio-me à cabeça o exemplo de meu tio João Carlos Martins, que recentemente apresentou-se no Supremo Tribunal, em um concerto, e que foi um dos maiores intérpretes de Bach ao longo dos tempos. Imagino se resolvesse ir mudando notas para dar uma conotação mais personalizada, o que restaria da música original do extraordinário compositor... O mesmo se pode concluir sobre os reais valores que sustentam a nação brasileira e o papel desta Corte em preservá-los ao resguardar a constituição.
Sob o aspecto jurídico, queria ainda tocar o tema das ficções legais. O autor americano no qual me especializei - o Professor Lon Fuller, que foi catedrático de teoria do direito da Harvard Law School, publicou uma obra denominada "Legal Fictions", onde afirma que o direito deve respeitar o real. Temia o "as if" (como se fosse): "mudar os fatos para que possam adequar-se à teoria".
Nesse sentido, filosoficamente - e, portanto na realidade, já que a filosofia busca conhece-la e abarca-la com profundidade - ser e existência se dão juntamente e em contínuo, não cabendo ao direito, estabelecer de forma pragmática e arbitrária quando começa a vida, do mesmo modo que o escravo não poderia ter sido definido como "res" - coisa -, e os judeus, "juridicamente" despersonalizados durante o holocausto. O filme "Doze Anos de Escravidão" evidencia muito bem a insensibilidade cultural cultivada, em várias cenas, como, por exemplo, a de um escravo que se encontra semienforcado em uma árvore, tentando sobreviver e criancinhas brincam ao lado, com absoluta indiferença. Nenhum um animal seria tratado dessa forma. A analogia é perfeitamente aplicável às atrocidades abortistas, qualificadas não como infra-humanas, como comenta o professor Finnis, de Oxford, mas anti-humanos.
Um recente periódico australiano publicou uma reportagem sobre o aborto, em que afirmava que nessa questão, o que de fato importa - "what really matters" - é a natureza do embrião - não estatísticas, elucubrações, aproximações, etc. - já que só dessa forma pode-se lhe atribuir com justiça o que lhe é devido. Em um artigo recente publicado por uma aluna brilhante, há uma interessante citação do filósofo Bernard Williams afirmando com clarividência que este: "é um debate que não tem nenhuma justificação de cunho transcendental ou religiosos, mas limita-se à real definição da vida humana e de sua inviolabilidade como um todo, não podendo ser mascarado pelo recurso a estágios".
Começa-se com 12 semanas, passando a 14, depois 16. Em alguns estados americanos já se pode efetuá-lo no nono mês de gestação. Na Bélgica, recentemente, duas crianças sofreram a eutanásia com cinco e sete anos... Na França, pagava-se para engravidar e abortar com seis meses para fazer creme de placenta, excelente cosmético. Bem evidenciado ficou também o comércio de órgãos promovido pela "Planned Parenthood". O citado autor conclui: quando a racionalidade é rejeitada passa-se à empreitada de querer justificar a qualquer custo a definição improvisada, abrindo a caixa de pandora para as mais excêntricas arbitrariedades.
Recentemente nos Estados Unidos, uma criança de sete meses não morreu durante o aborto. Mas uma vez fora do ventre da mãe, já não se podia recorrer a qualquer ação para exterminá-la. Dessa forma, agonizou na laje fria até expirar. Uma enfermeira que instrumentava o homicídio uterino, percebeu nesse momento que, efetivamente, era essa a qualificação de seu ato, ainda que sua denúncia tenha sido abafada.
De fato, o embrião não é uma aberração da natureza, nem parte do corpo da mulher, mas um novo ser, ainda que dependente da mãe, o que é também uma condição humana: nascemos, vivemos e morremos de forma relacional e conexa.
No sentido de manipular conceitos para sustentar decisões já tomadas, evoco ainda como exemplo, a tergiversação da expressão planejamento familiar e paternidade responsável, para incluir como plano B, o assassinato. Planejamento vem antes não depois, sendo, por outro lado, a paternidade uma relação e a responsabilidade, ser "res sponsus", ou seja, esposo da coisa. Que espécie de paternidade responsável é a que dá direito a eliminar o próprio filho?
Quando a argumentação parte já de premissas que carecem de razoabilidade, passa-se à radicalidade cega - e bastante intolerante com a oposição - ao invés de abrir-se radicalmente à realidade - the way things are, como afirma o professor Fuller - sem complicá-la com justificativas difíceis de sustentar, a não ser através de emoções grupais. Como bem salientou o ministro Eros Grau, em artigo recentemente publicado sobre o tema, que pelo menos sejamos sinceros em admitir que o que defendemos não é nem a mulher nem a saúde, mas um utilitarismo econômico semelhante ao da época da escravidão, e que, no caso, alimenta-se da baixa moralidade, de fácil manipulação, que vai gerando ações não somente infra-humanas, como diria o jusfilósofo de Oxford, John Finnis, mas anti-humanos.
Por fim, se quisermos levar a discussão para o plano antropológico, podemos refletir ainda sobre a igualdade. Em tese, o fato de a mulher engravidar e o homem não - patente diferença natural - leva a tomar providencias para que ela não arque sozinha, com as consequências do ato que copraticou. Veio-me à cabeça a observação de um médico holandês sobre o recurso à eutanásia em seu país, comentando que essa opção é buscada porque as pessoas morrem sós. Analogamente, o mesmo ocorre com o aborto, que deixará a mulher ainda mais solitária em tão difícil situação. É preciso pensar no antes, no durante e no depois. Queremos aborto seguro, ou sexo seguro, mas não pensamos em amor seguro. Uma relação sexual humana não é mera biologia, mas uma escolha que atinge o núcleo do ser, deixando suas marcas de amor, carinho, abuso ou desrespeito. Se utilizamos a expressão "make love" é por que assim deveria ser efetivamente. É preciso refletir sobre os motivos pelos quais uma mulher deseja o aborto; informá-la bem sobre o procedimento e efeitos. Chama a atenção, por exemplo, que hoje em alguns países é proibido que a mãe faça um ultrassom antes de abortar. Seria também importante certificar-se bem sobre o modo de efetuá-lo, ouvindo também testemunhos. Independentemente da forma com que é realizado ou camuflado, o rastro psíquico se instala, causando seus desiquilíbrios e depressões. Recentemente uma aluna comentava que uma amiga sua, também estudante, que se submetera a um aborto em um hospital de primeira categoria já tinha tentado o suicídio cinco vezes.
Se recorremos ainda à ideia de liberdade, podemos afirmar que a mulher é livre para abrir-se à relação. Após a concepção, o feto também já é dotado de sua liberdade constitutiva, projetada para exercer seu direito de nascer, não devendo ser impedido. Como também me recordava um aluno sobre os bens humanos básicos: "o pior é não ter nascido". Efetivamente, se alguém fosse perguntado se desejaria ser abortado, a resposta seria sempre negativa. O juiz Richard Posner comenta em uma de suas obras que um dos benefícios do aborto é reduzir os índices de criminalidade, já que as crianças não desejadas apresentam maior tendência a se tornarem criminosos. Ninguém pode predizer o futuro. Tive a oportunidade de conhecer pessoas brilhantes, que foram fruto de um estupro ou entregues a uma mãe de criação e hoje fazem sua diferença. De passagem, lembremos de Cristiano Ronaldo ou Steve Jobs. De fato, sempre vale a pena deixar cada um realizar seu próprio show nesta vida.
A boa liberdade é também exercida quando há educação. Após a gravação de um programa de TV, um câmera man aproximou-se e me deu parabéns pela matéria. Disse então que havia pouco estava no funileiro de seu bairro e uma menina de aproximadamente doze anos se acercou e entregou a este uma significativa quantia de dinheiro, recebendo em troca um remédio. Ele perguntou se havia entendido e o latoeiro acenou dizendo que ganhava mais assim do que em uma semana de trabalho. Essa era a realidade, acrescentou: após os bailes "funks" do bairro, é o que ocorre. De fato, era a segunda vez que a menina recorria a ele para obter o medicamento abortivo.
Em outra entrevista, comentei o fato e a repórter me perguntou se era isso que eu desejava para essa moça: que abortasse nessas circunstâncias. Comentei então que o que queria realmente é que não tivesse relações com doze anos, e, principalmente, que pudesse estar na escola estudando. É esse o Brasil que eu quero: que o Estado invista, não em aborto, mas em educação. Que a mulher brasileira possa construir a sociedade e não destruir a vida. Que enfrentemos a causa do problema, erradicando-o a partir da raiz, que também se nutre da crise de amor da qual padece a pós modernidade, definida pelo filósofo e sociólogo Zygmunt Bauman, como a era das relações líquidas.
O já citado Professor Fuller afirma, de forma aristotélica, que o Direito está para estreitar e fortalecer as relações sociais. Que espécie de relações humanas, sexuais, sociais, de paternidade, maternidade e filiação serão estimuladas através da legalização do aborto? Faz-me lembrar a reflexão de Hannah Arendt no julgamento de Adolf Eichmann sobre a racionalidade humana: "Somos capazes de fazer o mal, mas não é o pensamento que nos leva ao mal, não são as nossas qualidades mais humanas, mas, precisamente não as utilizar. O problema surge quando a renúncia a pensar nos converteu em clichês vazios que desabam diante de qualquer pressão e não nos permite dar uma resposta pessoal e razoável aos problemas que se apresentam".
Porém, volto ao cerne da questão, que no momento restringe-se principalmente à defesa do estado democrático de direito. Fuller comenta que as formas do Direito libertam - forms liberate! - e, que, se fazemos as coisas do modo certo é mais fácil que façamos a coisa certa. Portanto, nesta questão, peço simplesmente, com palavras de meu velho e guerreiro pai, que tem, como comenta, uma admiração quase mística por este tribunal: "Que o Supremo continue sendo supremo em fazer valer a Constituição", cumprindo assim seu papel primordial, ao garantir a tão almejada segurança jurídica - e consequente , no caso, o direito à vida - a todos os brasileiros.
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*Angela Vidal Gandra Martins é sócia da Advocacia Gandra Martins.