Se dever, não dirija (e não viaje)
A suspensão de CNH e de Passaporte que vem sendo aplicada, especialmente, em primeiro grau, afronta diretamente a garantia constitucional de ir e vir e, também, o próprio art. 139, IV, do CPC.
quinta-feira, 30 de agosto de 2018
Atualizado em 23 de setembro de 2019 18:16
Decisões recentes determinando a suspensão da Carteira Nacional de Habilitação (CNH) e Passaporte de devedores em ações de execução cível têm sido um dos temas mais polêmicos do "Novo" Código de Processo Civil.
Juízes, doutrinadores e especialistas se dividem acerca da legitimidade dessa medida que, de inconteste, apenas tem sua significativa gravidade em detrimento do executado.
Toda esta celeuma se estabelece à luz do art. 139, IV, do Código de Processo Civil, que explicitamente autoriza o magistrado a tomar as medidas indutivas, coercitivas, mandamentais ou sub-rogatórias que considerar necessárias para assegurar o cumprimento de sua ordem judicial.
Com base nesse dispositivo, tem-se visto uma série de decisões determinando a suspensão da Carteira Nacional de Habilitação e Passaporte de executados.
Não acredito, entretanto, que tenha sido essa a intenção do legislador. Explico.
O art. 1° do Código de Ritos Brasileiro1 determina que o processo civil seja interpretado conforme os valores e normas fundamentais estabelecidos na Constituição da República Federativa do Brasil. De fato, sendo a Constituição Federal o fundamento de validade para o ordenamento pátrio, não pode uma disposição do Código de Processo Civil ser compreendida de modo a afrontar as garantias constitucionalmente asseguradas.
A interpretação lógico-sistêmica da regra do art. 139, IV, do CPC não outorga ao juiz um poder incondicional para a prática de atos que repute 'indutivos' ao cumprimento de sua ordem. Ao contrário, o próprio preceito é claro ao afirmar que somente aqueles que se afigurem necessários podem ser deferidos e desde que, por certo, não violem garantias e direitos fundamentais assegurados na Constituição.
Ocorre que a suspensão de CNH e de Passaporte que vem sendo aplicada, especialmente, em primeiro grau, afronta diretamente a garantia constitucional de ir e vir e, também, o próprio art. 139, IV, do CPC (de que, inclusive, supostamente retirou fundamento de validade), vez que as medidas impostas (restritivas de liberdade de locomoção) não são necessárias, sequer guardando relação de pertinência com a tutela do direito discutido (pecúnia).
Ora, o art. 139, IV, do Código de Processo Civil, inserido em uma conjuntura cível, privada, só pode ser lido e interpretado nesse contexto. Assim, tem-se que tal dispositivo somente autoriza medidas indutoras/coativas de ordem patrimonial, nunca pessoal (penais), seja por falta de amparo constitucional, seja porque a alternativa, sem qualquer liame de efetividade lógica com a satisfação do direito tutelado, torna-se simplesmente punitiva. A medida não é adequada para tutelar o direito invocado, a satisfação do direito não depende dela, nem virá através dela.
Outrossim, conforme expressamente inserto no inciso XV do artigo 5º da Constituição Federal2, a liberdade de locomoção é direito garantido a todos os cidadãos. Logo, revela-se plenamente ilegítima qualquer restrição judicial a essa garantia - ainda que parcial -, já que evidente, que a liberdade de locomoção abrange o direito de livremente locomover-se em território nacional e estrangeiro, observadas as normas destes países, sofrendo, portanto, absoluto embaraço pela apreensão de passaporte ou pela suspensão da carteira nacional de habilitação.
Sobre tal direito, vale destacar o trecho escrito por Wilson Steinmetz:
"O direito à liberdade de locomoção é a mais elementar e imediata manifestação da liberdade geral de ação de pessoas. Sem a institucionalização e garantia desse direito estaria gravemente prejudicado o direito fundamental à liberdade a que se refere o caput do art. 5º"3.
Se, portanto, a suspensão da CNH e do passaporte ceifaria o direito de ir e vir do devedor, é possível constatar que estaria ele submetido a uma espécie de prisão civil em hipótese não admitida em nosso direito. Ora, a prisão civil apenas se revela possível em um caso, qual seja, a ausência de adimplemento quanto a obrigação alimentícia. Tal exceção, além de estar prevista expressamente na Constituição Federal, conforme apregoa seu art. 5°, LXVIII4, justifica-se pelo fato de privilegiar o direito à vida e à dignidade do alimentando em detrimento do direito do alimentante à liberdade.
A medida imposta por juiz cível em razão de uma dívida privada equipara-se a uma medida extrema aplicável apenas pelo juízo criminal em situações excepcionais para garantia da ordem pública e observância da lei penal e processual penal. Em outros termos, não se apresenta, no mínimo, razoável a ideia de que, em um feito cível, em que se discute interesse patrimonial privado, aplique-se uma medida indutora, restritiva de liberdade, típica da tutela penal, sem qualquer autorização a tanto.
A propósito do tema, tratando, na realidade, da evolução incorrida no Direito Brasileiro quanto à extirpação, do ordenamento nacional, de prisão cível por dívida, o saudoso professor João Calvão da Silva explicita:
"A prisão por dívida, mesmo como meio de adstringir o devedor ao cumprimento da prestação, não era, pois, em regra, admitida e alguns dos raros casos em que expressamente era consentida por lei, como medida coercitiva, vieram posteriormente a ser abolidos. [...] Em jeito de conclusão, podemos dizer que a preocupação da tutela da liberdade e da dignidade humana prevaleceu na opção feita pelo legislador de consagrar apenas a coerção patrimonial, sem revivescência da coerção pessoal, em harmonia, aliás, com a nossa tradição, com o figurino latino de que é modelo a astreinte - na evolução histórica do direito francês, contrariamente à do direito germano-anglo-saxónico, a tutela da dignidade do homem livre prevaleceu sobre a ideia de tutela da autoridade - e mesmo com a ideia de que quem responde pela dívida é o patrimônio e não a pessoa do devedor, traduzido, aliás, na sanção do ressarcimento do dano resultante do incumprimento da obrigação inexeqüível in natura - ressarcimento do dano que incide, portanto, sobre o patrimônio e não sobre a pessoa do devedor."5
É inegável, portanto, que medidas como essas representam um retrocesso do avanço alcançado.
Ainda, em uma analogia pertinente, é possível perceber que o Supremo Tribunal Federal, há muito, compreende que meios de coerção ou coação indireta não podem ser usados como ferramenta para cobrança de obrigações patrimoniais, no caso, cobrança indireta de tributos (de interesse público). O que se dirá, portanto, para satisfação de uma dívida privada. Nesse sentido, as súmulas 3236 e 5477.
Ademais, não há razoabilidade nem proporcionalidade entre a medida imposta (restrição de liberdade de ir e vir) e a finalidade perseguida (pagamento), ferindo, portanto, expressamente o que apregoa o artigo 8° do próprio Código de Processo Civil8.
Destaca-se, ainda, o fato de que a responsabilidade por uma obrigação de pagar quantia certa apenas pode recair sobre o patrimônio do devedor e nunca sobre a sua pessoa, nos termos da regra insculpida no art. 789 do Código de Processo Civil. Observe-se:
"Art. 789. O devedor responde com todos os seus bens presentes e futuros para o cumprimento de suas obrigações, salvo as restrições estabelecidas em lei."
É indubitável, pois, que tais medidas não refletem a intenção legislativa. A respeito das mencionadas disposições, oportuno observar o que conclui o brilhante professor Araken de Assis9:
"É evidentemente inconstitucional diante do princípio da dignidade da pessoa humana tirar o passaporte, carteira de habilitação. Que que tem isso com dívidas? Não tem absolutamente nada. Não é a correlação instrumental entre o objetivo da execução e o meio empregado. Isso é simples vingança, simples punição. [...] o juiz ou a juíza já não tinham paciência com aquele processo, ocupava espaço demais no cartório, o credor peticionava a todo momento, e aí, num momento de exasperação, adotou uma medida atípica". Numa sociedade como a nossa, sedenta por punição, não me surpreende que essas ideias sejam encaradas com naturalidade. Mas é preciso rejeitá-las em nome de princípios. No Brasil e em qualquer outro lugar do mundo, não é possível colocar o devedor de cabeça para baixo. "
Logo, não por outra razão, decisões dessa espécie têm sido reformadas em segunda instância10.
Assim, diante da evidente violação à garantia constitucional, da ausência de proporcionalidade e razoabilidade, revela-se urgente e cogente uma reposta rápida e uníssona dos Tribunais Superiores com o objetivo de pacificar o tema e, por conseguinte, mitigar a aplicação de medida de tal gravidade, sob pena de criação de precedentes significativamente temerários, que, em última análise, violam garantias constitucionais dos cidadãos.
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1 Art. 1° do CPC - O processo civil será ordenado, disciplinado e interpretado conforme os valores e as normas fundamentais estabelecidos na Constituição da República Federativa do Brasil, observando-se as disposições deste Código.
2 Art. 5°, XV da CF - É livre a locomoção no território nacional em tempo de paz, podendo qualquer pessoa, nos termos da lei, nele entrar, permanecer ou dele sair com seus bens;
3 CANOTILHO, J. J. et al. Comentários à Constituição do Brasil. São Paulo: Saraiva/Almedina, 2013, p. 303
4 Art. 5º, LXVII da CF - Não haverá prisão civil por dívida, salvo a do responsável pelo inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia e a do depositário infiel;
5 Cumprimento e Sanção Pecuniária Compulsória, Suplemento do Boletim da Universidade, 1987, págs. 387 e segs.
6 Súmula 323 do STF. É inadmissível a apreensão de mercadorias como meio coercitivo para pagamento de tributos.
7 Súmula 547 do STF. Não é lícito à autoridade proibir que o contribuinte em débito adquira estampilhas, despache mercadorias nas alfândegas e exerça suas atividades profissionais.
8 Art. 8° do CPC - Ao aplicar o ordenamento jurídico, o juiz atenderá aos fins sociais e às exigências do bem comum, resguardando e promovendo a dignidade da pessoa humana e observando a proporcionalidade, a razoabilidade, a legalidade, a publicidade e a eficiência.
9 Professor Araken de Assis afirma ser totalmente contrário aos poderes executórios atípicos.
10 Medidas coercitivas de pagamento, como o bloqueio de carteira de motorista e do passaporte de devedores aplicadas com frequência pela primeira instância tem sido barradas nos tribunais. De quatro julgamento das Câmaras de Direto Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP), somente um autorizou a restrição no fim do ano passado. Ainda assim porque o caso analisado envolvia dívidas relacionadas a um acidente de trânsito e a desembargadora que julgou a matéria entendeu haver relação entre o fato e medida aplicada (bloqueio de CNH). Nas demais situações, os magistrados afirmaram que tais restrições ferem o direito de ir e vir previsto na constituição. TJ-SP suspende decisões de bloqueio de passaporte e CNH de devedores.
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*Carolina de Oliveira Leite Bezerra Cavalcanti é bacharela em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).