Um raro prazer
Ganhei de um placar de fazer inveja à Alemanha: 5 x 0
terça-feira, 4 de setembro de 2018
Atualizado em 24 de setembro de 2019 13:46
Alguns devem se lembrar de famosa propaganda de cigarro veiculada na televisão no final da década de 70, em que se dizia que fumá-lo era um raro prazer. Tratava-se do cigarro Carlton, e como quase todas as propagandas de cigarro, era bastante sofisticada. Fumar era moda e parecia não fazer mal à saúde. Hoje não há mais propaganda de cigarros e fumar é quase uma contravenção penal.
Dia desses fui contratado para atuar em um processo em que o cliente já estava em campo perdendo de 1 x 0. A ação havia sido julgada improcedente e estava pendente de julgamento o recurso de apelação. Antes do recurso ser pautado marquei com o desembargador relator o despacho de memoriais. Resenhei os pontos principais do recurso e em dia e hora marcados fui conversar com o magistrado. Muito bem recebido, logo temi o efeito "cafezinho". Aquele que já descrevi neste espaço: bem recebido, e com café = derrota. E foi isso que aconteceu. Marcado o dia do julgamento compareci para arguir oralmente as minhas razões recursais. Como de praxe, conforme também já expus neste espaço, fui o último a ser chamado. Após o meu tempo regimental de tribuna ouvi atento o voto que sacramentava a minha derrota. Ver a tese rejeitada pelo relator é ruim, agora, por unanimidade, é péssimo. Ao encerramento da votação, após a proclamação do resultado o desembargador relator disse que gostaria de falar comigo ao final da sessão. Achei estranho. Temi sair preso da sessão. Deixei a postos o número do telefone do meu amigo presidente da OAB. Ao final o relator disse que, apesar de entender o problema das partes, a lei não lhe permitia decidir de outra forma, mas que o seu gabinete estava à disposição caso as partes quisessem conversar para chegar a um acordo. Achei interessante. Nunca tinha visto isso. Mas acordo não houve. Com a derrota o advogado da parte contrária nem quis conversar comigo. Opostos os necessários embargos de declaração, não houve surpresa: rejeitados dentro do padrão de sempre. Parti então para o périplo do recurso especial. Aos desavisados informo que a questão era mesmo de direito, e não de fato. Mas e daí? O recurso não foi admitido, dentro também do padrão de sempre. E corri então para o penúltimo petardo: o agravo. Já no Superior Tribunal de Justiça era o momento de despachar memoriais com o ministro relator. Não deu tempo. De repente, no meio da noite eu recebi um e-mail daquele tribunal dizendo que o processo havia saído da conclusão e estaria na secretaria da turma aguardando publicação. Eu logo imaginei que coisa boa não era, afinal de contas provimento monocrático de recurso especial é tão raro quanto o cometa Halley. E boa coisa não era mesmo. Em decisão monocrática o ministro relator havia rejeitado o meu recurso de Agravo, dentro também do padrão de sempre da súmula 7. Foi então que eu parti para o último petardo: o agravo interno (que vou sempre chamar de agravo regimental). Desta vez eu não fiquei tentando adivinhar o momento certo para despachar memoriais. Marquei dia e hora com o relator logo que os autos foram para o gabinete. Se estivesse muito precoce eu sabia que teria que marcar novamente. Não valia a pena arriscar. Eu estava perdendo a causa. Em dia, hora, temperatura e pressão marcados fui a Brasília. Como era necessário ir de avião, eu saí de Campinas às 9h, para ser atendido às 14h, e retornei às 21h. Muito bem recebido pelo relator, o que me deixou desesperado com o efeito "cafezinho", entreguei-lhe memoriais e rapidamente expus o caso, o que foi atentamente ouvido, com anotações. Parece estranho, mas eu saí da audiência com um bom pressentimento. Em sessão marcada, mas sem a possibilidade de sustentar as razões recursais oralmente, eis que se tratava de um recurso de agravo, contratei um advogado em Brasília só para acompanhar a sessão. E diante da necessidade de o relator analisar melhor o caso, face às minhas ponderações, o agravo interno foi convertido em recurso especial. Isso parece simples e banal, mas somente os meus colegas sabem a dificuldade que é conseguir essa conversão. Só para se ter uma ideia, é mais fácil um católico se converter ao judaísmo. Tramitando o recurso como especial eu teria a oportunidade de comparecer em sessão e arguir as razões oralmente da tribuna. Já era uma luz ao fim do túnel. Retornados os autos ao gabinete, eu fiquei no aguardo da entrada em pauta do processo. Meses de tensão depois, publicada a pauta no Diário Oficial, euforicamente eu comprei as passagens para Brasília (saída às 9h com retorno às 21h) e preparei novos memorais para os demais ministros que compõem a turma. Como o tempo era escasso, eis que a pauta da sessão é publicada na imprensa uma semana antes da data do julgamento, praticamente impossível era marcar dia e hora com os demais ministros. A solução, portanto, era encaminhar os memoriais por e-mail para cada um dos gabinetes. E assim eu fiz. Se leram, eu não sei. E no dia da sessão marcada eu lá estava, em plenário lotado, a uma temperatura gélida em razão de potente ar condicionado. Na audiência havia muitos advogados famosos, entre eles um famoso ex ministro da justiça, professor do Largo do São Francisco, conhecido por sua excepcional oratória (infelizmente mal utilizada no último processo de impeachment). Por um momento eu pensei que ele poderia ser o advogado contratado da parte contrária na minha causa, e seria meu oponente na tribuna. Tremi, e não foi pelo gelado da sala. Felizmente, ele atuou em outro processo e vi que mesmo com sua eloquente sustentação oral seu cliente perdeu a causa. Isso me deixou um pouco mais confortável para perder a minha também. Quando chegou a minha vez eu estava uma pilha de nervos. Vesti a beca que lá estava disponível, que é comunitária (é o STJ na onda do compartilhamento) e não cheira mal (acho que por causa do frio), e subi na tribuna. Lá, diante de um cronômetro digital gigante, me foi dada a palavra pelo tempo regimental de 15 minutos. Após infernais e intermináveis 3 minutos o ministro relator agradeceu a minha participação e começou a ler o seu voto, que estava dando provimento ao meu recurso especial para reformar a sentença e julgar procedente a minha demanda. Após o seu voto os demais ministros o acompanharam. Ganhei de um placar de fazer inveja à Alemanha: 5 x 0. Aquela beca preta estava mais para a capa vermelha do super-homem, e eu estava nas nuvens. Depois de todo esse périplo, eu havia ganho a demanda no Superior Tribunal de Justiça, por unanimidade de votos. Conseguir ser ouvido e ainda lhe ser dada a razão. Um árduo trabalho. Um raro prazer!
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*Fábio Gindler de Oliveira é advogado sócio do escritório Advocacia Hamilton de Oliveira.